Com uma geografia que sempre favoreceu grandes rotas comerciais, fazendo surgir interações diversas, feito teias, entre as culturas do sudeste europeu, que se estende ao mediterranêo. Foi palco de grandes cenários históricos. Guerras, retiradas, independências e criações místicas. Sua conformação mesológica sempre favoreceu a imaginação. O indivíduo, representante natural do meio em que nasce, sempre age segundo as disposições, limitações e permissões que o ambiente coloca sobre o mesmo. Cristaliza-se naquela cultura, sendo capaz de fazer traduzir qualquer aspiração, ou intervenção na natureza como se os dois pertencessem um ao outro e vice-versa. Assim, ao se criar próximo ao Danúbio, ou Cartago, Tártaros etc, faz-se a cópia rudimentar e exata da localidade. O fato de serem regiões com inclinação para superstições e fantasia, acontece pelo fenômeno histórico/temporal de contar as histórias através de grandes alegorias. As corridas Árabes, se tornam, enfim, um festejo popular que reencontra o passado e o celebra a partir de sua variante obscura, e igual, fantástica. Os alquimistas, que se proliferaram por ali, em busca da transmutação do ouro, a filosofia, então latente; Roma e suas arquiteturas que pretendiam fazer suas ‘urbs’ e habitar grande faixa de terra; foram parte de uma passagem que fundou a psicologia daquela sociedade. Formando um arcabouço que pode ser compreendido em figuras como os Húngaros no futebol, ou Alexandre, ou na Hégira, em pinturas nos tecidos, nos vitrais dos templos e nas moradias delicadamente próximas. O ser e o espaço, sendo face um do outro.
No futebol, especificamente, isso não é diferente. E os jogadores, enquanto indivíduos preenchidos por história e individualidades que estruturam suas reações e comportamentos, estão atados ao cordão da origem.
Esse é o passo para entender o fenômeno dos Maradona’s.
Não muito diferente, e segundo a história racial do mundo, pertencentes talvez a mesma cultura. Temos Maradona. Descendente apache, Maradona sempre foi um argentino cuja identidade está ligada aos povos originários das Américas. Completamente avesso a cultura branca-inglesa que funda as grandes estacas do estado Argentino e enraiza ideologia disruptiva. Maradona foi a resistência muito bem centralizada do corpo-território dos indígenas. Com essas raízes, e devido o contato com as “culturas latinas” que o fizeram, é um tanto semelhante em símbolo e fisicalidade aos ibéricos. Cuja admiração remonta os grandes mitos.
Não é a primeira vez que se fala em um Maradona naquela região. Assim como se falou em grandes penitências, objetos sagrados e construções de outro planeta. Maradona sempre fez parte desse escopo e dessa necessidade de se desatar do corpo e deixar que se flui melhor o espírito. Também não foi somente lá, que esse se tornou algo sacro. Na sua própria terra, tiveram milhares. Cabelos longos, indomáveis, com muita picardia.
Mas longe dali, indo de encontro ao poderoso mar mediterrâneo, se falou muito no tal profeta.
Por ali, existiu um baixinho impetuoso, de toque curto e veloz. Camisa 10. Mal encarado. Um jogador que vivia à margem, e jogava o futebol interno de seu país como se fosse o Maradona. Exatamente. Era Maradona. Hagi. O Maradona dos Cárpatos.
Foi um enlace místico do povo, que fez com que nascesse o desejado Maradona. Como se numa manjedoura.
Hagi podia ser Maradona por um dia inteiro. Era algo engraçado, mirabolante, bonito. Como uma paisagem. Ou como a frequência imutável dos desertos que cercam aquela região ao outro lado.
Parte de um grande drama, essa ‘persona’ maradoniana não ficou somente em Hagi. Os Maradonas se espalharam pelo mundo como guias espirituais daqueles “romeiros” do futebol. Se tornou culto. Verbo. No seu país, surgiram vários. Vários que se pareciam, mas não queriam se sentir Maradona. O que aconteceu com Hagi, só foi se realizar novamente, décadas depois.
Griezmann tratado dos mundos
Naquela mesma faixa de mapa, onde Hagi apareceu para o mundo, em um pequeno território, cuja cultura é latina, tanto europeia, tanto oriental, formou-se parte do gene de um garoto francês, que viria ser sul-americano de gosto e alma, mas também é iberico. Antoine Griezmann.
Como sua própria composição humana (!), o baixinho meio francês, meio espanhol; latino, sempre foi uma mistura entre a fantasia e sonho. Um jogador com muitas saídas, muitos improvisos e sabedorias guardadas que se transformam de acordo com a natureza. É cópia do seu meio, e sempre foi exatamente aquilo: aberto, mutável, vários.
Seu jogo – extensão direta – sempre partiu dessa infindável sensibilidade que provém da sua origem. Próximo da bola, livre, criativo. Como o espaço que o fez.
Nos anos iniciais, mostrava o ímpeto dos combatentes da sua terra natal – adotada, digerida, sentida. Atacante afiado, de acrobacias, velocidades e incisão. Depois, transmudou-se. Se tornou mais associativo, sereno, mas… de mais imposição. Como o espaço que organizou suas percepções – planaltos, cidades feitas ao curso rio. Foi assim, maturando e se tornando mais cerebral, gestor. Era um mundo alcançando outros e assim por diante, uma grande beleza.
Griezmann resultou da mais forte causalidade da sua região: diversidade. E isso sempre apareceu nos seus gostos, também nos seus movimentos.
Mas ainda faltava algo. Algo um tanto espiritual para esse jogador, e sua idade; também seu amadurecimento enquanto “substância” que contém um universo histórico-cultural.
Griezmann por El Cholo
Griezmann já era isso tudo. Não precisa de mais linhas para falar sobre sua forma celebre. Enquanto jogador, profissionalmente, foi assolado pelo determinismo formal do jogo. Teve tempos sombrios, que contribuíram para refazê-lo.
Com El Cholo, no inicio de tudo, a odisseia dos dois foi um espetaculo. Eram dois fortes sonhadores que quase conquistaram tudo. Sempre houve algo a mais nessa relação. E apesar disso se materializar na vontade de vencer que compartilham, esse algo mais sempre foi mais identitário do que marcial/tático/pessoal. Griezmann e El Cholo, são de mundos distantes que nascem do mesmo ramo, do mesmo verbo. Em consideração a esse verbo, nasceram sim, do mesmo, mas com um toque a mais, uma mãozinha a mais que ligam os dois. A mão de Deus.
Simeone, é produto de um espaço e tempo onde a Argentina era Maradona. Da mesma forma, jogou com esse “fazedor de cultura” e em uma situação interessante. Um futebol argentino que vivia os anos do seu estilo mais profundo e sério: La Nuestra. Aquilo foi o encontro de Diego Simeone ao seu futebol pegado e impensado das calles y potreros, logo, seu; nuestro. Forma do homem se ligar ao passado e se refazer. Provavelmente, essa percepção, seguiu viva dentro do Diego (!) técnico.
Raça, tabela, parede, gambeta. Era isso. E isso foi feito anos depois de seu Racing. Esculpido no menino basco.
Griezmann tinha isso tudo desde sempre, e em suas mudanças, foi harmonizando essas características ainda mais.
Após seu teste, e retorno ao Atleti de El Cholo, a escultura foi acabada. E Simeone tanto quanto Griezmann, pôde ver o que agora chamo de Maradona Basco.
O fenômeno de Hagi e dos Maradona´s dependia disso. Um ciclo imenso de ascensão, queda e retorno. Um ciclo de espiritualidades até alcançar a sentença de ser meio homem e meio Deus. Meio guerreiro, meio filósofo. Meio basco, meio latino. Frequências se amontoando uma na outra. Simeone, e sua herança, entenderam muito bem o que havia na sua frente. Uma chama de Diego Armando Maradona.
Foi como se dissesse: “farei você da forma que você é”. Assim, nasceu o novo Maradona, em sua forma folclórica.
Em campo, Griezmann é a imagem e semelhança daquele gênio inquieto, porém, de certa forma, algo que ainda escapa, e só forçando os olhos, se percebe. Está naquilo que diferencia o “normal” do outro. Está no que faz Antoan ser Diego e Diego estar em Antoan. Dessa (de)formação aparece um camisa dez escudero, meio Aguirre. Que sente o coletivo na borda de seu corpo, como Dieguito. Lhe cede a vida e provoca uma convulsão capaz de confundi-los. Máxima representação de seu entorno. Veste-se, incorpora-se. Como as velhas celebrações da sua região. “É preciso um tanto de Griezmann para um Maradona. Assim, Maradona segue eterno, fazendo e se refazendo no corpo daquele que aceita a espiritualidade como um niño. Que se abre pro mundo e para as coisas com a expertise de uma criança. É fácil perceber que Griezmann não joga bola sozinho. E isso, não está apenas na aparência, ou no aspecto. Seu corpo se difere dos outros. Parece menos pesado, e sim, como se estivesse desligado da matéria. Como mito ante a realidade.
Não está disperso ou centrado demais. Vive no núcleo que forma o jogo, e por isso, é mais jogador de bola do que os outros. Assim como Maradona o foi. É (são) a fusão entre homem e bola. Basta se atentar às relações.
Este texto é in memorian