Não resta muita dúvida de que o Real Madrid é o maior clube do mundo. É, pelo menos, o maior vencedor. É o maior campeão da história do Campeonato Espanhol (35 títulos), da Champions League (14 títulos) e do Mundial de Clubes (8 títulos, unindo os troféus da Copa Intercontinental e do Mundial de Clubes da FIFA), além de ter conquistado 100 títulos oficiais até a data de publicação deste artigo. Foi eleito pela FIFA como o maior clube do século XX e, nas primeiras duas décadas do século XXI, mantém seu status com 8 títulos do Campeonato Espanhol, 6 títulos da Champions League e 5 títulos mundiais.
Por causa disso, o Real Madrid é amplamente considerado como um clube inerentemente vencedor, que tem a ambição por títulos e a mentalidade vencedora como principais norteadores. Essa noção é profundamente respaldada pela diretoria do Real Madrid por motivos de discutiremos mais tarde, e muito do jeito que o clube se promove (seja institucionalmente ou a partir dos torcedores) diz respeito a esse aspecto lúdico de uma mentalidade implacável e uma resiliente filosofia vencedora.
No entanto, há um aspecto profundamente renegado não apenas por aqueles que seguem o Real Madrid, mas pela própria instituição Real Madrid: a filosofia tática do clube, algo tão admirado e enaltecido em clubes como Barcelona, Ajax ou Bayern de Munique, que desenvolvem diversos mecanismos para perpetuá-la dentro do clube ao longo dos anos (como implantá-la nas categorias de base ou buscar apenas treinadores que sejam compatíveis com ela). Não é raro se deparar com diretores, jogadores, torcedores, jornalistas e até treinadores dizendo que o Real Madrid não tem nem quer ter uma filosofia tática, e que a filosofia do clube é apenas ganhar. Embora amplamente difundada, essa ideia é fundamentalmente falha e trabalharemos nisso aqui.
O objetivo desse texto não é forçar uma filosofia tática ao Real Madrid, mas sim analisar os times mais icônicos e vencedores da história do clube, traçar uma linha entre eles e apontar que o espírito vencedor e a frieza implacável dos merengues sempre esteve presente, mas nunca andou sozinha. Que, talvez sem perceber, ao criar a ideia de um clube galáctico e vencedor, o Real Madrid acabou criando também uma filosofia tática que se adaptou ao longo dos anos, mas que nunca perdeu sua essência. E que, para sustentar o clube, tão importante quanto o pilar mental e vencedor é o pilar esportivo.
1. Os pilares do Real Madrid
Durante os primeiros anos da Segunda República Espanhola, o Real Madrid conquistou seus dois primeiros títulos de LaLiga (1931/1932 e 1932/1933) e começava a tentar se estabelecer como um clube emergente, pronto para assumir uma posição de protagonismo em um futebol espanhol que ainda engatinhava. Essa sensação se reforçaria nos anos seguintes, onde o Real Madrid conquistaria duas vezes a Copa do Rei (1934/1935 e 1936/1937).
No entanto, a Guerra Civil Espanhola deixaria o clube em frangalhos, que teve que se reconstruir do zero e amargar um período de 10 anos sem títulos. A sede do Real Madrid foi destruída, os troféus foram saqueados, as arquibancadas do estádio foram desmontadas e o clube esteve “a ponto de ser dissolvido por Franco” (Gregorio Peces-Barba, político espanhol) por suas conexões a partidos progressistas durante a época da República. Além disso, ao fim da Guerra Civil, o time do Real Madrid contava apenas com 5 jogadores; os demais foram exilados, presos e até fuzilados.
Santiago Bernabéu assumiu a presidência do Real Madrid em 1943, 4 anos depois do fim da Guerra Civil, e viu um clube afundado em crise. Para arrecadar fundos suficientes para a reconstrução institucional do clube, Bernabéu recorreu à emissão de títulos de dívida com os sócios (cerca de 40 mil, à época) dentro um prazo de 20 anos e usando de garantia o próprio patrimônio do clube. Com os fundos angariados, Bernabéu deu início a uma total reconstrução do clube: o estádio foi reformado e chamado de Novo Estádio Chamartín (mais tarde, seria renomeado para Estádio Santiago Bernabéu, em homenagem ao presidente) e as instalações do clube passaram por uma drástica revitalização. Desse modo, Bernabéu colocou o Real Madrid entre os clubes mais modernos e bem estruturados de toda a Europa.
O novo estádio estrearia alguns meses depois da conquista da Copa do Rei de 1946, que encerrou o jejum de títulos do clube que já durava 10 anos. Os torcedores do Real Madrid viam uma luz no fim do túnel e a diretoria já conseguia respirar, mas Santiago Bernabéu não; ele dava início à sua próxima fase na presidência merengue. Com o clube bem estruturado e um estádio moderno que aumentava as receitas exponencialmente, Bernabéu começou a mirar mais alto.
1.1. O pilar esportivo: contracultural na Espanha
A temporada 1953/1954 pode ser considerada como a pedra fundamental do Real Madrid que conhecemos hoje. Depois da total reforma do clube, Bernabéu começou a reforçar o time em um esboço do que hoje chamamos de Galácticos. Durante a segunda metade dos anos 40 e o começo dos anos 50, o presidente contratou nomes relevantes para o time, como os espanhóis Luis Molowny, José María Zárraga e Joseíto ou o argentino Roque Olsen. No entanto, as contratações mais relevantes para o período foram as de um jovem e talentoso ponta espanhol que vinha do Racing Santander e de um grande meia-atacante argentino que saía do futebol colombiano: em 1953, se juntaram ao Real Madrid Francisco “Paco” Gento e Alfredo di Stéfano.
A chegada de Alfredo di Stéfano e de Paco Gento ao Real Madrid representava a coroação do projeto de reconstrução do clube. Se os primeiros anos pós-Guerra Civil foram de um Real Madrid preocupado apenas em sobreviver enquanto instituição e a década de 40 mostrou um clube que priorizava o aprimoramento de sua estrutura como um todo, a primeira metade da década de 50 marcou um Real Madrid que, já entre os clubes mais modernos e bem estruturados da Europa, buscava montar um time à altura da organização, modernidade e solidez que o clube já demostrava ter. Com o dinheiro que o Novo Estádio Chamartín trazia junto do novo modelo institucional que o clube apresentava, o Real Madrid deixava de lado a posição de “clube emergente” no cenário nacional e começava a refletir um projeto sólido que poderia levar os merengues ao topo da Europa. Um clube repaginado, moderno e com poder de investimento era o cenário perfeito para atrair jogadores ao redor do mundo e, enfim, construir um time à altura do que Santiago Bernabéu sonhava. Depois de mais de 20 anos de jejum, o Real Madrid estava pronto para conquistar o Campeonato Espanhol mais uma vez.
No entanto, uma contratação específica que Santiago Bernabéu para esse período normalmente passa despercebida e não recebe o devido valor, pois não tinha o mesmo apelo dos dribles de Gento, dos gols de Roque Olsen ou da genialidade de Di Stéfano. Na verdade, essa contratação nem entrava em campo, mas era tão importante (ou mais importante) que quase todos os jogadores que entravam. Após o ex-jogador espanhol Juan Antonio Ipiña deixar o cargo de treinador do Real Madrid ao fim da temporada 1952/1953, Santiago Bernabéu decidiu que um time estrelado precisaria de um treinador à altura. Por isso, o presidente apostou em uma decisão pouco ortodoxa e relativamente arriscada: provavelmente inspirado por Héctor Scarone, uruguaio que treinara o Real Madrid logo antes de Ipiña e que fora o treinador de Di Stéfano no Millionarios, Santiago Bernabéu decidiu não contratar outro espanhol para comandar o time e voltou a olhar com carinho para a América do Sul. Em maio de 1953, o uruguaio Enrique Fernández Viola assumiu o cargo de treinador do Real Madrid, pronto para moldar uma identidade tática que se mostraria algo contracultural na Espanha, mas ao mesmo tempo se tornaria a pedra fundamental para as conquistas do clube merengue.
O futebol espanhol surgiu sob influência direta inglesa no sudoeste do país, onde mineradores ingleses que trabalhavam perto do Rio Tinto se assentaram e começaram a disseminar a prática de futebol pela região, mas foi no País Basco onde o esporte se estabeleceu de fato. O Athletic Club, fundado na cidade de Bilbao em 1903 por britânicos que trabalhavam por lá, foi a primeira grande potência do futebol espanhol e se manteve na vanguarda nacional por várias décadas. Seu estádio, o San Mamés, foi o primeiro estádio de futebol construído na Espanha, em 1913. A década de 1910 foi essencial para o futebol Basco e, por consequência, o futebol espanhol como um todo: sob influência inglesa (especialmente de Sr. Shepherd, o primeiro treinador da história do Athletic Club), a identidade tática espanhola se transformava em algo muito parecido com o que era praticado na Inglaterra no início do Século XX. Um jogo rápido, de passes longos e muito vigor físico, que buscava alargar o campo e atacar o adversário direta e velozmente, aproveitando a amplitude do campo para criar combinações pelas pontas que permitiam que a jogada se desenvolvesse de forma mais acelerada. Em suma, a Espanha abraçava a tradição posicional e vertical da Inglaterra: ataques amplos, com jogadores distantes uns dos outros de modo a explorar a amplitude do ataque, passes longos e diretos e posições mais fixas, visando mais a verticalidade do que a combinação de passes. Os Jogos Olímpicos de 1920, disputados na Antuérpia, consagraram esse estilo após uma vitória da Espanha sobre a Holanda por 3 a 1 na disputa pela medalha de prata. No dia seguinte, um jornal holandês, comparando o estilo físico e agressivo do time espanhol à ferocidade das tropas da Espanha que invadiram e saquearam a Antuérpia em 1576, apelidou a Seleção Espanhola de la furia. O termo sintetizava muito bem o estilo que o povo espanhol começava a abraçar, enaltecendo a raça e a vontade da seleção, e acabou ficando tão popular que é usado até hoje.
No entanto, ao decidir o estilo que queria que o Real Madrid seguisse, Santiago Bernabéu olhava para a tradicional la furia de forma um tanto cética. Terminada a reconstrução do clube, o presidente queria transformar o Real Madrid em um time estrelado, atrativo, midiático e que apresentasse em campo uma equipe com grandes jogadores e um futebol que fizesse jus aos talentos individuais que ele vinha contratando. Por isso, o futebol físico, agressivo, reativo e excessivamente vertical que representava la furia causava desconfiança em Bernabéu, que acreditava que esse estilo acabaria suprimindo um time talentoso em prol da intensidade e agressividade. Por isso, Bernabéu voltou o olhar para um estilo novo que ainda engatinhava em solo espanhol: a partir da influência escocesa a partir de treinadores britânicos no Athletic Bilbao e na influência húngara a partir dos jogadores László Kubala, Sándor Kocsis e Zoltán Czibor no Barcelona, o jogo danubiano encontrava seu caminho na Espanha.
“Jogamos futebol como Jimmy Hogan nos ensinou. Quando a história do nosso futebol for contada, seu nome deve ser escrito em letras douradas” — Gusztáv Sebes, treinador da Seleção Húngara que chegou à final da Copa de 1954.
O jogo danubiano foi uma escola futebolística fundada pelo inglês Jimmy Hogan, treinador que perdeu a fé no estilo vertical e físico da Inglaterra, se apaixonou pelo jogo escocês de passes e transformou espalhar esse estilo pela Europa em seu objetivo de vida. Sua influência no futebol praticado na Europa Central (principalmente na Áustria e na Hungria; daí o nome “jogo danubiano”, que faz referência ao Rio Danúbio) seria algo que mudaria o futebol do velho continente para sempre. A ideia de Hogan, que rapidamente se tornaria a filosofia futebolística desses países, era que o jogo não deveria se desenvolver a partir de um time espaçado que avançava em campo com passes longos e jogadas verticais, mas sim através da aproximação dos jogadores para produzir toques curtos e em progressão. A prioridade do time não deveria ser o domínio dos espaços do campo, onde cada jogador tinha sua posição demarcada e tal posição deveria ser respeitada, mas sim o domínio do tempo, isto é, o domínio das interações, das relações de mobilidade entre os jogadores. Cada jogador deve exercer sua função, e o time avança em campo a partir disso. Por isso, esse estilo mais tarde ganharia o nome ataque funcional (por József Bozsik) ou relacionismo (por Jamie Hamilton). O domínio do tempo das ações dos jogadores, das relações de mobilidade entre eles, era algo que valorizava muito mais o talento individual, já que não há “amarras” posicionais que limitavam as interações entre os jogadores. Além disso, esse estilo induzia um jogo mais pausado, onde o time buscava avançar em campo através de passes curtos entre jogadores muito próximos uns dos outros ao invés de forçar passes longos e verticais para jogadores mais distantes. Isso, sim, atraiu a atenção de Santiago Bernabéu, mas o presidente não mirou nem a versão escocesa do Athletic Bilbao nem a versão húngara do Barcelona. Bernabéu mirou a versão sul-americana do ataque funcional.
“Como o tango, o futebol floresceu nas favelas. Nas canchas de Montevidéu e Buenos Aires, nascia um estilo. Uma maneira própria de jogar o futebol ia abrindo caminho, enquanto uma maneira própria de dançar se afirmava nos pátios milongueiros. Os bailarinos desenhavam filigranas, fazendo floreios num tijolo só, e os futebolistas inventavam sua linguagem no minúsculo espaço onde a bola não era chutada, mas retida e possuída, como se os pés fossem mãos trançando o couro. E nos pés dos primeiros virtuosos nativos nasceu o toque: a bola tocada como se fosse violão, fonte de música” — Eduardo Galeano, jornalista uruguaio.
A milhares de quilômetros de distância de Jimmy Hogan, do jogo escocês de passesm do Wunderteam austríaco da década de 1930 e dos Mágicos Magiares da década de 50, uma escola futebolística também encontrava seu caminho a partir do domínio do tempo. O futebol de rua da América do Sul, que era uma ode à inventividade e ao improviso de quem o praticava, acabou se mostrando um terreno muito fértil para um futebol relacionista, artístico e que valorizava o talento acima de qualquer coisa. Nas estreitas ruas das favelas, um novo futebol surgia e o estilo argentino, uruguaio e brasileiro se consolidava: visando o domínio do tempo para impulsionar as relações e interações entre seus talentosos jogadores, a América do Sul construía seu próprio ataque funcional, que ainda tinha a aproximação de jogadores, a organização a partir das funções e os toques curtos e em progressão como pilares, mas que apostava mais nas conduções de bola e nas jogadas individuais dos jogadores do que a versão húngara, que preferia seguir um rigor tático maior. A cultura sul-americana era uma mina de ouro para Bernabéu, que encontrara seu Santo Graal: os talentos de Roque Olsen e Alfredo di Stéfano mostravam o caminho, pois a resposta estava na América do Sul.
A contratação de Enrique Fernández simbolizava uma ruptura em relação ao tradicional futebol espanhol e o primeiro passo em direção à identidade tática do Real Madrid. Embora ele não tenha sido o primeiro sul-americano a comandar os merengues (o também uruguaio Hector Scarone fizera isso 2 anos antes), foi ele que imprimiu a cultura sul-americana na alma do Real Madrid. Os talentos disruptivos de atacantes como Joseíto, Molowny, Gento, Roque Olsen e Di Stéfano formavam um cenário perfeito para a implementação do ataque funcional sul-americano, e o sucesso desse time tirou o Real Madrid de um jejum de 20 anos sem ganhar o Campeonato Espanhol. Não havia, dentro das ideias de Enrique Fernández, o conceito do domínio dos espaços ou de posições fixas: o time se organizava a partir das funções dos jogadores. Molowny e Di Stéfano eram os armadores do time e se aproximavam na faixa esquerda do campo para trocar passes, levar a bola dos volantes aos atacantes, desenhar tabelas, controlar o ritmo do jogo e comandar as jogadas do time. Gento era um ponta clássico, mas o ataque funcional de Enrique Fernández proibia que ele ficasse preso à linha lateral: amarrar um talento disruptivo e inventivo como Gento à lateral do campo seria uma heresia. Assim, o jovem espanhol era livre para sair de uma posição aberta e criar combinações com Molowny e Di Stéfano por dentro. O mesmo valia para Joseíto, o ponta-direita: as jogadas normalmente saiam a partir do lado esquerdo (já que aquele era o setor onde os jogadores mais talentosos do time preferiam circular), mas isso não impedia que Joseíto participasse constantemente delas. Por isso, o espanhol saía da ponta-direita e, a partir de um movimento em diagonal, se aproximava do setor da bola e tinha total liberdade por lá: podia atuar como um armador a mais ao lado de Molowny e Di Stéfano ou se portar como um atacante incisivo como Roque Olsen. Os volantes tampouco ficavam de fora: Zárraga, o volante pela esquerda, ficava na base da jogada e mais aberto, praticamente como um lateral-esquerdo, enquanto Miguel Muñoz, o volante pela direita, fazia um movimento em diagonal para também se posicionar na base da jogada, mas mais por dentro.
Em um time de assimetrias, diagonais, tabelas, toques curtos, jogadores realizando suas próprias funções e apresentando uma enorme variação de movimentos, o Real Madrid começava a pavimentar não apenas sua história, mas sua cultura. Ao final da temporada 1953/1954, a marca sul-americana já estava irreversivelmente impressa na alma do clube merengue, e nem a demissão de Enrique Fernández no meio da temporada 1954/1955 seria capaz de mudar isso. O sucessor do uruguaio acabou sendo José Villalonga, um espanhol que fazia parte da comissão técnica de Enrique Fernández e não deturpou o trabalho do uruguaio para implantar um estilo mais espanhol, mas associou-o à sua especialidade (o preparo físico) para construir um time igualmente artístico e inventivo, mas ainda mais sólido. A marca sul-americana no Real Madrid era tão forte que após a saída de José Villalonga do clube por causa de atritos com Santiago Bernabéu, os dois treinadores que o seguiram eram sul-americanos que seguiam fielmente o jeito sul-americano de jogar.
1.2. O pilar mental: 90 minutos no Bernabéu são muito longos
“A camisa branca do Real Madrid pode se manchar de suor, de sujeira e até de sangue, mas nunca de vergonha” — Alfredo di Stéfano.
Dedicarei essa sessão não a uma análise histórico-cultural como a anterior, mas sim a uma crônica, pois esse capítulo da história do Real Madrid não pode ser explicado a partir da lógica. Aliás, muito do que torna o Real Madrid o clube que é não parte de lógica alguma, pois o Real Madrid não é um clube que faz questão de ser entendido, apenas de ser sentido. A mística da camisa blanca, das grandes noites europeias e, principalmente, a mística do Santiago Bernabéu são peças fundamentais do que é o Real Madrid de hoje.
O Real Madrid tem inúmeras histórias dignas de serem contadas, como a vez que o Real Madrid, em um confronto contra o Partizan Belgrado, goleou o adversário por 4 a 0 na Espanha, mas perdia por 3 a 0 por causa de uma má escolha de chuteiras e uniformes para lidar com o frio e hostil da Sérvia. Vendo um time apático e atônito em campo, Alfredo di Stéfano decidiu “resolver por si mesmo” e começou a jogar de zagueiro a partir da metade do segundo tempo (a alteração acabou funcionando, e o jogo terminou 3 a 0 para o Partizan). Ou então as inúmeras viradas no Campeonato Espanhol de 2006/2007, onde o Real Madrid conquistou pontos nos últimos 10 minutos em 19 partidas diferentes e conseguiu vencê-lo a partir disso. Há inúmeras outras, e todas resumem muito bem o espírito vencedor do clube, mas nenhuma como a Copa da UEFA de 1985/1986.
A trajetória maluca na Copa da UEFA de 1985/1986 começou dando singelas pistas do que viria a seguir: no primeiro jogo da primeira fase (a competição não tinha fase de grupos àquela altura), o Real Madrid foi surpreendido pelo AEK Atenas e saiu derrotado por 1 a 0 na partida de ida, disputada na Grécia. A volta, disputada no Santiago Bernabéu, mostrou toda a força de um time formado por Butragueño, Hugo Sánchez, Chendo, Santillana e Juanito, e o Real Madrid goleou o AEK por 5 a 0. A fase seguinte foi um pouco mais tranquila: uma vitória por 2 a 1 na ida e um empate sem gols na volta assegurou a vitória do Real Madrid sobre o clube soviético Chornomorets Odesa.
A partida de ida das oitavas de final da Copa da UEFA parecia determinar o fim da participação do Real Madrid naquela edição. O Borussia Mönchengladbach aplicou, na Alemanha, uma categórica goleada de 5 a 1 sobre os merengues. Juanito, veterano do time, teria saído de campo diretamente para o vestiário e, lá, esbravejado com todos em campo sobre a postura derrotista apresentada na Alemanha. A partida de volta acabaria se tornando uma das grandes páginas da história do Real Madrid: com dois gols de Santillana e dois gols de Valdano, os merengues devolveram a goleada da ida e venceram o jogo por 4 a 0 e garantindo a classificação pela regra dos gols fora no que até hoje é um dos resultados mais impactantes da história do clube. As quartas de final também foram razoavelmente tranquilas e, apesar de um susto no jogo de volta onde o Real Madrid perdeu por 2 a 0, a vitória por 3 a 0 no jogo de ida garantiu a classificação sobre o clube suíço Neuchâtel Xamax.
A grande história daquela temporada viria nas semifinais: o Real Madrid enfrentaria a Internazionale de Tardelli e Rummenigge, um dos melhores times do campeonato e que marcara, até então, 16 gols naquela edição. O jogo de ida foi disputado no San Siro, e o Real Madrid voltou a ser categoricamente superado pela Internazionale com dois gols de Tardelli e um contra de Salguero, enquanto o gol solitário de Valdano descontava para os merengues. O 3 a 1 acabou saindo barato, e o Real Madrid parecia ter gastado toda a sorte contra o Borussia Mönchengladbach. No entanto, o clima após a derrota era drasticamente diferente daquele fúnebre que marcou o fim do jogo de ida contra o Borussia. O melhor símbolo disso foi Juanito que, ao invés de esbravejar contra os jogadores do Real Madrid, se virou aos jogadores da Internazionale que comemoravam o resultado e disse em italiano: “90 minuti en el Bernabéu son molto longo”.
“Meia hora antes do jogo começar, todo o elenco estava convencido de que iríamos nos classificar” — Emilio Butragueño.
Acabou que os 90 minutos que Juanito previra se transformaram em 120. Os jogadores entraram em um Santiago Bernabéu lotado, e os 120 mil torcedores ali presentes tinham a mesma sensação dos jogadores do Real Madrid: o time ia se classificar. Os jogadores se portavam como leões em campos, e as arquibancadas explodiam em gritos de apoio aos jogadores. O tempo regulamentar terminou com 3 a 1 no placar a favor do Real Madrid, com 2 gols de Hugo Sánchez e 1 de Gordillo, contra um solitário gol de pênalti do irlandês William Brady pela Inter. A prorrogação mostrou um Real Madrid ainda mais ávido e imparável, e um doblete de Santillana sacramentou a goleada por 5 a 1 e carimbou o passaporte do Real Madrid para a final. Após o fim daquela partida apoteótica, Juanito foi comemorar perto da torcida merengue: ali, ele era mais que um ídolo, mais que um jogador. Ele era um torcedor em campo, alguém que vestia a camisa blanca e a sujava de tudo, menos de vergonha. Seus socos no ar e gritos efusivos encarnavam o sentimento do torcedor, que se via em campo na figura de Juanito.
Aquela campanha terminaria com o título da Copa da UEFA após uma final contra o Colônia, da Alemanha, mas nem a goleada por 5 a 1 sobre os alemães eram capazes de ofuscar o brilho da virada espetacular sobre a Internazionale: se os sul-americanos construíram o jeito de jogar do Real Madrid, foi um espanhol quem construiu o jeito de “sentir” o Real Madrid. A importância de Juanito na formação do DNA do clube não deve ser subestimada: ele não tinha o talento nobre e plástico de figuras como Puskás e Di Stéfano nem de seus companheiros de time Butragueño e Hugo Sánchez. Ele não era, nem de longe, um galáctico. Mas ninguém vestiu a camisa do Real Madrid como ele, nem personificou tanto o sentimento de um torcedor como ele. Sua famosa frase “90 minutos no Bernabéu são muito longos” acabou se tornando o lema do espírito vencedor do Real Madrid, pois aquilo estabeleceria muitas coisas. A primeira e mais importante é que nenhum jogador que não desse seu máximo pelo time durante os 90 minutos de uma partida não poderia pisar no clube; nem conseguiria, na verdade, pois ele sucumbiria rapidamente à pressão de vencer a todo custo que paira sobre o clube. No entanto, outra coisa surgia dali: nunca pode se dar o Real Madrid como morto. Essa filosofia seria o principal guia para a conquista da Champions em 2021/2022, que contou com viradas espetaculares no Santiago Bernabéu e que faziam jus à mística do estádio merengue. A importância de Juanito para o Real Madrid é tamanha que a torcida do clube dedica um canto para o ex-jogador e, aos 7 minutos de todos os jogos (referenciando a camisa 7 que ele usava), todos cantam em uníssono:
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2. O jeito Madrid de se jogar futebol
O espírito vencedor do Real Madrid é algo tão único do clube quanto lhe é indissociável: não existe o Real Madrid sem a aura vencedora, o espírito de “tubarão branco” que o clube exala principalmente em noites europeias. A sensação de que, não importa o que aconteça, o Real Madrid sempre conseguirá vencer no final.
No entanto, sem renegar a importância dessa filosofia vencedora do clube, deixaremos ela de lado nesse texto, pois o foco dele é outro. O foco é mostrar que tão importante quanto a mentalidade vencedora do Real Madrid é o jeito que o time se porta em campo. A ultravalorização da mentalidade vencedora do time nas últimas décadas, embora tenha transformado o Real Madrid no maior campeão europeu do século XXI, acabou enaltecendo o aspecto lúdico do clube de modo a renegar jogo do time dentro das 4 linhas e desvalorizando a ideia de uma filosofia futebolística própria do Real Madrid.
É muito confortável para os diretores do Real Madrid desvincularem o clube de uma filosofia mais definida, resumindo-a a “jogar ofensivamente”, pois isso abre um maior horizonte para a contratação de jogadores e treinadores sem precisar dar muita satisfação à torcida além de um perfil ofensivo e galáctico. Embora seja muito difícil apontar falhas nessa política, já que o Real Madrid venceu 5 Champions League em 8 anos, ela tem sim suas implicações, já que a cada complicação esportiva que o clube enfrenta ele parece flertar com uma profunda crise de identidade. Nomes como Rafa Benítez ou Julen Lopetegui passaram pelo clube nos últimos anos, e outros como Antonio Conte ou Thomas Tuchel estiveram frequentemente no radar para o cargo de treinador do Real Madrid. Por isso, respeitando e enaltecendo sempre a mentalidade vencedora do Real Madrid, deixarei-a de lado por agora para conceituar a filosofia tática do clube, a linha esportiva que liga todos os grandes times da história do Real Madrid.
2.1. Os Reis da Europa
Depois de 2 anos e meio com José Villalonga, o sucessor de Enrique Fernández, no comando (que rendeu ao Real Madrid dois títulos de LaLiga em 1954/1955 e 1956/1957 e dois títulos da Champions League, então Copa dos Campeões da Europa, em 1955/1956 e 1956/1957) e mais dois anos com o argentino Luis Carniglia (que rendeu ao clube mais um título de LaLiga em 1957/1958 e mais dois títulos da Copa dos Campeões da Europa em 1957/1958 e 1958/1959), o status do Real Madrid ia muito além da estrutura reformulada do clube e já se mostrava dentro de campo. Santiago Bernabéu colheu na segunda metade da década de 50 aquilo que plantou na primeira metade, e agora tinha em mãos um time que ia além da grife e do valor de seus jogadores: o Real Madrid esbanjava seu futebol funcional e ofensivo em campo e ganhava sucessivamente, na Espanha e na Europa, a partir dele. Ao fim da temporada 1958/1959, quando Luis Carniglia deixou o clube poucos dias depois de ter vencido a Copa dos Campeões da Europa (e de ter batido o Santos de Pelé por 5 a 3 em um amistoso, inclusive), o Real Madrid era indiscutivelmente o melhor time do mundo, e qualquer treinador que chegasse para assumir o posto que Carniglia deixara sofreria uma pressão à altura do tamanho que o Real Madrid atingira.
Para assumir o valorizado, porém ingrato trabalho de treinador do Real Madrid, Santiago Bernabéu contratou um sul-americano pela terceira vez consecutiva (José Villalonga não foi exatamente contratado, já que assumiu como interino no meio de uma temporada e foi efetivado no cargo), mas dessa vez foi o futebol brasileiro que chamou a atenção do presidente. Após o título mundial do Brasil em 1958, não havia dúvidas que o futebol brasileiro não estava apenas florescendo, mas se tornando indiscutivelmente um dos melhores do mundo. O futebol no Brasil passava por sua primeira grande onda, influenciada por nomes como Flávio Costa e Dori Kürschner durante as décadas de 30 e 40 e perpetuada por nomes como Vicente Feola e Béla Guttman durante a década de 50. Lentamente, o Brasil criava uma nova sensação tática que renderia ao país 3 títulos mundiais em 12 anos: o 4–2–4 danubiano e funcional. Para trazer essa onda à Europa, Bernabéu curiosamente não apostou em um brasileiro: em julho de 1959, o Real Madrid tirou Manuel Fleitas Solich do Flamengo para contar com o paraguaio como seu novo treinador. Apesar de não ser brasileiro, Fleitas Solich foi importantíssimo para a implementação do 4–2–4 no Brasil e foi tricampeão carioca com o Flamengo de Evaristo e Zagallo na primeira metade da década de 50. Além disso, era um fiel praticante do futebol funcional que tornara a Argentina o grande time da década de 40, a Hungria o grande time da primeira metade da década de 50 e o Brasil, o grande time da segunda metade da década de 50.
Fleitas Solich não era o único que deixava o Rio de Janeiro em direção a Madri: em sua viagem ao Brasil, Santiago Bernabéu fechou duas contratações importantíssimas. A primeira foi do ponta-direita Canário, do América do Rio, que vinha para preencher a lacuna no elenco deixada por Raymond Kopa, que saiu do Real Madrid para voltar ao Stade de Reims (embora não chegasse, nem de longe, com o mesmo status). A segunda não veio exatamente por necessidade; aliás, era o símbolo perfeito do perfil galáctico de muitas das contratações de Santiago Bernabéu. Depois de ter contratado nomes como Alfredo di Stéfano, Paco Gento, Héctor Rial, Raymond Kopa e mais recentemente Ferenc Puskás, Santiago Bernabéu levou ao Real Madrid o meio-campista Didi, campeão do mundo pelo Brasil e eleito melhor jogador da Copa do Mundo pela FIFA, que até então estava no Botafogo.
Chegando no Real Madrid, a primeira coisa que Fleitas Solich percebeu era que a tarefa de implantar o 4–2–4 no clube merengue era mais difícil do que parecia. A cultura europeia do WM ainda estava demasiadamente enraizada no time, que havia se acostumado a jogar com 3 defensores e a ter 2 volantes mais defensivos. Além disso, o 4–2–4 tinha problemas em abrigar Alfredo di Stéfano, que não via um encaixe imediato nem com uma das posições no meio-campo, nem como um falso ponta nem como um dos atacantes. Assim, Fleitas Solich rapidamente dispensou a ideia de usar seu amado 4–2–4 para respeitar as necessidades e confortos do elenco. O paraguaio decidiu seguir a linha dos treinadores que o antecederam, que usavam uma variação de WM que tinha Di Stéfano como falso atacante. No entanto, Fleitas Solich promoveu uma série de mudanças para colocar Didi no time e implementar sua visão única de futebol, e isso criou algumas rupturas em relação aos anos anteriores. O primeiro e mais óbvio foi abrir mão de um atacante mais fixo: seja com Roque Olsen, Héctor Rial ou Enrique Mateos, o Real Madrid da década de 50 sempre teve um atacante mais incisivo e menos participativo, não exatamente um camisa 9, mas um jogador que se posicionava mais próximo da área e que normalmente se portava como a peça mais avançada e agressiva do time, compensando a falta da presença de área de seus companheiros de ataque que atuavam mais como armadores. Além disso, mudou a ideia de ter uma dupla de atacantes com Di Stéfano por trás para ter um só atacante à frente de uma dupla de meias. Isso implicava em duas mudanças: a primeira era que Di Stéfano não começaria o jogo como a peça central do ataque como antes, mas sim como o meia-atacante pela esquerda, enquanto Didi seria o meia-atacante pela direita. Os dois formariam um quadrado no meio de campo junto dos dois volantes, que foram mantidos no time. A segunda foi a transformação de Puskás na figura central do ataque, como um falso 9. Embora o major galopante tenha sido um goleador espetacular ao longo de sua carreira e também fosse um armador de elite, ele nunca havia sido o falso 9 de um time. Tanto no Honvéd como na Seleção Húngara, sua posição sempre fora a do atacante pela esquerda, e a função de falso 9 que marcou a Hungria naquele período era de Hidegkuti. A mudança que Fleitas Solich promoveu podia ser menos radical que ir para um 4–2–4, mas definitivamente não foi suave e, embora seu esquema parecesse uma versão mais “tradicional” do WM, seu funcionamento não era nem um pouco tradicional.
Mais importante que qualquer ajuste tático, Fleitas Solich se manteve fiel ao estilo que o tornou treinador e que consagrou o Real Madrid como o grande clube da década de 50, e isso garantiria o sucesso da temporada: Fleitas Solich implementou no time uma versão autêntica do ataque funcional sul-americano. Quando o time estava em campo, pouco importava se Puskás era o atacante pela esquerda ou o falso 9 ou se Di Stéfano começaria em uma posição central ou mais à esquerda, pois no jogo cada jogador exercia a sua função. Quando o Real Madrid tinha a bola, o time buscava se aglomerar ao redor dela e, como três dos jogadores mais talentosos do time caíam mais pelo lado esquerdo (Gento, Puskás e Di Stéfano), era por lá que o time se aproximava.
O impacto ofensivo dos três zagueiros era muito pequeno (para não dizer nulo) e, salvo algumas investidas com a bola de Santamaría, o zagueiro central, a participação deles se limitava a iniciar a saída de bola quando o goleiro Domínguez não recorria ao chutão. À frente do trio de zaga ficavam os dois volantes, e era aí onde os mecanismos ofensivos começavam. Em uma lógica muito parecida com a do Real Madrid de Enrique Fernández, o volante pela esquerda (normalmente Zárraga ou Ruiz) ficava na base da jogada e era o primeiro homem do meio-campo, em uma posição bem recuada que está entre a de um lateral armador e a de um volante passador. Ele era a primeira peça da saída de bola à frente dos zagueiros e contava bastante com suas arrancadas para carregar a bola até o ataque. Além disso, sua posição mais recuada implicava em uma grande dedicação defensiva para bloquear os contra-ataques por ali. O volante pela direita (Vidal, normalmente) ficava levemente mais avançado e era o segundo homem do meio-campo. Ele também atuava em uma posição entre a de um lateral ou a de um armador, mas sua função era diferente daquela do volante pela esquerda. Já que ele partia do lado direito, ele fazia uma diagonal defensiva para se posicionar próximo da zona da bola, e sempre era uma opção de passe mais recuada além de também participar bastante da saída de bola. No entanto, ele tinha mais um papel: Vidal (ou qualquer outro jogador que ocupasse aquela posição) era um típico meio-campista “box-to-box”, ou seja, um jogador que atua tanto mais próximo da própria área quanto da área adversária. Assim, muitas vezes ele era encarregado de atacar o lado direito e pisar na área como um elemento surpresa, acionado a partir de uma inversão.
No Real Madrid, Didi atuava em uma posição mais avançada que na Seleção Brasileira. Enquanto no Brasil Didi normalmente era o segundo homem do meio-campo e um amador mais recuado que atuava mais próximo do primeiro volante, o perfil mais defensivo dos volantes do Real Madrid significava que muito do seu talento se perderia se ele jogasse naquela faixa. Portanto, Fleitas Solich adiantou-o e Didi começou a jogar como o terceiro homem do meio-campo. Embora ele partisse de uma posição à direita de Di Stéfano, o ataque funcional de Fleitas Solich lhe dava total liberdade para circular pelo campo. Assim, ele normalmente era o jogador mais central da equipe. Por estar acostumado a uma faixa mais recuada, Didi frequentemente recuava de sua posição mais avançada para construir o jogo junto dos volantes, atuando assim como um autêntico maestro: ele recuava para começar a saída de bola, recebia a bola dos volantes para levá-la ao ataque, infiltrava para atacar a área adversária e ainda armava o jogo no terço final como um típico camisa 10. Didi rapidamente dominou o meio-campo do Real Madrid e seu talento acabou dando uma nova dinâmica ao time: uma posse de bola mais trabalhada e uma construção mais pausada. O refino técnico e a visão de jogo de Didi significava que Di Stéfano não estava mais sozinho na tarefa de levar a bola da defesa ao ataque, pois agora tinha a seu lado um jogador extremamente talentoso e ainda mais confortável armando o time de posições mais recuadas. A chegada de Didi deu ao Real Madrid um repertório muito maior ao atacar; agora, o time não dependia apenas das movimentações e trocas de passe rápidas e intensas, pois ganhava uma peça que dava mais pausa e refino técnico à armação.
No entanto, a chegada de Didi não ofuscava a função de Di Stéfano. Pelo contrário: Didi apenas complementava o jogo do hispano-argentino, que era indiscutivelmente o dono do time. Di Stéfano caía muito pelo lado-esquerdo, sua faixa de campo preferida, e muitas vezes era visto atacando a ponta quando Gento se movia para o centro do ataque, mas sua posição primordial era bem no centro do ataque do Real Madrid. Seu status de dono do time era facilmente visto em campo: os movimentos e interações dos outros jogadores giravam em torno dele. Ele era o principal organizador e, embora Didi tenha sido uma ótima adição, a “palavra final” de onde, como e quando a bola deveria ir, por onde o time deveria atacar e qual seria o ritmo do jogo era sempre de Di Stéfano. A chegada de Puskás no clube na temporada anterior apenas potencializou isso: Di Stéfano via no húngaro uma garantia de gols tão grande que não se sentia obrigado a ficar sempre próximo da área adversária e se via mais livre para circular pelo campo sem a “obrigação” de ser o principal goleador do time a todo momento. Di Stéfano encarnava o futebol funcional do Real Madrid: era impossível atribuir-lhe uma posição. Ele não era um volante, um meio-campista, um meia-atacante, um segundo-atacante, um ponta ou um centroavante, mas sim tudo ao mesmo tempo. O hispano-argentino podia tanto imprimir velocidade e intensidade pela ponta ou atacar a área como um centroavante goleador como também receber a bola em faixas recuadas e organizar o meio-campo do time. Ao final da temporada 1959/1960, Di Stéfano disputou 34 jogos, marcou 23 gols e deu 25 assistências: foi sua temporada com menos gols marcados desde que chegara ao Real Madrid, mas também a com mais assistências distribuídas em toda a sua passagem pelo clube merengue. Esses números, embora frios, resumiam muito bem o papel de Di Stéfano no Real Madrid: um armador que se sentia confortável em atuar longe da área adversária e que circulava por todo o campo, mas que não deixava de entregar um volume ofensivo extraordinário.
Ferenc Puskás disputou a temporada 1959/1960 com 32 anos e lutando contra problemas físicos; logo, o Real Madrid não tinha no húngaro aquele atacante que impressionou o mundo no começo da década de 50 com seu físico implacável, arrancadas imparáveis e chutes potentes. Em contrapartida, o Real Madrid tinha um atacante extremamente completo. Podia não ter o físico ou o ímpeto de outrora, mas tinha total controle de todas as ações do ataque: era um autêntico trequartista. À medida que envelhecia, Puskás desenvolvia seu jogo a partir de inteligência e refino técnico. Ele não era mais o canhão que explodia pelo lado esquerdo do ataque, mas era inteligentíssimo ao se movimentar, sair da área para armar o ataque, receber a bola de costas, distribuir passes excelentes e, claro, sem deixar de ser uma força da natureza quando o assunto era volume ofensivo. Ao final da temporada 1959/1960, Puskás disputara 36 jogos, marcara 49 gols (segunda melhor temporada da sua carreira no quesito) e ainda distribuíra 26 assistências (também sua segunda melhor temporada da carreira nesse quesito). O Puskás de 1959/1960 era o jogador perfeito para o time que Fleitas Solich montara: no ataque funcional do paraguaio, Puskás não era a peça central estática do ataque que serviria para fixar os zagueiros adversários e ser alvo de bolas longas, mas sim um armador extremamente técnico e talentoso que tinha controle de todas as ações do ataque. Palavras não são suficientes para descrever a enormidade que foi a temporada 1959/1960 de Puskás: ela vai muito além da impressionante marca de 2,08 participações diretas em gol por jogo. O húngaro foi, sem sobra de dúvidas, o melhor jogador do Real Madrid na temporada. Embora Di Stéfano e Didi fossem essenciais no controle e na armação do jogo, todo o ataque girava em torno de Ferenc Puskás. Parte do “acordo” entre ele e Di Stéfano que permitia que o hispano-argentino andasse mais livre pelo campo implicava em um protagonismo maior do húngaro no ataque, e foi exatamente isso o que aconteceu. Assim, Puskás agindo como o trequartista do ataque, ele era muito mais que a máquina de fazer gols que as estatísticas apontam: sua transformação em um atacante completo e em um espetacular armador o fizeram ser o melhor jogador do Real Madrid, mesmo disputando o posto com Di Stéfano e Didi.
Por fim, Fleitas Solich atribuía papéis diferentes aos dois pontas. Gento, o ponta-esquerda, era o ponta do “lado forte”, isto é, o lado que concentrava o maior número de jogadores. O ataque funcional de Fleitas Solich encorajava que os jogadores se aproximassem para que eles pudessem estabelecer suas relações de mobilidade mais facilmente e, por causa da predisposição natural de Puskás e Di Stéfano de cair mais pela faixa esquerda do campo, era por ali que o time se concentrava. Por isso, Gento tinha mais jogadores por perto e, consequentemente, mais possibilidades de interação. Desse modo, Gento era muito mais que um simples ponta e, sob Fleitas Solich, se tornou um atacante mais completo. Sua velocidade implacável e seu afiadíssimo 1 contra 1 acabavam empurrando Gento para uma posição mais avançada, como um atacante incisivo, e frequentemente era o jogador mais avançado do time quando Puskás e Di Stéfano recuavam para armar o ataque. Além disso, Gento tinha bastante liberdade para cair por dentro com movimentos em diagonais, e suas tabelas rápidas com Di Stéfano e Puskás eram uma arma muito usada pelo Real Madrid.
Herrera, por sua vez, era o ponta do “lado fraco”, ou seja, o lado mais vazio do ataque. Por isso, seu papel era outro: ele não era o ponta-direita que se deslocava para se aproximar dos outros jogadores como Joseíto era no Real Madrid de 1953/1954 era, principalmente porque tinha outro leque de características. Herrera era menos associativo, mas mais incisivo: por isso, Fleitas Solich o utilizava como um típico ponta do lado fraco. Já que o time do Real Madrid se aglomerava pelo lado esquerdo, a marcação do adversário se compactava por lá, deixando o lado direito vazio. A partir disso, a função de Herrera era se posicionar mais à direita, sem interagir tanto com os outros jogadores, pronto para ser acionado a partir de uma inversão para atacar o flanco esvaziado. Assim, Herrera tinha um papel mais incisivo e menos associativo que Gento, e voltava seu jogo para atacar a área adversária no lado fraco a partir de uma inversão, com poucos toques.
O Real Madrid de 1959/1960 era mais do que um time extremamente vencedor e estrelado, um “tubarão branco” que devorava todos que apareciam pelo caminho: era também um forte representante de um ataque funcional à moda sul-americana. O Real Madrid buscava impor sua superioridade ao estabelecer um leque imenso de relações de mobilidade em campo, onde cada jogador desempenhava sua função singular. Os jogadores faziam movimentos largos ao longo do campo: arrancadas, tabelas, ultrapassagens, recuos e infiltrações ilimitadas, sempre com superioridade numérica no setor da bola. Não havia a noção de posição marcada, pois o time se organizava a partir das funções desempenhadas por cada jogador. Gento partia do lado esquerdo, cortava para dentro, tabelava com Di Stéfano e invadia a área. Di Stéfano recuava para receber a bola dos zagueiros, arrancava com ela, caía pela ponta esquerda. Puskás saía do centro, caía pelos lados, armava o ataque e combinava com os jogadores à sua volta. Didi recuava para armar o jogo como um volante, criava combinações com Di Stéfano e Puskás e pisava na área. Cada jogador tinha um extenso leque próprio de movimentos e de relações para estabelecer: movimentos largos para controlar o tempo. Liberdade quase total, mas sem vir a custo da complexidade e da organização tática. Cada jogador era dono do seu tempo e podia desempenhar em campo o máximo que seu talento permitia, pois eram livres para jogar como se sentiam mais confortáveis.
O Real Madrid disputou 17 jogos no primeiro semestre da temporada 1959/1960, venceu 12, empatou em 3 e perdeu 2. Ao longo desses jogos, marcou 60 gols (uma média de 3,53 gols por jogo) e sofreu 15 (0,88 gol sofrido por jogo), mantendo um aproveitamento de 79,4% e uma taxa de 70,5% de vitórias. O Real Madrid encerrou o ano de 1959 líder de LaLiga com 2 pontos de vantagem sobre o segundo colocado Athletic Bilbao e 4 pontos de vantagem sobre o Barcelona, terceiro colocado, além de classificado para as quartas-de-final da Copa dos Campeões da Europa após uma goleada de 12 a 2 no placar agregado contra o time luxemburguês Jeunesse Esch. Apesar de ser indiscutivelmente o melhor time da Europa naquele período, a segunda metade da temporada não foi o esperado: por problemas de relacionamento com Di Stéfano, Didi deixou o clube em janeiro de 1960 para retornar ao Brasil. Além disso, alguns tropeços do time permitiram que o Barcelona os alcançasse na tabela de LaLiga e vencesse o campeonato no saldo de gols. Isso acabou causando um pedido de demissão de Fleitas Solich, que já vinha em atrito com Santiago Bernabéu. Com Miguel Muñoz, treinador do Real Madrid B, assumindo o comando do time principal, os merengues conseguiram vencer sua quinta Copa dos Campeões da Europa consecutiva (eliminando o Barcelona no caminho), encerrando assim a temporada com uma boa sensação. No entanto, o nível apresentado pelo Real Madrid na primeira parte da temporada jamais seria replicado novamente, e a marca já estava feita: o time de 1959/1960 ditava de vez como o Real Madrid deveria jogar.
2.2. La Quinta del Buitre
Mais de duas décadas depois do Real Madrid assombrar a Europa com o time de Di Stéfano e Puskás, os merengues voltariam a figurar entre os principais times do continente ao construir outra dinastia, mas dessa vez a nível nacional: o Real Madrid venceu todas as edições de LaLiga de 1986 até 1990. Além disso, o clube estabeleceu um novo recorde de gols marcados em uma única edição de Campeonato Espanhol ao marcar 107 gols em 1989/1990, marca que só seria superada pelo próprio Real Madrid em 2012 quando o time comandado por Mourinho marcou 121 gols.
No entanto, apesar de todo o talento ofensivo que esse Real Madrid esbanjava, o jeito que o time foi construído foi drasticamente diferente quando comparado à formação do time da década de 50. Ao invés de um longo e trabalhado projeto galáctico que consistia em uma minuciosa análise para a contratação de talentos ao redor do mundo, o Real Madrid dos anos 80 descobrira que não precisaria sair da Espanha para encontrar uma mina de ouro. Na verdade, não precisava sair nem da própria cidade desportiva, pois havia uma mina de ouro pronta para ser descoberta no Real Madrid Castilla.
Em novembro de 1983, o jornalista Julio César Iglesias escreveu uma matéria para o jornal El País sobre a espetacular temporada que o Real Madrid Castilla, o time B do Real Madrid, estava fazendo: ao final da temporada 1983/1984, a filial merengue se consagraria campeã da segunda divisão do Campeonato Espanhol, a primeira e até então única equipe B a conseguir tal feito. Para nomear a matéria sobre a promissora e surpreendente geração que despontava na base do Real Madrid, Julio escolheu o título “Amancio e a Quinta do Buitre”. O título fazia referência a Amancio Amaro, lenda do Real Madrid que jogou pelo clube nos anos 60 e agora comandava o Real Madrid Castilla, e os 5 principais jogadores daquele time: Miguel Pardeza, Manolo Sanchís, Míchel González, Rafael Martín Vázquez e Emilio Butragueño. Buitre era o apelido de Butragueño, o mais promissor de todos os 5 principais jogadores do Real Madrid Castilla.
Parecia questão de tempo até que aqueles 5 jogadores se firmassem no time principal do Real Madrid, e essa sensação só não virou uma verdade absoluta por causa de Miguel Pardeza, que não chegou a completar 30 jogos pelo clube merengue e acabou passando a maior parte de sua carreira no Real Zaragoza. Além dele, todos os outros 4 jogadores da Quinta del Buitre fizeram seu nome pelo Real Madrid, e a transição da base para o profissional não poderia ser mais simbólica: o treinador responsável por fisgá-los do Castilla e o transformarem em titulares pelo time principal foi Alfredo di Stéfano. Sanchís e Martín Vázquez foram os primeiros a estrear pelo time principal (tecnicamente, Míchel teria sido o primeiro pois disputou uma partida pelo primeiro time do Real Madrid em 1982, mas só voltou a jogar pelo time principal em 1984), no final de 1983 em um jogo que Sanchís marcou o gol da vitória. Poucos dias depois, Pardeza estreou. A estreia de Butragueño só viria no ano seguinte, mas ela fez jus ao cartaz que o Buitre carregava: ele fez sua estreia em fevereiro de 1984, quando o Real Madrid perdia de 2 a 0 para o Cádiz, e deu a virada para os merengues com 2 gols e 1 assistência no jogo que acabou 3 a 2 para o Real Madrid. Por fim, Míchel voltaria ao time titular (para valer, desta vez) no começo da temporada 1984/1985. Nos anos seguintes, o clube complementaria a base que a Quinta del Buitre dava o time com contratações pontuais e importantes que continuou dando ao Real Madrid algum nível de ar galáctico, como o atacante Jorge Valdano, o goleiro Francisco Buyo, o volante Bernd Schuster e o atacante Hugo Sánchez.
Escolher apenas um time da Quinta del Buitre é uma tarefa muito difícil. O bicampeonato da Copa da UEFA em 1984/1985 e 1985/1986 (que falei sobre na sessão sobre Juanito), comandado pelo também ex-jogador do Real Madrid Luís Molowny, foi um período muito marcante, especialmente a temporada 1985/1986, que além do título da Copa da UEFA também teve a primeira das 5 conquistas consecutivas de LaLiga. Há também o time de 1989/1990, comandado por John Toschack, que estabeleceu o recorde de 107 gols marcados em uma edição de Campeonato Espanhol. No entanto, escolhi analisar o time da temporada 1988/1989, a terceira e última do holandês Leo Beenhakker à frente do Real Madrid, que terminou em um título de LaLiga, um título da Copa do Rei, um título da Supercopa da Espanha e uma campanha na Champions League que durou até as semifinais, frustrada pelo Milan de Arrigo Sacchi.
Há poucas tarefas mais difíceis do que atribuir uma formação ao Real Madrid de La Quinta del Buitre. Por mais anárquicos que a maioria dos times desse texto fossem ao atacar, todos partiam de uma formação razoavelmente clara e com funções razoavelmente estabelecidas. A equipe de Leo Beenhakker não se prendia a esses maneirismos e tinha uma estrutura para cada momento do jogo, cada uma mais única e diferente do que a outra. Por causa disso, decidi separar o Real Madrid de Beenhakker em 3 fases para analisá-lo: como o time se comporta na saída de bola, como o time avança em campo e como o time se posiciona no campo de ataque.
Começando pelo começo, a saída de bola era um dos principais pilares do Real Madrid de Beenhakker e era o que sustentava todos os mecanismos que viriam depois. Sair jogando curto desde o goleiro era algo inegociável para o holandês, que acreditava que deveria iniciar suas jogadas com calma se quisesse avançar em campo com qualidade e a partir da posse de bola, ganhando metros gradativamente e sem pressa para tirar o máximo de cada jogador. Para isso, o Real Madrid deixava seus três zagueiros de ofício (no jogo contra o Milan, Chendo, Sanchís e Tendillo) bem próximos do goleiro para oferecerem opções de passe mais curto e não forçar um passe mais longo, que poderia significar uma perda de posse desnecessária. Além disso, o trio de defensores ganhava a companhia de Gallego: o meio-campista espanhol atuava sob Beenhakker como um típico líbero. Ele descia de sua posição no meio de campo e se posicionava ao lado de Sanchís, como um zagueiro a mais; assim, Chendo e Tendillo abriam e se posicionavam como laterais, oferecendo linhas de passe em posições mais abertas do campo. Esse mecanismo permitia que Míchel e Gordillo, os alas, avançassem bastante, pois não precisavam participar da saída de bola a todo momento. Desse modo, eles atuavam mais como meias abertos do que como alas no funcionamento da saída de bola. À frente dos 4 primeiros jogadores de linha ficava Schuster, que atuava como um armador recuado. Ele era o primeiro homem à frente da zaga, e era o principal responsável por encarar a primeira onda de pressão do adversário, decidir o ritmo do time e levar a bola até o ataque. Para isso, o alemão ganhava a companhia de Martín Vázquez, que recuava para formar uma dupla de volantes e ajudar a saída de bola como uma opção de passe a mais. Desse modo, o Real Madrid se organizava em um 4–4–2 para sair jogando.
O principal jogador da saída de bola, apesar da enorme importância de Schuster, era Gallego. O meio-campista se adaptou à função de líbero maravilhosamente bem, e era o verdadeiro motorzinho do time. Ele recuava do meio de campo e, para receber um passe de Buyo, ficava por trás de Sanchís, Chendo e Tendillo, e então arrancava com a bola para levá-la aos zagueiros e a Schuster. Além disso, quando Martín Vázquez não recuava ou quando a pressão do adversário apresentava um empecilho muito grande para os volantes, Gallego avançava para criar uma superioridade numérica no setor.
Assim que o time superava a primeira linha de pressão do adversário e conseguia avançar em campo, a estrutura e os movimentos e ações dos jogadores mudavam bastante. Para garantir superioridade numérica no meio de campo, Gallego avançava de sua posição mais defensiva para se juntar a Schuster e desfazia de vez a linha de 4 na defesa tão presente na saída de bola. Desse modo, o Real Madrid começava a se estruturar com 3 defensores, mas Chendo e Tendillo continuavam bem avançados e abertos e podiam se juntar aos volantes se a situação de jogo exigisse uma superioridade numérica ainda maior.
Nessa fase, os alas ganhavam mais importância e cada um tinha seu próprio papel. Gordillo, na esquerda, se comportava como um ala clássico: ficava bem avançado e aberto, quase como um ponta, e explorava todo o flanco esquerdo com bastante velocidade e potência. Míchel, pela direita, tinha uma função mais única: em um movimento em diagonal, ele deixava a ponta-direita para se juntar a Schuster e Gallego, e se comportava mais como um terceiro meio-campista do que como um ala mais tradicional. Esse movimento esvaziava o flanco direito e, por isso, era comum que Martín Vázquez atacasse a ponta, mas partindo de uma posição mais central. Além disso, era nessa fase onde Butragueño começava a aparecer mais, flutuando pelo centro do campo como um camisa 10 e ajudando os volantes na construção do jogo.
Apesar da enorme complexidade de movimentos nas duas fases anteriores, era no campo do adversário onde o ataque funcional da Quinta del Buitre desabrochava. O Real Madrid de Beenhakker fazia jus ao termo “caos organizado” e, apesar de não gostar muito dessa expressão (explico melhor em A Arte de Planejar a Liberdade), eu reconheço que poucas expressões são mais felizes que ela ao descrever o que aquele Real Madrid fazia no campo de ataque. Não se engane e pense que era uma desordem completa, onde os jogadores faziam o que bem entendessem e o treinador apenas observava, pois o time era muito bem treinado e todos os movimentos eram minuciosamente coordenados, mas a complexidade e a enorme variedade deles, além da ofensividade do time, davam uma sensação de caos na partida.
O “caos organizado” começava desde a defesa, já que os três zagueiros participavam bastante do ataque. Sanchís, o zagueiro central, era quem menos avançava, mas ele ainda era bastante determinante com suas arrancadas e frequentemente aparecia na faixa dos volantes. Tendillo, o zagueiro pela esquerda, tinha um ótimo entendimento com Gordillo, o ala pela esquerda e, enquanto Gordillo atacava o flanco como um ponta, Tendillo costumava avançar mais por dentro, se juntando aos volantes. Chendo, o zagueiro pela direita, fazia um movimento chamado diagonal defensiva: em suma, um movimento em diagonal normalmente feito por laterais que saem de uma posição mais aberta para ir para dentro, fechando o espaço central e se posicionando perto da bola, em uma posição mais recuada. Esse movimento era o que dava origem a um mecanismo de ataque muito interessante: como Míchel e Martín costumavam atuar em faixas mais centrais, a ponta-direita ficava esvaziada e o centro do campo e o lado esquerdo, mais povoado. Por isso, o adversário movia seu bloco defensivo para lá e deixava a ponta-direita desprotegida. Isso permitia que Chendo, partindo da diagonal defensiva, aparecesse na ponta-direita como um elemento surpresa em uma ultrapassagem, saindo de sua posição mais recuada e chegando no espaço vazio deixado por lá.
Partindo para o meio de campo, Gallego e Schuster viravam de vez uma dupla “inseparável” de volantes e se entendiam como ninguém, frequentemente alternando entre os papéis de armador recuado e de volante infiltrador que avança mais para atacar. Nesse ponto do ataque, era difícil caracterizar Míchel como ala porque embora ele frequentemente aparecesse atacando a ponta-direita quando via oportunidade para isso, sua área de atuação principal era a faixa central do campo, como um volante a mais. Martín Vázquez alternava entre a função de ponta mais incisivo e a de meia-atacante, circulando da direta para dentro em uma faixa mais avançado do que aquela de Schuster, Gallego e Míchel. Da esquerda para dentro circulava Butragueño: embora fosse um segundo atacante, o Buitre recuava bastante e não se limitava à função de infiltrador. Ele era um verdadeiro camisa 10 e era o principal armador do time no campo de ataque, recebendo a bola dos volantes e acionando Hugo Sánchez, Martín Vázquez, Gordillo ou qualquer outro jogador que inflitrasse no ataque. Butragueño também trocava muito de posição com Gordillo e usava sua velocidade e seu drible para fazer jogadas pela ponta. Por fim, Hugo Sánchez era um camisa 9 mais clássico, mas sempre se movimentava de acordo com o movimento da bola e se mantinha próximo dos outros jogadores, muitas vezes saindo da referência para abrir espaços e articular o ataque como um falso 9.
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O Real Madrid de Leo Beenhakker explorava bastante a posse de bola e tinha um ataque funcional muito pausado e trabalhado, explorando assim o melhor do talento de cada um dos jogadores, mas sabia a hora de acelerar a partir de Gordillo, Chendo, Míchel, Martín Vázquez, Butragueño ou Hugo Sánchez. O time venceu LaLiga com 81% de aproveitamento, marcando 91 gols (uma média de 2,39 gols por partida) e sofrendo apenas 37, a segunda melhor defesa do campeonato. Além disso, ao longo de toda a temporada, o time marcou 127 gols em 55 partidas (2,30 gols por partida), foi campeão de LaLiga pela quarta vez seguida, conquistou a Supercopa da Espanha, a Copa do Rei e parou nas semifinais da Champions onde, depois de um bom primeiro jogo contra o Milan de Sacchi, foi atropelado no segundo muito por causa de uma mudança de Beenhakker que tirou Tendillo para a entrada do ponta Llorente para dar mais velocidade ao time, mas que acabou desmontando toda a estrutura de saída de bola. O Real Madrid da Quinta del Buitre acabaria indo para uma temporada recordista sob John Toschack em 1989/1990, mas a base do time acabaria desmontada nos anos seguintes para abrir espaço para a próxima grande geração do Real Madrid.
2.3. Os Galácticos
Usei muito o termo “galáctico” para descrever o perfil das contratações de Santiago Bernabéu e sua ideia de ter um time estrelado, mas o termo só seria cunhado e atribuído ao Real Madrid no começo dos anos 2000, quando o empresário espanhol Florentino Pérez concorria à presidência do clube prometendo que faria os tempos de glória dos anos 50 voltarem ao Madrid, caso eleito. Ao longo de sua campanha, ele disse ter se encantado com o time de Puskás e Di Stéfano quando criança e que a gestão de Lorenzo Sanz, presidente vigente, não fazia jus aos tempos de glória do Real Madrid, apesar das duas recentes conquistas da Champions League em 1998 e em 2000 que tiraram o clube de um jejum de duas décadas. Florentino Pérez prometia construir um time de estrelas e que contrataria um grande jogador a cada começo de temporada, começando por Luís Figo, o melhor jogador do arquirrival Barcelona.
Florentino Pérez foi eleito, e com ele chegou Luís Figo, contratado após Florentino pagar a multa rescisória de 60 milhões de euros na que então era a transferência mais cara da história. Um ano depois, Florentino quebrou o próprio recorde ao gastar 77 milhões de euros para tirar Zinedine Zidane da Juventus e, no ano seguinte, gastou 45 milhões de euros para contratar o recém campeão mundial Ronaldo Fenômeno, que estava na Inter de Milão. Corrigindo os valores pela inflação, Florentino teria gastado o que hoje é equivalente a 500 milhões de euros na contratação dos três jogadores. Eles se juntaram a nomes como Casillas, Hierro, Roberto Carlos e Raúl, que já estavam no clube antes da chegada de Florentino, e a união de tantas grifes no mesmo time, principalmente no ataque, acabou ganhando o nome de Galácticos.
Assim como com a Quinta del Buitre, é difícil escolher um único time na geração dos Galácticos. A versão de 2004, que já tinha Beckham, provavelmente é a mais atraente por reunir mais talentos, mas o time já sentia o desequilíbrio que contratar apenas jogadores de ataque e renegar a defesa provocava. A mais famosa provavelmente é a de 2002, onde no ano de seu centenário o Real Madrid conquistou sua nona taça da Champions League com o histórico voleio de Zidane na final contra o Bayer Leverkusen, mas também não a escolherei. Acredito que, apesar das glórias de 2002 e das grifes de 2004, é de senso comum que o melhor futebol apresentado pelo Real Madrid dos Galácticos tenha sido na temporada 2002/2003 (a primeira de Ronaldo no clube), onde o time comandado por Vicente del Bosque venceu LaLiga com o melhor ataque do campeonato, foi campeão da Copa Intercontinental, da Supercopa da UEFA e foi até as semifinais da Champions, onde novamente foi frustrado por um time italiano, mas dessa vez pela Juventus.
O time de Del Bosque partia de um 4–4–2 (ou de um 4–2–2–2, se preferir; ou até um 4–2–3–1, se quiser distinguir mais as faixas de campo de Raúl e Ronaldo. Como veremos mais tarde, o número não importa) bem claro: 4 defensores com 2 laterais (Salgado e Roberto Carlos) e 2 zagueiros (Hierro e Helguera ou Pavon), 2 volantes (normalmente Guti e Makelelé, mas o argentino Cambiasso, o brasileiro Flávio Conceição e o inglês McManaman também figuravam bastante pelo setor), 2 meias (Figo e Zidane) e 2 atacantes (Raúl e Ronaldo). Algo importante de se reparar é que o Real Madrid não tinha pontas no time, e falaremos mais disso mais tarde.
Mais uma vez, vemos a saída de bola sustentada e bem-trabalhada como um dos pilares do jogo de posse do Real Madrid, e a estrutura aqui era bem próxima à da Quinta del Buitre: 4 defensores alinhados que participam bastante da saída com 2 volantes logo à frente. Para essa fase, Roberto Carlos e Salgado baixavam e ficavam na linha dos zagueiros, formando uma linha defensiva bem estreita para encurtar as linhas de passe o máximo possível. Guti e Makelelé eram volantes passadores e, por isso, também participavam bastante da saída de bola. Não havia uma distinção clara entre a função de primeiro e segundo volante, já que os dois ficavam bem alinhados como um clássico doble pivote (dupla de volantes) espanhol e, quando era necessário que um deles recuasse para mais perto dos zagueiros, ambos se revezavam nessa tarefa.
O mais importante aqui é a participação ativa de 6 jogadores, criando uma superioridade numérica na saída de bola (o princípio de uma saída sustentada) e a proximidade desses 6 jogadores. Ter mais jogadores na saída de bola implicava em um maior número de linhas de passe em uma posição mais recuada do campo e, por isso, um maior número de possibilidades de combinações, interações, articulações e soluções para sair jogando e construir as jogadas desde trás, além de criar uma superioridade numérica na saída de bola e, portanto, facilitar a tarefa de superar a primeira linha de pressão do adversário. Além disso, ter os jogadores mais próximos uns dos outros cria linhas de passe mais curtas. Isso tem duas principais implicações: com linhas de passe mais curtas, a bola não precisa percorrer uma distância grande entre um jogador e outro e, portanto, o time pode circulá-la com mais velocidade. Em adição, aproximar os jogadores facilita a interação e as relações de mobilidade entre eles já que, como eles estão mais próximos uns dos outros, as combinações saem mais naturalmente. O Real Madrid não explorava muito a ideia de ter amplitude na saída de bola, e preferia construir suas jogadas por dentro.
A parte mais interessante daquele Real Madrid, como de costume, viria depois da saída de bola: o modo como o time ganhava metros e dominava o campo de ataque. Mais uma vez, veremos o Real Madrid realizando um ataque funcional fluido e bem trabalhado, que aposta no jogo interno, na posse de bola, na liberdade dos jogadores e na criação de inúmeras relações de mobilidade para criar superioridade dentro de campo. No entanto, o time de Vicente del Bosque provavelmente é o mais radical e ortodoxo em relação aos pilares do ataque funcional “à lá Real Madrid” de todos os trabalhados aqui: como eu disse antes, o time não tinha pontas de ofício e dava um foco muito maior ao jogo interno, explorando a amplitude do campo de um jeito que logo descreverei.
Assim como os times anteriores, o Real Madrid de Del Bosque procurava se aproximar a todo momento, normalmente pelo lado esquerdo, atribuindo uma função específica a cada jogador. O jogo começava com Helguera e Hierro, e a participação ofensiva dos zagueiros só não era limitada aos passes curtos na saída de bola pelos passes longos e esporádicas arrancadas de Hierro. Salgado, o lateral-direito, era bem mais defensivo que Roberto Carlos, o lateral-esquerdo, e também não tinha uma participação tão determinante no ataque. O espanhol ficava em diagonal defensiva, sempre próximo da zona da bola, e normalmente não oferecia muito mais além de uma linha de passe curta e segura em uma faixa de campo mais recuada, mas vez ou outra ao longo dos jogos fazia ultrapassagens perigosas para atacar o lado direito esvaziado. Makelelé e Guti eram os armadores mais recuados e funcionavam como o motorzinho do time: recebiam a bola dos zagueiros e a levavam até o ataque, regulando o ritmo do time e armando as jogadas desde trás. No entanto, a participação ofensiva dos dois ia muito além da função mais conservadora e segura de um volante clássico e, principalmente a partir de Guti, o Real Madrid tinha uma arma muito única na linha dos volantes. O espanhol ficou conhecido por sua imensa capacidade de passe e, por isso, frequentemente dava um passo a frente para se tornar um meia a mais, ajudando a articulação do ataque mais diretamente.
Indo para os jogadores mais ofensivos, é impossível superestimar a importância de Zidane para o funcionamento ofensivo da equipe, e Del Bosque sabia disso melhor que ninguém. Por isso, o francês provavelmente era quem mais se beneficiava da liberdade total que o ataque funcional pode dar a alguns jogadores. Ele partia da posição de um meia-atacante pela esquerda e, dali, circulava por todo o campo. A facilidade de Zidane para dominar a bola e escolher o melhor passe mesmo sob uma pressão intensa o transforma em um jogador excelente para ser um armador recuado e, apesar de preferir atuar em uma área mais avançada, era comum ver Zidane ao lado (ou até mesmo atrás) de Guti e Makelelé na hora da saída de bola. Além disso, Zidane tinha uma relação impecável com Roberto Carlos dentro de campo, e o entendimento entre os dois facilitava a criação de um leque enorme de combinações. Por isso, era muito comum ver os dois muito próximos, trocando de posição, desenhando tabelas e aproveitando o máximo da combinação entre o passe impecável de Zidane e a potência e a velocidade de Roberto Carlos ao ser lançado em profundidade. Por fim, Zidane desfilava em sua melhor versão quando circulava pela zona dos meias. Ele tinha total controle do ritmo da partida e parecia jogar em sua própria rotação, respeitando apenas a sua própria vontade e obrigando que todo o jogo a seguisse. Era a peça central da engrenagem do Real Madrid: baixava para receber a bola dos volantes, carregava-a até o ataque e, lá, armava todo o time. Era dele a palavra final sobre onde, como e quando a bola deveria ir; ele organizava e coordenava o movimento e as ações de todos os jogadores de ataque, passeava por todas as zonas do campo para criar combinações com todos os jogadores do time e, em suma, era o representante de Del Bosque dentro de campo: o cérebro do time. Talvez, com um estilo mais lento e pausado, Zidane tenha sido o mais próximo que o Real Madrid teve de Di Stéfano.
Logo à frente de Zidane atuavam Raúl e Figo, com funções tão semelhantes quanto diferentes entre elas. Raúl atuava no que parecia ser a “função Butragueño”: um jogador que partia da posição de segundo atacante, mas que participava do jogo muito mais como um meia do que como de fato um atacante. Raúl não era tão rápido nem tinha um drible tão afiado como Butragueño, mas compensava isso com uma inteligência ímpar dentro de campo. O camisa 7 merengue parecia sempre ter total consciência de tudo que estava acontecendo no jogo e, por isso, sabia sempre onde estar e onde seus companheiros estavam. Dificilmente recebia uma bola marcado por um defensor, pois sabia para onde devia se movimentar para receber um passe na melhor condição possível e, a partir dali, dar sequência ao ataque. Por isso, Raúl também tinha uma imensa liberdade dentro de campo para que ele pudesse explorar todos os movimentos que seu talento lhe permitia fazer. O espanhol recuava bastante, muitas vezes atuava na mesma faixa de campo de Zidane e chegava a recuar até os volantes para que ele pudesse receber a bola diretamente deles. Além disso, era um exímio atacante e usava seu espetacular senso de posicionamento para sempre estar na hora certa e no lugar certo, além de gozar de uma finalização muito refinada. Assim, foi vice-artilheiro da equipe. Figo, por sua vez, tinha uma função parecida com a de Raúl, mas com suas particularidades. Del Bosque gostava de posicioná-lo em uma posição central, como um meia-atacante mais à direita, para que ele pudesse interagir mais com Guti, Zidane e Raúl e, portanto, acrescentar muito ao jogo interno do time. Figo tinha liberdade tanto para recuar e armar o time com os volantes e com Zidane quanto para avançar mais e atuar como um segundo-atacante ao lado de Raúl, mas o português tinha outra função importante. Por começar mais à direita de Zidane e Raúl e por estar acostumado a jogar como ponta após seus anos no Barcelona, Figo frequentemente era usado como um ponta do lado fraco: era comum vê-lo posicionado mais aberto para atacar o lado direito esvaziado através de uma inversão. Mais à frente ficava Ronaldo, que assim como Hugo Sánchez servia de referência para o ataque, mas estava longe de ser um 9 estático: Ronaldo circulava pelo ataque e revezava com Raúl nas funções de servir como o jogador mais avançado do time e recuar para armar o ataque. Artilheiro do time já na sua primeira temporada com o Real Madrid, Ronaldo não perdia a presença de área, mas era um camisa 9 de bastante movimentação.
Por fim, há a função de Roberto Carlos, e vou aproveitá-la para falar sobre o modo que aquele Real Madrid explorava a amplitude. É de conhecimento geral que Roberto Carlos é uma referência histórica para laterais ofensivos por causa de sua imensa potência física, velocidade e capacidade de cruzamento, chute e cobranças de falta. Por isso, é comum haver a confusão de entender a função dele no Real Madrid de Del Bosque como a de um ponta, que ficava avançado e aberto a todo momento na linha dos atacantes, mas o jeito que Roberto Carlos jogava era bem diferente. Como visto antes, ele era bem participativo na saída de bola; portanto, começava o jogo em uma posição mais recuada ao invés de ficar fixo no ataque como um ponta. Quando o time avançava, Roberto Carlos continuava recuado, mais próximo dos volantes e de Zidane do que de Ronaldo, por exemplo, e frequentemente caía por dentro para criar combinações por lá. Desse modo, a ponta-esquerda ficava vazia, sem um jogador fixo abrindo o campo por lá. Assim se desenvolvia o jeito que o Real Madrid explorava a amplitude no campo: esvaziando lugares chave nos lados do ataque e concentrando jogadores por dentro, o time atraía o adversário para as zonas centrais do campo e, assim, criava espaços nos lados. Então, um jogador sairia de sua posição para chegar nesse espaço e atacá-lo rapidamente, e logo voltaria para uma zona mais central. A ideia do Real Madrid não era ocupar o lado do campo, mas sim esvaziá-lo para atacá-lo rápida e objetivamente. Essa era a função de Roberto Carlos e parcialmente de Salgado e Figo pelo lado oposto também: deixar a ponta vazia para atacá-la no momento certo. Chegar no espaço ao invés de estar no espaço.
Como dito antes, o Real Madrid dos Galácticos (ou, pelo menos, a versão de Vicente del Bosque) se mostrava extremamante ortodoxa nos pilares do ataque funcional: muita aproximação e jogo interno, visando esvaziar os lados e atacá-los rapidamente, movimentos muito longos e específicos para cada jogador permitindo que eles executassem o que faziam de melhor em campo, trocas de posição e movimentações intensas e complexas. A partir disso, o Real Madrid foi campeão espanhol marcando 86 gols (média de 2,26 gols marcados por jogo) e sofrendo 42 (média de 1,1 gols sofridos por jogo), venceu o Feyenoord na Supercopa da UEFA e o Olímpia na Copa Intercontinetal. No entanto, atritos entre Del Bosque e Florentino Pérez acabaram resultando na saída do técnico após o presidente não renovar seu contrato e, por isso, o Real Madrid demoraria muito a voltar a encontrar um treinador que executasse um jogo ofensivo, fluido, organizado e condizente com a história do clube (embora Vanderlei Luxemburgo tenha sido um breve respiro que fez muito bem ao clube, mas que acabou demitido por uma rixa entre ele e uma parte do elenco). A dificuldade de encontrar um comandante para o time acabou se juntando com o desequilíbrio causado pela contratação de muitas estrelas ofensivas e poucos jogadores sólidos defensivamente e criando uma crise esportiva, e a segunda metade dos anos 2000 foi um tanto melancólica para o Real Madrid, resultando até na renúncia de Florentino Pérez em 2006.
2.4. La Décima (e o místico segundo semestre de 2014)
Florentino Pérez não ficaria muito tempo longe do Real Madrid e, em 2009, se candidatou para a presidência mais uma vez e foi eleito automaticamente por ser o único candidato que tinha as garantias necessárias para ocupar o cargo de presidência. A melancolia dos anos 2000 se arrastava e parecia interminável: a partir de 2006, o Real Madrid passou a cair sucessivamente nas oitavas da Champions League e taças esporádicas e sem muito brilho do Campeonato Espanhol era o que sustentava o clube, até que em 2008 o Barcelona anunciou Pep Guardiola como treinador e, na temporada 2008/2009, ganhou todos os troféus possíveis com um futebol moderno e renovado que goleou o Real Madrid por 6 a 2 na reta final de LaLiga em pleno Santiago Bernabéu.
Se os anos melancólicos da segunda metade da década de 2000 não foram necessários para fazer o Real Madrid acordar, o surgimento do Barcelona de Guardiola definitivamente foi. O arquirrival voltava aos holofotes com um futebol renovado, sistematizado, automatizado, complexo, com um coletivo fortíssimo e que partia da racionalização dos espaços. Mais importante que a ação de cada jogador era a forma que esse jogador poderia compor uma estrutura maior; os jogadores não moldavam o sistema, o sistema moldava o jogador. O Barcelona de Guardiola parecia ser o símbolo do futebol moderno.
Florentino chegou fazendo o que sempre soube fazer: lotar o time de talentos. Em seus primeiros 2 anos de sua segunda passagem como presidente do Real Madrid, Florentino contratou nomes como Cristiano Ronaldo, Benzema, Kaká, Xabi Alonso, Di María e Özil para substituir a geração de Raúl, Van Nistelrooy, Sneijder e Guti. No entanto, o maior choque inicial que a volta de Florentino Pérez trouxe ao Real Madrid não foi a “segunda geração dos Galácticos” contratada por ele, mas sim sua escolha para o comando do time. Depois da temporada 2009/2010 se mostrar promissora mas frustrante com Manuel Pellegrini como técnico, Florentino Pérez o demitiu e contratou o treinador que eliminara Pep Guardiola da Champions League em 2010, pensando que um time Galáctico precisava de um treinador Galáctico. A temporada 2010/2011, a segunda de Florentino após seu retorno à presidência, mostraria o primeiro ano do Real Madrid de José Mourinho.
Falarei mais de José Mourinho e todas as suas implicações mais tarde; o importante aqui é entender o impacto imediato de sua contratação. Primeiramente, precisamos ressaltar a importância de Mourinho fora de campo. O português deu um choque de realidade no time do Real Madrid e devolveu aos jogadores o espírito aguerrido e vencedor tão importante para a construção do clube: suas coletivas polêmicas, comportamento explosivo, exigências altíssimas e aura enérgica deixava os jogadores a “mil por hora” em todas as partidas. Todos queriam dar o seu máximo a todo momento, seja em uma noite europeia de mata-mata da Champions League ou em uma simples rodada do Campeonato Espanhol. Mourinho fez com que o Real Madrid parasse de abaixar a cabeça a começasse a enfrentar o Barcelona (e as demais potências europeias) de igual para igual. No entanto, Mourinho representava uma ruptura com o futebol do clube. Assim como Guardiola, Mourinho é um treinador profundamente sistemático, com um futebol automatizado e coletivo que forçava os jogadores a se encaixarem em um sistema pré-definido que privilegiava a sistematização dos espaços e movimentos dos jogadores sobre a expressão do talento de cada um. Quando Mourinho deixou o Real Madrid, o clube parecia perdido. Venceu, claro, mas não tinha a mesma magia dos grandes times que marcaram a história merengue: a alma do clube parecia ter sofrido um baque forte e o Real Madrid parecia ter perdido a esperança, buscando mais replicar o estilo dominante de Guardiola do que construir uma identidade própria.
Veio, porém, Carlo Ancelotti. O treinador italiano tinha deixado seu nome marcado na história do Milan (conquistou duas Champions League e um Campeonato Italiano) e do Chelsea (venceu a Premier League com recorde de gols marcados) e comandava o ambicioso projeto do Paris Saint-Germain quando recebeu o convite de Florentino Pérez para comandar o Real Madrid. Ancelotti aceitou na hora, e a parte mais difícil foi conseguir sua liberação do clube francês para treinar o Real Madrid na temporada 2013/2014. O italiano foi um ar fresco imenso para os merengues: sua carreira como treinador (especialmente as passagens por Parma e Juventus) o moldaram para sempre pensar primeiro nos jogadores para tirar o melhor de cada um e não perder um jogador talentoso simplesmente porque ele não se adaptava a um sistema pré-concebido. Suas passagens em Milan e Chelsea mostravam um Ancelotti sempre disposto a escutar seus jogadores e colocá-los como prioridade, construindo um sistema ao redor deles e não subjugá-los a uma ideia rígida.
Ancelotti manteve sua filosofia e, através dela, construiu um time que venceu a Copa do Rei e a Champions League logo em sua primeira temporada à frente do Real Madrid. Ancelotti tirou o melhor de Xabi Alonso, Modric e Di María e a partir dos três montou um meio de campo que se complementava e oferecia muitas possibilidades para o time. No ataque, o italiano montou o trio BBC ao juntar o recém-chegado Bale aos já consolidados Benzema e Cristiano Ronaldo e tirou o melhor de cada um em um dos melhores trios de ataque da história. A conquista de La Décima, a décima taça da Champions League, era algo que o clube visava há mais de 10 anos mas falhou sucessivamente até a chegada de Ancelotti. Com ele, o Real Madrid não só venceu, mas também resgatou sua identidade que parecia perdida.
No entanto, não falaremos do time de La Décima, mas sim sobre a etapa seguinte do trabalho de Ancelotti: a temporada 2014/2015. Com um melhor conhecimento do elenco e das valências e dificuldades de cada um, Ancelotti conseguiu construir um time ainda melhor. O segundo semestre de 2014, que marcou a primeira metade da temporada 2014/2015, foi do que provavelmente era o melhor futebol que o clube jogou no século: um futebol ainda mais fluido, ofensivo, versátil e poderoso que o da temporada 2013/2014. Em 2014/2015, o Real Madrid chegou a enfileirar 22 vitórias seguidas, a maior sequência de vitórias da história de um clube europeu que só seria superada pelo Bayern de Munique de Hansi Flick quase 10 anos depois.
Apesar disso, a temporada 2014/2015 não começou no melhor astral de todos. Di María e Xabi Alonso saíram do clube e Ancelotti perdeu 2 dos seus 3 meio-campistas titulares e, contando com a chegada de Kroos e James Rodríguez, teria que refazer por completo todo o funcionamento de um dos principais pilares de sua equipe. Além disso, o Real Madrid já conhecera a dificuldade que a temporada ia representar desde o começo, ao perder a Supercopa da Espanha para o Atlético de Madrid. Ancelotti não tinha muito tempo, e precisaria corrigir os problemas do seu time e refazer o meio-campo inteiro com a temporada já em andamento.
Ancelotti lidou com os problemas muito bem e ainda conseguiu uma bela solução para a lesão de Bale logo nos primeiros meses da temporada (algo que se tornaria um problema crônico na carreira do galês) sem alterar tanto o funcionamento do time e com apenas alguns ajustes. Se o time de 2013/2014 pendia mais para um 4–3–3 e usava o 4–4–2 apenas para se defender, o time de 2014/2015 abraçaria muito mais o 4–4–2 principalmente pela característica de seus meio-campistas. Ancelotti manteve a linha de 4 defensores com Carvajal e Marcelo nas laterais e Sérgio Ramos e Pepe na zaga, e ainda contava com um ainda jovem Varane que parecia se firmar como um grande zagueiro. À frete dos defensores, Ancelotti montou uma dupla de volantes com Kroos e Modric, dois jogadores que definitivamente não têm a questão defensiva como uma das principais qualidades e que estavam acostumados a atuar em faixas mais avançadas. Para completar o meio de campo e criar uma ligação para o ataque, Ancelotti montou uma dupla de meias ofensivos com James Rodríguez e Isco. Por fim, mais à frente, uma dupla de ataque formada por Benzema e Cristiano Ronaldo.
Um dos primeiros problemas que Ancelotti enfrentou para estabelecer seu 4–4–2 foi o meio de campo. Ao alinhar James, Kroos e Modric (Isco só entraria no time mais tarde, depois da lesão de Gareth Bale), Ancelotti percebeu que a posse de bola do time ficava muito estéril e pouco objetiva: os meias tendiam a passar a bola apenas entre eles e os defensores e não conseguiam levá-la ao ataque, pois essa estrutura acabava deixando uma linha de meias isolada e uma linha de atacantes isolada, criando uma distância muito grande entre elas. Isso acabava forçando um passe mais longo para conectar essas linhas que acabava encontrando um atacante marcado, pois os defensores conseguiam prever o passe e antecipá-lo. Para contornar isso, Ancelotti usou um mecanismo muito comum nos ataques funcionais sul-americanos. Ele o chama de pontes ofensivas, mas por aqui chamamos de escadinhas.
O nome não poderia ser mais autoexplicativo, pois o mecanismo consiste em criar pontes (ou escadinhas) entre diferentes zonas do campo ao invés de montar linhas e, assim, facilitar a tarefa de fazer a bola avançar metros no campo. A ideia é a seguinte: os jogadores do time se organizam de forma assimétrica de modo que cada um atue em uma faixa de campo própria. Não há a ideia de uma linha de defensores, uma linha de meio-campistas ou uma linha de atacantes, pois cada jogador se posiciona em sua própria altura do campo. A partir disso, formam-se “pontes” entre um setor e outro: agora, quando um defensor quer passar a bola para o meio de campo, por exemplo, não precisa dar um passe longo que atravesse vários metros e alcance a linha de meio-campistas; ele simplesmente passa para o jogador logo a frente dele (pode ser um outro defensor mais avançado ou um meio-campista mais recado) que por sua vez passará para o jogador logo a frente dele, e assim sucessivamente. A partir de suas pontes ofensivas (ou escadinhas), Ancelotti deixava a posse de bola do seu time mais objetiva e produtiva, além de aproximar mais os jogadores que, como visto antes, facilita a interação entre eles. As pontes ofensivas trazem também outro impacto positivo: o jeito que Ancelotti as organizava partia do jeito que cada jogador prefere jogar. Sérgio Ramos, por exemplo, é um zagueiro muito talentoso com a bola e mais confortável em participar mais da construção do ataque; portanto, Ancelotti o posicionava à frente de Pepe. Kroos é um meio-campista mais defensivo que Modric e, portanto, ficava mais recuado que o croata, que ficava mais recuado que Isco ou James, e assim sucessivamente. É importante ressaltar que essa estrutura não era rígida e que variava de acordo com o momento do jogo e com as interpretações dos jogadores: Modric podia recuar para a posição mais recuada do meio-campo para Kroos avançar, Sérgio Ramos podia avançar para o meio-campo, Isco ou James tinham a liberdade para trocar de lado ou recuar, Cristiano Ronaldo e Benzema trocavam de função no ataque e por aí vai. A ideia das pontes ofensivas era deixar os jogadores confortáveis em campo, sem prendê-los a uma ideia de linhas simétricas e, a partir disso, aumentar a qualidade da posse de bola do seu time. O jeito que os jogadores construiriam essa assimetria era extremamente fluido e tinha várias variáveis.
O Real Madrid de Ancelotti se espalhava mais verticalmente que horizontalmente principalmente por causa do jeito que Ancelotti organizava suas pontes ofensivas, tendo em mente muito mais a ideia de avançar a bola do que atravessar o campo horizontalmente com ela, algo que privilegiaria mais o domínio espacial do que o domínio das relações. Por isso, a tendência daquele Real Madrid era se aglomerar em um lado do campo, normalmente o esquerdo, para aproximar ainda mais as pontes e criar uma progressão da bola mais natural. O time não buscava se espalhar horizontalmente e mesmo verticalmente se mantinha muito próximo: a distância entre Kroos (que normalmente era o primeiro meio-campista) até Benzema ou Cristiano Ronaldo era muito curta, e a fluidez do time e dos movimentos e a liberdade que Ancelotti dava aos jogadores para executarem o que fazem de melhor em campo incentivava ainda mais essa aproximação dos jogadores, já que o Real Madrid se organizava a partir das relações estabelecidas entre os jogadores em campo. Ancelotti pegou os contra-ataques do Real Madrid de Mourinho e os juntou com um mecanismo complexo e plástico de domínio da bola para construir um time completo, que se saía bem em todas as situações de jogo.
O jogo começava com Pepe e Sérgio Ramos e, como dito antes, o espanhol atuava em uma faixa mais avançada, bem próximo dos meio-campistas, flertando com a posição de volante com a bola (mais tarde naquela temporada, quando Modric se lesionou, Sérgio Ramos atuou como volante por um período considerável). Logo à frente dele ficava Kroos, na posição que se tornaria a marca registrada de toda a carreira do alemão no Real Madrid: o volante mais à esquerda. Kroos é um meio-campista mais posicional, que prefere se mover em espaços mais curtos e armar o time a partir de uma posição mais recuada. Ancelotti abraçou essa característica e compensava a mobilidade menor de Kroos com o jogo quase inquieto de Modric: o croata se movia pelo campo todo e armava o time em todas as fases do jogo. Por ficar ligeiramente mais à direita de Kroos, ele era um dos principais responsáveis por conectar o lado direito do Real Madrid (normalmente James e Carvajal) com o resto do time; além disso, Modric podia recuar para se alinhar a Kroos (ou trocar de posição com ele) para receber a bola mais recuado e avançava com ela para ficar mais próximo de Isco ou Cristiano Ronaldo. Como a aproximação do Real Madrid normalmente acontecia pela esquerda, Carvajal ficava em diagonal defensiva para sempre estar próximo da zona da bola e preparado para atacar a ponta-direita esvaziada. Marcelo, por ser o lateral do lado forte, era bem mais participativo que Carvajal: o brasileiro vivia seu auge técnico e servia praticamente como um armador a mais para o time no lado do campo, usando e abusando de sua excelente relação com Isco, Cristiano Ronaldo e Benzema para criar inúmeras combinações no ataque. James era o meia-direita e, por isso, podia tanto deixar sua posição para interagir com os outros jogadores aglomerados pela esquerda como ficar mais aberto para suprir a falta que o time sentia de ter um ponta de ofício como Bale, que era sempre uma opção segura para acelerar as jogadas quando o jogo pedia um cenário mais vertical. Isco, por sua vez, tinha um papel parecido com o de James, revezando entre atacar a ponta e circular por dentro, mas como ele era o meia-esquerda, sua zona de atuação pelo lado forte o oferecia mais opções de interação mesmo quando ele ficava mais aberto, já que Marcelo, Kroos, Cristiano Ronaldo e Benzema naturalmente ficavam mais próximos dele. Por fim, nem Cristiano Ronaldo nem Benzema eram centroavantes clássicos, fixos, que fixavam os zagueiros adversários a todo momento. Ambos eram atacantes completos que iniciaram a carreira como pontas e atingiram seus respectivos auges em posições mais centrais do ataque. Por isso, ambos circulavam bastante pelo lado esquerdo do ataque (o mais natural para os dois) e se entendiam muito bem em campo. Se engana quem pensa que Benzema se limitava a abrir espaços no ataque para Cristiano Ronaldo; sim, era um papel importantíssimo do francês que permitiu que Cristiano marcasse mais de 60 gols naquela temporada. No entanto, Cristiano Ronaldo vivia seu auge técnico e era muito mais que o finalizador letal que se tornaria nos seus anos finais de Real Madrid; o português se aproximava muito mais de um segundo atacante e normalmente atuava mais recuado que Benzema, armando o ataque e pisando na área mais através de infiltrações do que por ser uma presença fixa por lá.
A chegada de Ancelotti não podia ser mais oportuna. O italiano chegou em um time perdido, cambaleado e sem alma e relembrou tudo o que fazia do Real Madrid o Real Madrid. O time de Ancelotti era extremamente coletivo, mas essa coletividade partia de uma noção individual, de hierarquia de talento. Ancelotti não suprimia a expressão singular de seus jogadores em prol de um sistema, mas construiu um sistema a partir da expressão singular de todos os seus jogadores, valorizando o talento em um nível que apenas os maiores times da história do Real Madrid conseguiram. A partir disso, o time de Ancelotti fez 92 pontos em LaLiga e marcou incríveis 118 gols no campeonato, além de chegar até as semifinais da Champions League, e o fracasso da temporada 2014/2015 (que terminou sem títulos relevantes) diz muito mais respeito a fragilidade do elenco (vide a necessidade de improvisar Sérgio Ramos de volante quando Modric se lesionou) do que a capacidade de Ancelotti como treinador, que transformou o Real Madrid no melhor time do mundo em 2014 e o fez jogar o futebol mais bonito do século, perdendo os títulos da Champions League e de LaLiga por detalhes e criando uma espinha dorsal tática que seria base para o tricampeonato da Champions League que viria nos anos seguintes.
2.5. Así gana el Madrid
Acho que é difícil deixar mais claro as semelhanças táticas entre todos os times que analisei aqui. Desde o time da década de 50, passando pela Quinta del Buitre nos anos 80 e pelos Galácticos nos anos 2000 e até as glórias dos anos 2010, todos os maiores times da história do Real Madrid seguiam uma linha, uma identidade tática muito clara.
Meu palpite é que a criação dessa identidade tática foi um acaso do destino, uma consequência do cerne do Real Madrid enquanto clube, que sempre se propôs a ser uma reunião de talentos sem qualquer precedente. Um time galáctico, estrelado, que desfilasse em campo e exibisse toda a classe de seus jogadores. O espectador que fosse ver o Real Madrid jogando buscaria mais que um simples jogo de futebol, mas a expressão máxima do talento individual. Buscaria ver Di Stéfano, Puskás, Butragueño, Zidane em uma apoteose teatral. A garra, os títulos, as glórias, apesar da enorme importância de tudo, vem depois, é secundário, é uma consequência. O que define o Real Madrid vai além das 14 Champions League e diz muito mais respeito a como essas Champions League foram vencidas. A reunião de talentos, o desfile em campo, o grande tubarão branco em noites europeias, tudo isso é o que define o Real Madrid.
Transportando esse sentimento lúdico para o mundo material, o que vimos foi a construção de uma identidade tática muito voltada ao ataque funcional, porque seus princípios acabam criando uma terra mais fértil para uma expressão mais crua do talento se aplicadas de uma forma específica. Partindo dos conceitos básicos, o ataque funcional é um tipo de organização ofensiva que se organiza a partir do tempo, isto é, a partir das relações de mobilidade estabelecidas entre os jogadores. O cerne de um ataque funcional é que o time deve se organizar ao redor das relações entre os jogadores e avançar em campo a partir delas. Construir o domínio do jogo a partir das relações entre os jogadores implica que cada jogador execute sua função própria em campo; ele deve receber a bola, se movimentar, se posicionar, passar, receber, driblar do jeito mais natural possível para ele, pois isso criaria relações mais naturais entre os jogadores. Um ataque funcional pode ser mais espaçado, como o do Real Madrid da década de 50 ou o do Real Madrid da Quinta del Buitre, ou mais aglomerado, como o do Real Madrid Galáctico ou o de Ancelotti, desde que o cerne da organização ofensiva do time seja o estabelecimento das relações de mobilidade entre os jogadores. Por causa disso, houve uma espécie de “convergência evolutiva”: naturalmente, o modo mais fértil para a expressão máxima dos talentos dos jogadores é a partir de um ataque funcional, já que ataques posicionais limitam mais a atuação dos jogadores a espaços menores e, portanto, restringem as relações e os movimentos do time.
É importante ressaltar que não basta que um treinador pratique ataque funcional para treinar o Real Madrid; com o ataque funcional deve vir atrelada a noção de construir um time lento, pausado, que privilegie a posse de bola e que, a partir disso, tire o máximo do talento de cada um dos jogadores. A ideia é a seguinte: o Real Madrid não precisa querer ter a bola a todo momento nem tratar a posse de bola como um fim por si só, mas tampouco deve se livrar dela rapidamente. Quanto mais vertical, externo e intenso for o jogo, menos os talentos inseridos nele conseguem aflorar. Ao avançar a partir da posse de bola e de jogadas mais trabalhadas ao invés de verticalidade incessante, talentos disruptivos (como o de Zidane, Di Stéfano, Puskás, Modric ou Kroos) podem participar mais do jogo, condicioná-lo melhor e criar melhores oportunidades para o time. O contra-ataque deve ser visto como uma arma muito útil para vários momentos do jogo, mas jamais como o norteador do ataque do Real Madrid: Ancelotti foi provavelmente quem melhor entendeu isso e construiu um time que era letal ao contragolpear, mas que sabia construir a partir da posse de bola como poucos.
Portanto, podemos elencar os principais norteadores da identidade tática do Real Madrid:
a) Hierarquia de talento. Um time galáctico estrelado que potencialize seus talentos ao máximo e crie, a partir deles, um espetáculo em campo. Plasticidade sobre a objetividade.
b) Ataque funcional. O melhor mecanismo para a potencialização do talento, que permite que o time se organize ao redor das funções de cada jogador. Um time que jogue a partir do tempo, que progrida em campo a partir das relações e dos movimentos estabelecidos pelos jogadores.
c) Assimetrias. Diagonais, recuos, infiltrações etc. Um leque de movimentos que não siga uma lógica espacial.
d) Movimentos longos. Para tirar o melhor de cada talento, cada jogador deve ter a liberdade de se mover em espaços maiores e, portanto, criar mais relações. Passar e arrancar para receber mais à frente, recuar para participar do jogo em mais lugares, movimentações por fora e por dentro, trocas de posição. Liberdade posicional.
e) Jogadores em diferentes posições. Romper a ideia de fixar jogadores em espaços e atribuir zonas específicas a cada um. Cada jogador deve jogar onde se sente mais confortável. Facilita a ideia de progredir em campo através das pontes ofensivas e das relações entre os jogadores.
f) Contra-ataque como arma, não norteador. O contra-ataque deve ser visto como uma arma muito útil para vários cenários de jogo, já que a relação do Real Madrid com a posse de bola não é algo irredutível. No entanto, o norteador do ataque do Real Madrid deve sempre ser o uso da posse de bola para construir jogadas mais pausadas e trabalhadas para tirar o máximo do talento do time.
3. O que o futuro aguarda?
No momento de publicação desse texto, o Real Madrid vive um momento razoavelmente delicado, cheio de altos e baixos. O time está nas semifinais da Champions e na final da Copa do Rei, mas está a 11 pontos do Barcelona no Campeonato Espanhol e um período de futebol muito ruim entre janeiro e março deixou o cargo de Ancelotti em risco. Ao que tudo indica, a recente melhora do time e a classificação para a final da Copa do Rei (em uma goleada histórica sobre o Barcelona) e para as semifinais da Champions deram ao italiano mais crédito e, por isso, ele deve permanecer no comando do clube. No entanto, fontes espanholas (principalmente o jornalista Mario Cortegana, do The Athletic) afirmam que a permanência de Ancelotti não está garantida e que, dependendo dos resultados do Real Madrid até o final da temporada, ele poderia ser demitido. Pipocam na imprensa inúmeras especulações sobre um possível sucessor de Ancelotti (Nagelsmann, Zidane, Mourinho, Raúl, Xabi Alonso e outros vários nomes) e o declarado interesse da CBF no italiano só serve para intensificá-las. Portanto, dedicarei as seguintes sessões para falar sobre o futuro ainda nebuloso que aguarda o Real Madrid.
3.1. Os problemas de Florentino Pérez
Florentino Pérez parece ter mais sorte do que juízo em alguns assuntos. Sua política econômica à frente do clube é indiscutível, já que ele conseguiu manter o Real Madrid financeiramente saudável mesmo na pandemia e durante a reforma do Santiago Bernabéu, e é difícil apontar erros no processo de transição do elenco multicampeão para uma nova geração (com as contratações de Camavinga, Rodrygo, Vinícius, Tchouaméni e Valverde se mostrando grandes acertos), mas Florentino não mostra muita coerência principalmente quando o assunto é treinadores.
A não-renovação com Vicente del Bosque, a demissão de Vanderlei Luxemburgo, a demissão de Ancelotti e a escolha de Rafa Benítez para substituí-lo me parecem decisões muito pouco coerentes e, em sua maioria, erros crassos. Del Bosque, Luxemburgo e Ancelotti são treinadores muito condizentes com a identidade tática do Real Madrid: privilegiam o talento, constroem ataques funcionais extremamente plásticos e encantadores e se provaram grandes treinadores em diversos momentos de suas respectivas carreiras, inclusive no comando do Real Madrid. Por diferentes motivos (problemas pessoais com Del Bosque, rixa entre Luxemburgo e parte do elenco e uma visão demasiadamente resultadista ao avaliar a segunda temporada de Ancelotti a frente do Real Madrid), Florentino achou que a melhor solução era encerrar o vínculo entre o clube e esses treinadores, e em todas as vezes essas decisões se mostraram equivocadas. A saída de Del Bosque foi um baque para os Galácticos, já que o espanhol era um dos poucos treinadores no mundo à época que eram capazes de administrar tantos talentos e montar um time organizado com todos eles jogando extremamente confortáveis. Seus dois sucessores, Carlos Queiroz e Camacho, foram fracassos estrondosos. Veio, depois, Vanderlei Luxemburgo, e o Real Madrid recuperou seu futebol na temporada 2004/2005 e começou a temporada 2005/2006 jogando muito bem, até que Florentino tomou o lado de Raúl, Figo e Guti ao invés do lado de Beckham, Ronaldo e Zidane e escolheu demitir o brasileiro. Mais uma vez, os sucessores não conseguiram replicar o futebol que Luxemburgo fez o Real Madrid jogar. A mais escandalosa dessas demissões, no entanto, foi a de Ancelotti: o Real Madrid não só teve um período extremamente vencedor com ele, como também foi indiscutivelmente o melhor time do mundo por um longo tempo e jogou o futebol mais bonito do século antes de cair da produção por erros profundos de planejamento de elenco da diretoria. Florentino Pérez fechou os olhos para os erros do departamento de futebol (e dele também, muito provavelmente), para o futebol espetacular que o Real Madrid apresentou e, ao invés de construir uma identidade tática com um treinador do quilate de Ancelotti, resolveu demiti-lo. Para piorar tudo, contratou Rafa Benítez, um treinador que claramente não estava à altura do clube e que não representava em nada a identidade tática merengue. Florentino acabou contando com a sorte nessa, e depois da inevitável demissão de Rafa Benítez (que mal durou 6 meses no clube), Zidane assumiu como treinador, resgatou muito da base tática que Ancelotti construiu e levou o clube a um tricampeonato da Champions League.
Acontece que, pelo menos para mim, Florentino parece não entender a importância de um treinador para a construção de um time. Quando ele sauda os tempos de glória do Real Madrid nos anos 50 e fala sobre eles com saudade e admiração, Florentino parece focar demais na política galáctica de Santiago Bernabéu na montagem do elenco e de menos no cuidado que ele teve ao apontar o treinador certo para comandar esse elenco. Santiago Bernabéu podia ter apostado em uma visão tática mais famosa e europeia ou até ir pelo caminho de um ataque funcional, mas mais danubiano (que fazia mais sucesso na Europa), mas ao invés disso identificou que o melhor caminho a ser seguido era aquele que a América do Sul construíra. Por isso, durante toda a década de 50, o Real Madrid só contratou um treinador europeu (o espanhol José Antonio Ipiña, em 1952, já que José Villalonga e Miguel Muñoz não foram contratados e assumiram como interinos). Todos os outros foram sul-americanos: dois uruguaios (Héctor Scarone e Enrique Fernández), um argentino (Luis Carniglia) e um paraguaio (Fleitas Solich). Santiago Bernabéu valorizava muito o papel de um treinador no modo que o time jogava e entendia que precisava escolher um comandante que potencializasse ao máximo os talentos que ele contratara para o time. Florentino Pérez claramente não dá a mesma importância e parece fazer parte do discurso que afirma orgulhosamente que o Real Madrid não tem identidade tática e, por isso, o clube sempre parece flertar com uma crise de identidade a cada período de resultados ruins.
3.2. A importância de Carlo Ancelotti
Carlo Ancelotti salvou o Real Madrid de uma profunda crise de identidade duas vezes: a primeira, como falei, foi quando Ancelotti sucedeu Mourinho numa época que o clube parecia mais disposto a apostar em uma visão mais “moderna” que seguisse a tendência tática do Jogo de Posição guardiolista ao invés de construir uma identidade própria. A segunda foi em um cenário bem parecido: foi em 2021, quando Zidane deixou o Real Madrid após sua segunda passagem como treinador e, mais uma vez, o clube parecia perdido: nomes como Antonio Conte e Massimiliano Allegri (que chegou a fechar um acordo verbal com o clube mas o desfez após receber um convite para voltar à Juventus) foram nomes muito especulados no Real Madrid neste período principalmente pela fama de serem taticamente rígidos e com uma visão de futebol que flerta muito mais com um jogo “moderno”, posicional e vertical.
Nas duas vezes, Ancelotti devolveu ao Real Madrid uma identidade que nem o clube sabia que tinha. Em sua segunda passagem, o italiano destruiu a ideia de que Kroos e Modric já estavam e decadência e fez ambos (principalmente Modric) jogarem em um nível altíssimo digno (ou até superior) aos melhores anos dos dois sob Zidane ou até mesmo sob ele, 7 anos antes. Além disso, Ancelotti resgatou Vinícius Júnior e Rodrygo que pareciam perdidos no clube e os transformou em dois dos melhores e mais inventivos atacantes do futebol mundial e fez Camavinga e Valverde se tornarem pilares do time do Real Madrid mesmo tão novos. Como se não bastasse, fez Benzema ter a melhor temporada de sua vida e ganhar a Bola de Ouro em 2022.
É importante notar que a chegada de Ancelotti é diretamente responsável pelo imenso crescimento do nível de todos os jogadores do elenco do Real Madrid. Apesar do que é amplamente divulgado e corroborado pela mídia, Ancelotti não é um simples gestor de pessoas, bom de vestiário e que simplesmente “se adapta” a diferentes cenários e deixa os jogadores livres em campo. Ancelotti é um dos maiores estrategistas da história do futebol e tem uma identidade tática tão clara e estruturada como Guardiola ou Klopp. Dar tamanha liberdade aos jogadores em campo sem transformar isso num infinito bate-cabeça e fazer com que o time avance em campo e domine o adversário a partir dos movimentos, funções e relações que cada jogador estabelece em campo precisa de uma coordenação tática enorme, tão grande como a que Guardiola precisa ter para dominar todos os espaços do campo do melhor jeito possível. Não é por que o time parece desorganizado, com muitos jogadores em uma única faixa do campo e cada um fazendo um movimento próprio, que não exista tática, treinamento, repetição e coordenação nele; pelo contrário, é justamente em um estilo de jogo assim que a tática se mostra mais necessária. A recente explosão do Jogo de Posição guardiolista criou a impressão de que só são organizados taticamente os times que têm um rígido mecanismo de racionalização e ocupação de espaços, mas um time que, no futebol de hoje, consiga deixar seus jogadores extremamente confortáveis e que construa seu jogo a partir das funções dele é igualmente complexo e bem treinado.
3.2.1. O problema Mourinho
O embate entre Guardiola e Mourinho marcou o mundo do futebol no começo dos anos 2010 e se tornou um dos confrontos mais aguardados da história de futebol. A elaborada posse de bola de Guardiola contra a defesa aguerrida de Mourinho, o jogo pausado contra o contra-ataque implacável, a organização contra o caos: esses eram assuntos frequentemente referenciados pela mídia e pelos torcedores quando os dois iam se enfrentar. A ideia que se construía era de dois opostos polares, água e óleo, duas propostas radicalmente diferentes que representavam duas filosofias próprias e antagônicas, e a contratação de Mourinho pelo Real Madrid para ser o “anti-Guardiola” apenas intensificou esse discurso.
Acontece que Mourinho e Guardiola não são os opostos que a mídia e os torcedores sempre falam que são. A formação tática dos dois é desconfortavelmente parecida: de maneiras diferentes (Guardiola como jogador do clube e Mourinho como auxiliar), ambos se formaram no Barcelona dos anos 90 e 2000. Isso significa o Barcelona que resgatava o futebol total do Rinus Michels dos anos 70 e o atualizava para o futebol da época com Johann Cruyff e Louis van Gaal. Era o Barcelona que começava a inventar o Jogo de Posição.
Ligamos muito a ideia do Jogo de Posição ao princípio de ter a posse de bola a todo momento e, embora seja uma das principais características, não pode jamais ser vista como a única. Talvez ainda mais importante do que ter a bola seja como ter a bola, como usá-la para criar superioridade nos jogos, e o Jogo de Posição tem uma maneira bem rígida para isso. Ele parte da ideia do domínio dos espaços ao invés do domínio do tempo que caracteriza o ataque funcional: cada jogador deve dominar o espaço que ocupa antes de interagir com os outros. Isso implica em uma rígida racionalização dos espaços: o treinador divide o campo em zonas e atribui uma zona específica para cada jogador dominar. Assim, o jogador deve ficar atrelado àquela zona e fazer movimentos curtos e normalmente predeterminados pelo treinador para dominar aquela zona de uma maneira específica e, assim, contribuir para o sistema de controle dos espaços. Um jogador não pode sair de sua zona para interagir com outros, como em um ataque funcional, porque ele precisa ocupar aquele espaço específico para que o time tenha total controle espacial do campo.
É exatamente nessa parte onde Guardiola e Mourinho se aproximam. A diferença é que Guardiola explora os espaços com a bola e Mourinho, sem ela, mas ambos priorizam o domínio dos espaços sobre o domínio do tempo. Ambos criam sistemas predeterminados para dominar os espaços que eles julgam mais importantes e impõem esses sistemas aos jogadores, mesmo que ele possa suprimir as melhores características dele. Assim como Guardiola, Mourinho tem uma visão predeterminada e razoavelmente irredutível sobre como o time deve jogar e adapta seus jogadores a ela ao invés de adaptar ela aos jogadores. As relações, a expressão do talento, as funções, tudo vem depois para Mourinho: a prioridade é o controle dos espaços.
O período de Mourinho à frente do Real Madrid é muito bem visto pelos torcedores muito pelos títulos, especialmente a conquista de LaLiga em 2011/2012, onde o time estabeleceu um novo recorde de mais gols marcados no campeonato (121 gols), mas principalmente por devolver a autoestima a um clube que passara os últimos anos combalido e fragilizado, longe dos tempos de glória. Mourinho (através de métodos eticamente discutíveis que não representam, nem de longe, a grandeza do Real Madrid) devolveu o espírito vencedor do clube aos jogadores e indiscutivelmente criou uma fundação psicológica para os anos vencedores que viriam a seguir. No entanto, dentro das 4 linhas, com a bola em jogo, Mourinho não poderia ser mais anti-Real Madrid. Suprime os talentos em prol de sua racionalização dos espaços, de sua defesa baixa e aguerrida e de sua verticalidade excessiva na hora de atacar. Mourinho impõe sua voz e sua vontade às dos jogadores, abraça aqueles que correspondem a elas e ostraciza aqueles que não. Mourinho é uma parte da corrente guardiolista; uma parte diferente, um “patinho feio” talvez, mas indiscutivelmente uma parte da corrente de racionalização dos espaços e rigidez tática, e se não fosse por Ancelotti a contratação de Mourinho deixaria o Real Madrid em uma crise de identidade quase impossível de escapar.
3.2.2. Até tu, Zizou?
A primeira passagem de Zidane pelo Real Madrid teve vários problemas, mas foi indiscutivelmente um dos maiores períodos da história do clube. Depois de meia temporada desastrosa com Rafa Benítez comandando o time, Zidane assumiu e resgatou muito da base que Ancelotti construiu em 2013/2014 e 2014/2015. O auge do Real Madrid de Zidane veio em 2016/2017, a primeira temporada completa do francês à frente do Real Madrid, quando ele montou um time em um 4–3–1–2 espetacular que tinha Carvajal e Marcelo em seus respectivos auges, uma dupla de zaga tão qualificada como Sérgio Ramos e Varane, o histórico trio Kroos, Modric e Casemiro que ganhavam a companhia de Isco depois da lesão de Bale e uma dupla de ataque letal formada por Benzema e Cristiano Ronaldo. Era um time fluido, funcional, que privilegiava a posse de bola, a liberdade de posições e de movimentos e que tirava o máximo dos talentos de Modric, Kroos, Marcelo, Isco, Benzema e Cristiano Ronaldo. As oscilações em 15/16 e 17/18, muito marcadas pela queda no nível de jogo da equipe e pelos flertes de Zidane com um futebol mais pragmático, se explicam principalmente por Zidane não ser um treinador tão bom como Ancelotti e, durante os 2 anos e meio que o francês comandou o time, o Real Madrid jamais pareceu passar por uma crise de identidade.
Depois do desastre da temporada 18/19, a primeira do Real Madrid sem Zidane e sem Cristiano Ronaldo, o francês voltou ao clube pouco menos de um ano depois de ter decidido sair. Já sem Cristiano Ronaldo e com um inconsistente Hazard, além de uma nova geração formada por Vinícius Júnior, Rodrygo e Valverde surgindo, Zidane conseguiu fazer com que o Real Madrid jogasse um bom futebol por um período razoável (marcado principalmente pelo 2 a 2 contra o Paris Saint-Germain na Champions League de 2019/2020, provavelmente a melhor atuação coletiva do time desde a volta de Zidane), mas quanto mais tempo se passava mais autoral o trabalho de Zidane se tornava, e mais desesperador ficava o cenário.
Acontece que quando Zidane voltou para o Real Madrid, a base tática que Ancelotti construiu e ele deu continuidade estava em frangalhos, e ele teve que construir uma do zero. Assim, Zidane teve que colocar em prática sua visão sobre futebol enquanto treinador, e o que se revelou foi mais uma versão do futebol posicional de Guardiola e companhia.
Zidane se mostrou um grande fã da racionalização dos espaços, do controle de zonas predeterminadas, de jogadoes realizando movimentos curtos e de amplitude total. Mais do que isso, Zidane mostrou ser extremamente irredutível sobre quais espaços ele queria que seu time dominasse e como ele queria que seu time dominasse esses espaços, atribuindo posições específicas que vinham ligadas a um leque ainda mais específico de relações e movimentos a serem estabelecidos. Alguns jogadores se deram bem, como Kroos (provavelmente o mais posicional dos jogadores do elenco do Real Madrid) e Benzema, mas outros nem tanto, Modric e seu jogo inquieto acabaram sendo sacados do time titular por um período considerável da temporada 19/20 em prol de Federico Valverde, por exemplo. No entanto, duas posições específicas foram as mais afetadas por Zidane: a primeira é a lateral, de ambos os lados. O francês tem uma visão muito rígida sobre o papel do lateral em seu estilo de jogo: participativo na saída de bola, com um perfil construtor e que saiba atuar por dentro. Por isso, Carvajal e Mendy, laterais mais conservadores que oferecem uma opção mais segura na saída de bola e que atuam mais por dentro, ganharam um papel importantíssimo no Real Madrid de Zidane, mas nomes como Theo Hernández, Achraf Hakimi e Álvaro Odriozola foram completamente descartados desde o início a um nível que Zidane preferiu improvisar Lucas Vázquez na lateral-direita do que usar um lateral mais ofensivo e incisivo como Odriozola ou Hakimi. A segunda foi a ponta: a nova fixação de Zidane por amplitude total no time acabou significando papéis muito específicos e rígidos para os pontas, que deveriam ficar colados à linha lateral a todo momento e participando muito pouco (ou quase nada) do jogo por dentro. Isso fez muito mal ao futebol de Hazard em um primeiro momento e ao futebol de Vinícius e Rodrygo em um segundo, pois a movimentação, as relações e o jogo interno deles foi severamente restringido a um nível que Zidane chegou a usar Vinícius Júnior como ala-direito em uma semifinal de Champions. Além disso, a visão de Zidane sobre o meio de campo fez muito bem para Kroos, Casemiro, Modric (em um certo nível) e Valverde, mas fez muito mal para Ceballos, Llorente e Odegaard, e todos saíram do clube porque sabiam que não teriam tempo de jogo sob Zidane.
Para a tristeza de muitos que adoram Zidane como jogador e que celebram a identidade tática do Real Madrid, a versão de Zidane que faz o Real Madrid jogar um futebol fluido e funcional em um 4–3–1–2 parece mais ser um lampejo do que o Zidane de verdade, pois ao se analisar seu Real Madrid Castilla e o Real Madrid da temporada 19/20 e principalmente da temporada 20/21, um dos maiores ídolos da história do clube parece muito mais ser um guardiolista que suprime o talento individual em prol do coletivo do que um digno representante da identidade tática do Real Madrid.