Liverpool se revela uma cidade portuária através das gaivotas. Ao longo do caminho entre a estação de trem e o Rio Mersey, a quantidade vai aumentando. No céu e no chão, fazem um barulho irritante e tomam conta da paisagem. A gaivota é aquela companhia indesejada que, conforme o tempo vai passando, vira apenas companhia. Às vezes isso basta.
Encerrado o turismo, pedi ao segurança de uma cafeteria para que eu pudesse carregar o celular lá dentro. Ele, bastante amigável, disse que não havia problema e, ao me ver de vermelho, perguntou se eu ia ao jogo. A partir dalí, começamos uma boa conversa sobre futebol. Seus olhos brilhavam ao falar do ídolo Ronaldinho e do futebol brasileiro, levando-o a recordar de seu passado na seleção iraniana sub-17. Com um sorriso nostálgico, ria do apelido “Da Silva” que lhe foi dado pela suposta qualidade com bola. Mostrou-me uma foto sua alinhado com Sardar Azmoun, da Roma, e Alireza Jahanbakhsh, do Feyenoord, ainda garotos. O desfecho da história todos nós já ouvimos.
Anfield foi se aproximando e as gaivotas, sumindo. Quando ando sozinho, penso em várias coisas. Até que chega o momento em que penso que estou andando sozinho, então começo a reparar mais no que me cerca. O bairro que envolve o estádio é simpático e entende seu papel. Suas casas guardam nos muros a secular história do clube, lembrada por grafites de seus personagens e, sobretudo, pela cor vermelha.
Há um forte sentimento de comunhão naquele lugar. Notando o semblante dos torcedores, todos pareciam satisfeitos, contentes. A perspectiva de intruso ajuda a enxergar a coesão, desde os detalhes das pequenas interações nos arredores, até o escancaro da multidão nas tribunas. Essa consonância chega ao seu ápice durante o tradicional canto “You’ll Never Walk Alone”, segundos antes da bola rolar.
O caráter ritualístico da canção, quase sacro, faz lembrar um louvor. Todos erguem os cachecóis, murmurando o início da música. O andamento é lento, e fica ainda mais arrastado no refrão, que ganha potência na voz única. A torcida carrega o peito, passa a agarrar os panos e fecha os olhos para gritar. Vi-me pequeno em meio àquilo tudo, esprimido pelos versos. Sozinho. Senti vontade de chorar.
A partida em si foi bem inglesa. Tanto West Ham quanto Liverpool esticavam a bola nas pontas sem qualquer paciência, criando um “intenso” lá e cá. Assim saiu o escanteio do único gol londrino, anotado pelo volante Edson Álvarez num bate e rebate. O mexicano, que seria expulso no segundo tempo, fez um grande jogo como destruidor. Nesse cenário de disputa constante, aparecia em todas as divididas e cortava as tramas adversárias pela raiz.
Pouco tempo de alegria tiveram os visitantes, pois logo veio Diogo Jota para igualar. Não sou um grande fã do português, mas ele vai muito bem nesse papel de meia ou segundo atacante infiltrador. Característica que ficou nítida no gol da virada, aos 49′, após uma jogada fantástica de Curtis Jones, encontrando a ruptura do gajo na área. Jones é outro jogador que o novo comandante Arne Slot parece compreender bem, escalando-o como um meio-campista compensador, de movimentos amplos.
Até aquele momento, o jogo era frenético e divertido, mas pouco empolgante. Faltava o distinto. O que mudou com a entrada de Lucas Paquetá e, principalmente, Mohamed Salah, que marcou um golaço. Sempre respeitei o egípcio, mas nunca verdadeiramente apreciei seu futebol. Após vê-lo de perto, entendi tudo. A maior parte de suas ações iniciaram com uma recepção de costas para o gol adversário, o que costuma dificultar o jogo dos pontas. Mesmo nessas condições, conseguiu clarear as jogadas esbanjando refino, transformando o placar favorável em domínio.
Conor Bradley foi especialmente beneficiado pela qualidade de Salah. O jovem é um lateral de estirpe antiga, que precisa ultrapassar para ser o melhor de si, e pode receber perfeitamente no espaço graças ao camisa 11. Em alguma partida da temporada passada, me lembro de ter sido surpreendido pelo substituto de Alexander Arnold. Em Anfield já não era a surpresa, mas a confirmação. O garoto é bom.
No lado dos hammers, também não houve surpresa. Buscaram “modernizar” seu estilo de jogo com a contratação de Julen Lopetegui, técnico que estaria “taticamente à altura” do qualificado elenco. Pois bem, o que vi foi um time ainda mais dependente das bolas longas e que, para piorar, privava a influência de seu craque. Com David Moyes, Paquetá podia circular, dando, individualmente, doses de equilíbrio e sensatez naquele futebol chucro. Já com o espanhol, tem seu talento limitado a um espaço. Uma pena.
O relógio marcava 88′, o placar 3×1 e meu trem para Leeds saia em uma hora. Entrei num dilema: aproveitar os últimos minutos em Anfield, visto que havia viajado para isso, ou não correr o risco do atraso? Felizmente optei pela primeira alternativa e vi os dois gols de Gakpo, sacramentando a goleada dos reds. Por consequência, tive que correr como Salah para chegar ao ponto de ônibus, cortando a multidão na avenida.
Consegui chegar na estação a tempo. Entrei no vagão, não havia ninguém na cadeira ao lado. O trem foi andando, e já não se via nenhuma gaivota no céu. Durante toda a viagem, a canção não saiu da minha cabeça. Walk on…walk on…