Toda vez que vou ao Horto ver o América fico na expectativa de que Martín Benítez esteja na escalação. Expectativa porque é raro. O convívio com as lesões deixa o argentino mais fora do que dentro das partidas. A coisa é tão grave que, no dia seguinte, o comentário pros amigos é “dei a sorte de ver o Benítez jogar”. Ele, inclusive, reconheceu esse fardo cruel de “bichado” ao desejar uma boa recuperação a Neymar, no intervalo do duelo contra o Botafogo, dizendo que sofria muito com lesões e sabia pelo que ele estava passando. Na mesma fala, disse que gostava muito de futebol e amava o craque brasileiro. E eu amo o futebol de Benítez. Ficaria na mesma expectativa e também diria que tive a sorte de vê-lo em campo ainda que o camisa 10 jogasse de segunda a sexta em todas as semanas do ano.
A atuação dele contra o Botafogo foi especialmente marcante. “El Lobo”, como é apelidado, parecia que não estava no mesmo lugar que os demais. Andava em outra passada, respirava em outra frequência…o plano era outro. Quando tocava na bola, a impressão era de que tudo desacelerava, os segundos duravam mais e que ele tinha todo o tempo do mundo pra fazer o que quisesse. Naquela postura esquisita, compacta e curta, Benítez tirava os adversários da jogada sem parecer se esforçar, girando de um lado para o outro quase que em câmera lenta. Meu companheiro de arquibancada me olhava chocado, “O cara tá flutuando. Só é melhor que todo mundo e pronto”. Realmente parece desafiar a compreensão, mas a resposta é fácil assim. Como esse baixinho, gordinho, com gestos tão simples e arrastados passa por um fisiculturista que corre a 30km/h como se nada? Pô, é porque ele é melhor. A gente esquece que existe essa inexplicável solução.
Houve um momento em que Benítez correu (sim) sorrateiramente em direção a uma bola que sobrou de uma disputa num lateral. No trajeto, antes mesmo de dominar, olhou pro atacante, ainda distante dos zagueiros. Então, ao pegar a bola, olhou outra vez. E pausou. A defesa alvinegra parou junto, imobilizada, e, nesse esmorecer, o passe magistral foi lançado, quicando perfeitamente na frente do zagueiro antes de encontrar o companheiro correndo por trás, que enfim havia entendido o recado do primeiro olhar e perdeu o gol. A pausa serve pra isso. É uma extensão do prazo, uma segunda chance, um recurso comunicativo além de técnico. E em contextos como o de Benítez, de clara diferença de andamento, ela é mais que necessária.
Chegamos ao gol. Foi o cúmulo de tudo que escrevi até aqui, a caricatura. O camisa 10 recebeu a bola na intermediária, já cercado por dois, e começou a caminhada até o gol lado a lado com ela. Cortou aqueles, limpou outra dupla de carrinhos, chamou a tabela com o centroavante e a colocou dentro do arco. Tudo numa simplicidade assustadora e contraditória. Cada vez que ele avançava ficava mais difícil de acreditar, ao mesmo tempo que era o feito mais Martin Benítez do próprio. Ele nascia e morria ali. Tudo que ele foi e poderia ser. Vendo aquilo, em meio a poucos muitos americanos e cadeiras vazias, me senti mais do que realizado. Nem as expectativas atingiam aquele ponto, era o máximo da sorte.
Um elemento fundamental do inesquecível foi a tabela. Não que determine ou influencie essa memória – talvez seja até a parte menos importante do gol, já que são as únicas frações de segundo nas quais ele não tem a bola; porém, olhando agora de forma distanciada, compõe sua unicidade. É evidente que há centenas de gols de toca e passa só nos últimos, sei lá, três anos, mas dá para contar nos dedos os jogadores que essencialmente precisam de tabelas pro seu futebol. O lobo uiva a partida inteira pelo toco y me voy. Até mesmo nesse lance ele poderia ter tentado enfiar pro uruguaio, o deixando na cara do gol, mas preferiu mirar no pé mais próximo, que teria como única alternativa a devolução. Benítez altera o ritmo do jogo, impõe uma outra lógica, e, como bem disse um amigo meu, “adoece o tempo”. O plano é outro.
Bom, pra variar o América perdeu. Com isso, nem um milagre muda a dura realidade do rebaixamento. Pensei em dizer que torço para que algum time da primeira divisão contrate Martin Benítez, já que assim ele permanece no palco que merece, mas se o argentino ficar no coelho ele continuará aqui pertinho de mim. No singelo bairro do Horto, pequeno e que também parece parar o tempo. E se a vontade do meu egoísmo bobo prevalecer, serão mais idas ao Independência para talvez aproveitar o craque de perto e falar que tive sorte caso aconteça.
“Ah, sol e chuva/Na sua estrada
“Tudo o que você podia ser”, Márcio e Lô Borges