“O erro que os treinadores da nova geração cometem é que dão muitas informações sobre o jogo com bola, sobre a posição dos jogadores, e acho que isso tira um pouco a criatividade. Se Vinicius ou Rodrygo estão confortáveis quando o time tem a bola abrindo um pouco mais, não vou dizer a eles para ficarem por dentro. Porque é uma interpretação individual do jogo com bola, e aí eu não interfiro porque não quero tirar a criatividade.”
Carlo Ancelotti
A palavra liberdade é talvez uma das mais disputadas ao longo da história. Já foi produto da lei moral para Kant, o dever pelo dever. Também foi a indissociável e angustiante condição do homem de ser refém das próprias escolhas, para Sartre, enquanto Espinosa a entendia como a potência do indivíduo de perseverar, revelando sua essência. Ao introduzi-la no contexto do futebol, estamos sujeitos à indefinição e à controvérsia.
Mesmo sendo claro o que Ancelotti quer dizer, há margem para diferentes interpretações. Toda comunicação enfrenta um problema quando há ruído, nesse caso não na mensagem, mas no código (ainda que, ao meu ver, seja por vontade do receptor). E é por isso que a palavra “autonomia” preenche e indica com maior eficiência a ideia que quer ser transmitida nessa discussão. Autonomia é a capacidade de se tomar decisões por si só, se autodeterminar independente de fatores externos. Portanto, me parece perfeita.
“(Como Ancelotti) dou liberdade para meus jogadores se expressarem ao máximo em campo dentro de um contexto, dentro de uma organização, ou seria um problema para eles. Dentro de uma bagunça é difícil se expressar ao máximo. Mas estou de acordo que o jogador tem de ter espaço para a liberdade, a criatividade e a força que tem dentro. Por isso escolheram esse esporte. De fora podemos apenas ajudá-los com informações, explicar por que uma coisa ou outra, mas os protagonistas são eles e têm a liberdade de escolha. (Se jogadores pedirem mais liberdade) a porta está sempre aberta para melhorar pensando no bem-estar do time”
Thiago Motta
Quanto à resposta de Thiago Motta, nela não há contradição em relação à afirmação de Ancelotti. Afinal, não se discute a ausência ou a presença de organização, mas sim se ela parte de uma autonomia maior ou menor dos jogadores. Se ela permite uma gama ampla ou restrita de decisões próprias para o jogador. E enquanto decisão, não me refiro à escolha de chutar ou cruzar, de tocar ou driblar, no instante de tensão máxima próximo à área, ou seja, naqueles segundos ou frações em que prevalece a subjetividade. É se, desde o primeiro momento, ele vai até lá ou guarda posição, se dá 2 ou 4 toques após receber, se toca e passa adiante ou se toca e permanece. Tudo isso é evidentemente instruído em algum grau.
O simples fato de se designar funções a cada um dos 11 já é uma organização (até mesmo se não). Uns serão laterais, outros zagueiros, outros meio-campistas e alguns atacantes. À medida que o jogo se complexifica, cada função adota uma profundidade maior de papéis a serem desempenhados, da mesma forma que o indivíduo também adquire experiência e diferenciação maior para interpretá-las de forma autônoma. Cabe ao treinador julgar se, em sua organização, orientará ao máximo as interpretações se seus jogadores ou se organizará sua equipe para que essa autonomia possa ser maior. É como propor uma questão de múltipla escolha, objetiva, que muitas vezes pode facilitar o acerto, é verdade, ou uma questão aberta, discursiva, permitindo, com instrução, que haja expressão.
Pintar a fala de Thiago Motta como uma oposição é dizer que se defende uma anarquia total. Como se o ideal fosse a redução (não pejorativa) do treinador para motivador, gestor e preparador. Que se virem os jogadores. E não é dessa forma que as coisas se dão.
“Com Ancelotti é a liberdade. Mais do que a estratégia ou a tática, é a liberdade e a confiança que um treinador pode te dar. Eu preciso disso porque eu gosto de analisar a partida, poder ler a partida. Ele te permite isso porque te diz quatro coisas que você pode interpretar da maneira que quiser. Transmite isso a todos.
Eles (Ancelotti e Guardiola) têm um caráter distinto. São grandes treinadores com formas de ver o futebol totalmente diferentes. Vínhamos de um 4-3-3 e passamos para o 4-2-3-1. A nível tático nos deu um pouco mais de liberdade a mais gente do meio de campo. Agora temos um pouco mais de chegada. Arturo (Vidal) e eu podemos nos mover mais. Xabi, que é mais defensivo, permanece para fazer a saída de trás. “
Thiago Alcântara
O meia hispano-brasileiro Thiago Alcântara deu declarações comparando Carleto e Guardiola nesse sentido. Contrastando a forma como o Bayern de Munique jogava no comando de cada treinador, assinalou que o italiano lhe permitia maior liberdade (autonomia) para interpretar as jogadas, também podendo se mover mais. Veja bem, talvez os dois melhores treinadores da atualidade com tipos de organização distintos. E Thiago não dá ênfase na mudança de esquema tático, no tempo que passa defendendo em bloco baixo ou pressionando, o que é evidente, mas sim na autonomia que tinha para jogar com a bola. Isso não só compõe a organização de uma equipe como muda drasticamente a forma de se atacar.
“Há jogadores que podem botar em campo o controle, o que o treinador quer. E tem outros que devem ficar um pouco livres para mostrar seu talento o máximo possível.”
Pep Guardiola
“Tudo. Ele (Antonio Conte) controla tudo…Ele acredita no time, não acredita em indivíduos. Essa é sua filosofia.”
Cesc Fàbregas
É da natureza do papel do treinador a busca pelo controle. Sua função passa inteiramente por imaginar uma partida e se esforçar para que a realidade se aproxime disso. O que não torna essa figura aversiva ao risco, ainda que obcecada pelo controle. Muitas vezes essas duas palavras são colocadas em oposição, quando na verdade é da incerteza que caras como Guardiola e Conte querem fugir.
Vendo o Manchester City, contra o Brighton pela Premier League 23/24, fazer uma saída 4+2 com Ortega (goleiro reserva) sendo “zagueiro” pela direita contra uma meia pressão (ou seja, o goleiro está fora da área), pergunto: o quão arriscado é colocar seu goleiro nessa situação? A questão é que Guardiola planejou esse risco. O catalão sabe exatamente qual vantagem (posicional e numérica, portanto, sistêmica) irá conquistar, conhece as cartas que tem na mão e colocou as fichas na mesa. Antes mesmo de começar a partida, é um risco que ele já sabia que iria assumir.
Porém, quando se admite a autonomia como pilar de sua organização ofensiva, muita das vezes o risco a ser corrido só é descoberto no instante da jogada. Diferentemente do risco controlado, nesse caso é necessário conviver com a incerteza. É evidente que ela também existe no Manchester City, por exemplo. Como disse Lionel Scaloni em uma conversa com Valdano, “Não podemos controlar os jogadores com um joystick”. A decisão final ainda passa por eles. Todavia, quanto maior a autonomia, mais difícil se torna a previsibilidade – o que não significa inexistência de padrão, já que um mesmo jogador se comporta de maneira similar em diferentes partidas. São os jogadores que colocam as fichas na mesa, e cabe ao treinador fazer o possível para ampará-los.
“No futebol brasileiro, Telê Santana assumiria cada vez mais o papel modelador do pai que forma e transforma o jogador, fazendo que ele ressurja metamorfoseado pelos limites que lhe são impostos e ao mesmo tempo pela liberdade que conquista. No país do em que se conhece bem o autoritário que tenta coibir o malandro, e o malandro com vocação autoritária, o papel do ordenador flexível do “caxias” aberto à criatividade não é propriamente comum.”
WISNIK, José Miguel (2008)
Nesse diálogo entre a organização enquanto fim ou enquanto meio, sendo o que te levará à vitória, claramente com a indissociável dependência prática nos atores do jogo, ou o que facilitará que prevaleça a inspiração destes como protagonista, o trecho sobre Telê Santana em “Veneno Remédio” (WISNIK, 2008) traz interessantes questões ligadas à autonomia.
O que interessa ao treinador, a melhor versão do jogador ou o melhor papel que poderá desempenhar em seu sistema pré-estabelecido? Muitas vezes os dois questionamentos têm uma mesma solução, porém podem acabar sendo opostos. Lembremos de quando Paulo Sousa escalou Everton Ribeiro como ala no Flamengo, ou então do que era Jack Grealish no Aston Villa, como meia, e o que passou a ser como ponta fixo no Manchester City. Um exemplo de derrotas e outro de vitórias da organização como um todo, mas ambos de fracasso com o jogador.
Quando Wisnik fala em “papel modelador”, é sobre a forma como Telê, e hoje podemos perceber isso em Fernando Diniz, enxerga as qualidades do jogador e possibilita sua melhor versão, sua máxima expressão. Claro, “metamorfoseado pelos limites que lhe são impostos”, pela vida, pela organização sempre existente, mas também “pela liberdade que conquista”, pela a autonomia que lhe é garantida.
Há vezes em que o jogador se encontra como executor, conseguindo concentrar sua indiscutível técnica em ações específicas solicitadas pelo treinador. É o caso de Gustavo Scarpa, no Palmeiras, alcançando o título de melhor jogador do campeonato brasileiro. Acredito, porém, que o “ordenador flexível”, “aberto à criatividade”, está mais próximo de permitir que a melhor versão floresça. E não necessariamente isso habita na confiança total na autonomia, por mais que facilite, mas na simples concessão de botar em questionamento suas próprias convicções.
Qual a reação do treinador diante do choque entre realidade com o plano imaginado? Repreenderá a discordância, como foi o caso de Van Gaal, na conhecida briga com Rivaldo? Autonomia (e liberdade) é não só uma garantia prévia, mas a reação do poder diante do ato. Quando Thiago Motta diz que aceitará o eventual pedido por maior liberdade dos jogadores, se trata justamente dessa resposta. Geralmente, porém, o pedido não vem de forma tão direta. E, por consequência, a reação também não.
…
Por mais que possa se tornar, isso não é um debate moral, mas de resultados. Além do que, de qualquer maneira, a preferência estética é válida. Assim como criticar a ausência de autonomia, se pode exaltar uma hiper-organização, seja pela crença na inegociável vitória, caso considere que aquela o aproxima disso, seja apenas por gosto.
Todavia, é preciso perceber que ao questionar o fato de que há, sim, treinadores que limitam mais a autonomia do que outros, se parte para o criticado julgamento moral. Negar o fato é demonstrar incômodo e, portanto, reforçar um dualismo entre o certo e o errado. Não há problema em curtir um 3-2-5 rígido. Liberdade!
Eu não sou seu criado, criatura/ Eu juro, eu vi quatro viatura/ Tática de hoje é ditadura/ Na prática, só nós que tá na rua
“Clareou”, Froid