A Conexão Húngara

A conexão húngara

“A verdade está no mistério”

— Akira Kurosawa

“A arte é o mais lindo engano.”

— Giorgio De Chirico

1. O regresso de Budapeste

No dia 29 de dezembro de 2023, um tweet apareceu na conta oficial do Twitter da Associação de Futebol da Hungria. O tweet dizia o seguinte:

“Talvez poucos pensem assim, mas a nossa seleção nacional masculina, a seleção brasileira e o time do Fluminense nas finais do Mundial de Clubes têm algo em comum! Isso também decorre do passado comum dos futebóis brasileiro e húngaro.”

Uma imagem acompanhava o texto. A foto mostrava sete jogadores húngaros agrupados ao redor da bola no lado esquerdo do campo. As redes de conexões entre os jogadores estavam marcadas em vermelho.

Aproximação Hungria

O tweet continha um link para um artigo. O texto, intitulado “A Seleção Húngara Voltou às suas Tradições”, começa explicando como a configuração tática da Seleção Húngara de Marco Rossi passou por uma alteração bastante radical.

Em termos de resultados, a nossa seleção  masculina está sim passando por um período extremamente bem-sucedido, porém o desenvolvimento também é claramente notável do ponto de vista tático. A equipe liderada por Marco Rossi regressou taticamente às tradições do futebol húngaro e, graças a isso, é pratica um estilo de jogo característico de poucas equipes ao redor do mundo.

O autor do artigo, analista e treinador da seleção nacional Istvan Beregi, prossegue nos explicando a mudança da Hungria de uma organização de equipe mais “posicional” para um estilo alternativo que se organiza em torno da bola ao invés do espaço.

Istvan Beregi
Istvan Beregi

Enquanto o princípio básico do jogo posicional é a ordem organizada (todos ocupam uma posição específica / todas as posições predeterminadas devem ser preenchidas), a organização de jogo referenciado pela bola também é frequentemente referida como caos organizado, no qual combinações associativas inesperadas ganham destaque. Este último não é típico do jogo posicional, uma vez que a essência desse sistema é a previsibilidade, então as diferentes soluções de jogo são desenvolvidas de acordo com o que foi pré-estabelecido.

Beregi nos conta a importância cultural desse “jogo orientado pela bola” para o jogo húngaro.

“Para relembrar o passado – o jogo do Golden Team foi caracterizado por uma organização similar, na qual os jogadores podiam deixar suas posições com mais liberdade, muitas vezes elementos surpresa apareciam em posições inesperadas…”

Está bem documentado em várias livros de história da tática como essa interpretação danubiana mais livre e flexível da grande equipe húngara de 1954 desempenhou um papel crucial no desenvolvimento do futebol brasileiro. Foi o que fomentou o estilo que impulsionou os sul-americanos a uma tríade de triunfos espetaculares na Copa do Mundo em 1958, 1962 e 1970.

“Não é segredo: as organizações de jogo húngara e brasileira estiveram intimamente ligadas no passado. Ambas as nações têm um espírito folclórico semelhante (simplesmente e num bom sentido: gostamos de soluções inventivas), e uma conexão próxima também pode ser observada no futebol, que remonta à década de 1940 (Kürschner Izidor, húngaro, treinou o  Flamengo e o Botafogo brasileiros na década de 1930).”

É difícil constatar o quanto um texto como este é incomum. Uma federação nacional explicando publicamente como e por que sua Seleção Nacional Masculina está mudando sua identidade tática, e apenas seis meses antes de competir no Eurocopa de 2024.

Mas por que agora? Por que, 70 anos após Puskas, Hidegkuti e Czibor, os húngaros voltam a acreditar no poder de um estilo de jogo não posicional? Qual foi o catalisador para essa transformação tática tão misteriosa?

Para responder a essas perguntas, devemos estar preparados para ver além da elaborada matriz de fatos, dados quantitativos e verdades objetivas apresentadas pelas indústrias de treinamento e tática predominantes do futebol. Em um mundo onde a clareza e a eficiência da informação são de máximo valor, devemos buscar fontes mais obscuras fora do paradigma estabelecido para incitar a mudança.

Afinal, se nenhuma perspectiva é totalmente correta, então o que é a “verdade” se não uma coleção de verdades parciais? Tudo está sempre incompleto.

Então, a questão se torna: se não por meio da adesão a algum critério objetivo, como você está reunindo e organizando essas várias ficções, interpretações e enganos? Por quais lógicas você está conectando os pontos e construindo sua própria versão da verdade tática do futebol?


2. O Húngaro

No início de setembro de 2022, publiquei um artigo sobre o treinador do Fluminense, Fernando Diniz. Foi quando comecei a receber as mensagens. De repente, minha caixa de entrada foi inundada. Seguidores de um movimento do futebol brasileiro conhecido como “jogo funcional” me informaram entusiasticamente que o estranho estilo de jogo praticado por Diniz era, de fato, o jogo funcional orientado pela bola.

Em meio à confusão dessas mensagens, um nome continuava aparecendo, um sinal perfurando o ruído: Hungaro (O Húngaro). Quem era o Húngaro? Logo aprendi que o Húngaro publicava escritos no Medium sob o pseudônimo de Jozsef Bozsik. Encontrei os textos. Eles estavam em português, mas com a ajuda do Google Tradutor, consegui lê-los.

Jozsef Bozsik foi o armador recuado do Time de Ouro da Hungria dos anos 1950. O avatar online de Húngaro era uma fotografia em preto e branco de Bozsik. Jozsef Bozsik. Húngaro. Dois pseudônimos diferentes para o mesmo escritor anônimo. A identidade do Húngaro estava escondida sob uma dupla encriptação. Mas o que o elusivo Húngaro disse nesses aparentemente seminais artigos de blog que justificava tamanhos níveis de misticismo e reverência?

Hungaro
Avatar do Jozsef Bozsik

Acredito que Jozsef ‘Hungaro’ Bozsik seja o analista tático mais importante do mundo hoje. O Húngaro foi quem fez a descoberta. Em retrospecto, a principal contribuição do Húngaro é muito simples, mas de enorme significado. Cerca de seis anos após seu primeiro atigo, as repercussões estão apenas começando a ser sentidas pelo mundo do futebol.

O Húngaro percebeu um ponto cego gritante na teoria tática do futebol. É difícil acreditar que o resto do mundo poderia ter perdido isso, mas perderam.


3. Zona de Interesse

A teoria tradicional do futebol divide a formação organizacional de uma equipe em duas fases distintas: Com Posse (atacando) e Sem Posse (defendendo). Como a equipe pode alcançar coerência com e sem a bola?

Nosso entendimento das organizações defensivas (sem posse) é caracterizado por fazer outra divisão conceitual. O comportamento de uma equipe na fase defensiva pode ser descrito como tendo uma orientação mais zonal ou individual. Essa distinção vem da maneira como os jogadores se organizam. Quais referências (bola, adversário, companheiro de equipe) os jogadores usam para se orientar ao defender?

Na defesa zonal, famosa pelo Milan de Arrigo Sacchi, os jogadores tomariam suas posições mantendo certas distâncias e ângulos de seus companheiros em relação à posição da bola. Se Evani estivesse jogando como meio-campo esquerdo, ele se posicionaria a uma determinada distância e ângulo do meio-campista central Albertini à sua direita. Quando todos os jogadores se organizam com sucesso dessa maneira, um bloco zonal é formado. A inovação de Sacchi foi como um reinício do final do século XX da falange militar romana clássica.

Treino do Sacchi
Arrigo Sacchi treinando seu sistema defensivo em 4–4–2 zonal na seleção italiana. Preparação para a Copa de 94.

Em contraste, a defesa não-zonal usa outro modo de organização. Em vez de olhar primeiro para as posições dos companheiros de equipe, os jogadores usam os adversários e a bola como seus principais pontos de referência.

Na final da Liga Europa de 2024, a Atalanta de Gianpiero Gasperini usou um sistema defensivo agressivo em homem-a-homem para destruir a construção mais zonal do Bayer Leverkusen. Apesar das rotações e dos movimentos bem documentados da equipe de Xabi Alonso, seus padrões foram facilmente previstos e lidos pela pressão da Atalanta.

Neste modo de organização defensiva, os jogadores não estão tão preocupados em manter distâncias e ângulos regulados entre si e seus companheiros de equipe. Estão interessados em marcar individualmente os adversários, coordenando seus movimentos a partir disso.

Pressão por encaixes Atalanta
Pressão por encaixes Atalanta 2
Atalanta de Gasperini pressionando homem-a-homem o Bayer Leverkusen Clip:@o_oconnell

O ponto importante a ser compreendido aqui é que tanto as estratégias defensivas zonais quanto as individuais — e as diferenças entre elas — são bem documentadas na teoria tática e de treinamento. Existem prós e contras em cada abordagem, mas ambas são consideradas viáveis.

O Milan de Sacchi e a Atalanta de Gasperini podem estar em extremos opostos desse espectro, mas é absolutamente normal que os sistemas incorporem aspectos de defesa zonal e individual em uma abordagem integrada ou “mista”. A Zona-Mista da Juventus de Giovanni Trapattoni e a Pressão Híbrida de Mikel Arteta são exemplos de tais fusões.

Se agora mudarmos nossa análise para a fase de posse de bola ou “ataque” em equipe, poderemos localizar o vazio teórico que o Húngaro identificou. Assim como na defesa, as organizações de ataque podem ser consideradas a partir de perspectivas zonais e não-zonais.

O ataque zonal ou “posicional” dispensa apresentações neste ponto. De Cruyff a Guardiola, as características do Jogo de Posição foram detalhadas nos mínimos detalhes por uma vasta gama de analistas e teóricos táticos.

Assim como na defesa zonal, os jogadores no ataque zonal do Jogo de Posição regulam distâncias e ângulos entre si e seus companheiros para alcançar a organização. Isso significa que os jogadores muitas vezes precisam esperar em posições distantes da bola até que a jogada chegue ao seu setor do campo.

“A maioria das pessoas acredita que a zona é apenas defensiva, mas isso não é correto: também há um ataque zonal. Quando seus atacantes estão longe da bola, esperando que ela chegue após uma série de jogadas e ações, isso é um ataque zonal. Nós o chamamos de ataque posicional, mas na realidade é um ataque zonal. O ponto não é procurar a bola para atacar, mas esperar que ela chegue a uma determinada área.”

– Pep Guardiola
Pep Guardiola seu ataque posicional no Manchester City. Clip: Enric Soriano

O problema era que, enquanto havia um corpus de teoria posicional em rápida expansão, as análises do ataque não-zonal pareciam estar completamente ausentes do discurso. Simplesmente não havia nada lá. Era como se o ataque não-zonal não existisse.


4. Jogo Funcional

Ao analisar essa organização e contrastá-la com os estilos posicionais, o Húngaro foi capaz de fazer as distinções que estavam faltando. As diferenças entre as referências organizacionais que haviam sido tão bem estabelecidas na fase defensiva agora estavam presentes nos momentos de ataque.

“Os ataques funcionais variam do tempo ao espaço e sempre foram organizados coletivamente, mas com outras premissas, basicamente desconhecidas no mundo inglês ou holandês”.

“O que é um jogo funcional? A primeira referência da organização ofensiva vem da bola e do seu movimento. A equipe não é organizada primeiro através de espaços, mas sim através do movimento da bola. Isso permite mais jogadores no setor da bola, mais liberdade posicional e interpretações e movimentos adequados para que os espaços não sejam perdidos”.

Em vez de usar distâncias e ângulos entre os companheiros de equipe para alcançar a organização, os ataques funcionais usam a bola como referência primária.

Esse paradigma alternativo representava um progresso óbvio, um espaço para novas táticas ofensivas. Mas nem todos do “establishment” receberam essa ruptura radical de braços abertos.

O Húngaro introduziu o ataque funcional numa série de artigos entre 2017 e 18. Sua tese foi desenvolvida a partir de uma perspectiva distinta, com a maioria de suas análises apontando as mudanças que a seleção brasileira de Tite sofreu, passando de um ataque funcional para um posicional “europeizado”. Num artigo escrito durante a Copa de 2018, o Húngaro problematiza a mudança na organização ofensiva.

“Idas ao City, conversa com Guardiola, observações, e o primeiro teste num sistema diferente aconteceu contra a Rússia, amistoso que ganhamos por 3 a 0….Jogando em posicional, tendo que dominar o seu espaço, os jogadores brasileiros se sentiam extremamente presos, até por não ser da nossa cultura este tipo de sistema”

Ataque funcional de Tite nas eliminatórias da Copa da Rússia
Ataque posicional de Tite na Copa da Rússia

A afirmação do Húngaro de que os problemas dos jogadores brasileiros com o novo sistema posicional de Tite foram exacerbados por sua herança cultural provou ser divisiva. O Húngaro alinhou o ataque posicional com linhagens europeias que passam pela Inglaterra, Holanda e Espanha. A linha do tempo do Jogo Funcional era diferente. Surgiu nos estados danubianos da Hungria, Áustria e Tchecoslováquia antes de chegar ao Brasil com a migração de treinadores do Leste Europeu.

“A cultura é o elemento mais importante do futebol porque coordena todo o mais. Tite negligenciou o aspecto cultural do jogo. Ao tomar a decisão sobre o sistema ofensivo, sobre os jogadores utilizados, sobre o nível de confronto, sobre a natureza do que seria uma Copa do Mundo, Tite adotou um conceito enganoso de eficiência”.

À medida que as ideias do blogueiro anônimo se espalhavam viralmente para a mídia mainstream do futebol brasileiro, a afirmação do Húngaro sobre a ligação entre cultura e táticas se tornou o centro das críticas ferrenhas feitas do corpo jornalístico e técnico.

Muitos dos líderes de opinião do futebol rejeitam a proposta de que correlações significativas possam ser feitas entre táticas e cultura. Para esses veteranos da indústria, as táticas são um domínio a ser entendido por meio de análises estatísticas e informações verificáveis. Esse modo centrado em dados é totalmente desconfortável com a perspectiva de incorporar variáveis tão incertas como linhagens socio-históricas e antropológicas em sua matriz de equações.

O Húngaro foi rotulado como maluco, um louco da internet com seguidores obsessivos. O anonimato do Húngaro facilitou sua rejeição como farsante. Imagine as reações dos treinadores, analistas e comentaristas mainstream quando confrontados com a perspectiva de ter que levar a sério textos de blog publicados por uma figura conhecida apenas por seu avatar Jozsef Bozsik.

Isso nunca iria acontecer. Apesar do apoio leal de um pequeno grupo de defensores, as teorias do Húngaro foram publicamente criticadas e constantemente distorcidas. O Jogo Funcional foi retratado como uma fantasia selvagem que não tinha relevância para a realidade material. O Húngaro mudou para uma conta privada no Twitter e se escondeu nas sombras.

5. Surge o Dinizismo

Cerca de quatro anos após a articulação inicial do Húngaro sobre o Jogo Funcional e sua importância para a cultura brasileira, uma situação muito estranha começou a surgir. Houve muito barulho online sobre um obscuro treinador brasileiro chamado Fernando Diniz. Diniz era visto no Brasil como uma espécie de romântico incurável, um treinador cujo jogo de passes curtos era muitas vezes bonito de se ver, mas incapaz de conquistar troféus.

Fernando Diniz

Mas a notícia se espalhou pela Europa. As performances cada vez mais impressionantes do Fluminense rodaram o velho continente. Clipes e capturas de tela de um estilo de jogo altamente não ortodoxo, cheio de assimetrias e padrões estranhos, estavam circulando no Twitter. Em pouco tempo, o método surpreendente de Diniz estava chamando a atenção significativa de treinadores e analistas de todo o mundo.

progressão flu
Aglomeração na esquerda e progressão por diagonais do Fluminense

Diniz falava sobre como seu futebol — cheio de assimetrias, passes curtos, tabelas e arranjos diagonais — era fundamentalmente diferente do jogo posicional de treinadores como Guardiola. Os jogadores do Fluminense frequentemente se agrupavam em aglomerados ao redor da bola, sua proximidade extrema violando a lógica racionalizada da organização de ataque zonal. Diniz descrevia seu futebol como ‘a-posicional’.

A proposta inicial do Húngaro sobre o Jogo Funcional não apenas foi ridicularizada por suas conexões com arte, literatura e filosofia. Treinadores profissionais e analistas também nutriam um profundo ceticismo quanto à validade do Jogo Funcional como conceito tático em primeiro lugar. Muitos não conseguiam entender as distinções que Hungaro havia feito. Devotos do Juego de Posicion inspirado pelo Barça argumentavam que não havia necessidade da divisão conceitual entre Funcional/Posicional.

O raciocínio deles era que o princípio-chave do Jogo Funcional (jogadores se organizando de forma não-zonal ao redor da bola) já existia como um aspecto dos sistemas Posicionais. Mas o argumento de Hungaro não era que Funcional e Posicional não poderiam se misturar no mesmo sistema.

Como já discutimos com referência à defesa zonal e homem-a-homem, abordagens híbridas são comuns — há muitos momentos em que um defensor em um sistema zonal irá marcar seu oponente direto. O erro está em assumir que uma mistura coerente nega de alguma forma as características distintivas originais de cada elemento.

Diagrama dos Técnicos Húngaro

A ascensão do Dinizismo desferiu um golpe duplo pela validade das teorias de diferença do Húngaro. Não apenas o estilo de jogo do Fluminense claramente estava fora de qualquer definição razoável de Jogo Posicional (Guardiola ele mesmo disse que o Fluminense não era ‘posicional’), mas Diniz também falava sobre como o jogo de sua equipe estava enraizado em uma tradição cultural brasileira autêntica. Diniz adorava a Seleção de 1982 de Tele Santana e era explícito sobre sua opinião de que o Brasil não deveria tentar resolver seus problemas no futebol “bebendo da fonte europeia”.

Relatório tático da FIFA na Copa de 74 tratando sobre como os sulamericanos trocavam passem em uma metade do campo, diferenciando da simetria europeia evidenciada na Holanda.
Relatório tático da FIFA na Copa de 74 tratando sobre como os sulamericanos trocavam passem em uma metade do campo, diferenciando da simetria europeia evidenciada na Holanda.

De repente, as ideias de Hungaro não pareciam tão loucas afinal. Treinadores respeitados, analistas profissionais e fãs intrigados de todo o mundo começaram a aprender sobre uma visão alternativa de futebol de ataque baseado na posse de bola. A conta pública do Twitter de Hungaro reapareceu, e no final de 2022 o artigo de longa duração “O Mais Belo Futebol da Terra: o que somos, porque nos destruímos” foi lançado.


6. “Taticologia” Danubiana

Uma nação não é uma realidade metafísica, que nasce sob a marca de uma essência transmitida a todos os cidadãos. Uma nação também não é um código genético instaurado em cada um de seus filhos. Tampouco, a nação é uma mera arbitrariedade, um amontoado de farsas, apenas um discurso dos poderosos para controlar sua população. A pergunta persiste: afinal, o que é uma nação? Ela é uma construção coletiva por várias gerações. Uma vida em comum em torno dos mesmos símbolos, cultura, instituições, linguagem, hábitos. Nação é reconhecimento. A placa do consultório médico indica silêncio em Zurique e em Brasília. Contudo, em Zurique, segue-se a ordem à risca, sem chance para negociações ou hesitações. Em Brasília, uma TV está ligada perto da placa de silêncio, as pessoas falam em tom baixo, sem maiores transtornos porque as pessoas reconhecem a natureza da ordem, mas negociam com suas implicações. A ordem entra em cena apenas se o barulho atingir o patamar do incômodo. Ao perceber essas diferenças entre os povos, reconhecemos a diversidade da vida humana e, ao mesmo tempo, a sua universalidade. Nos reconhecemos como brasileiros percebendo essas diferenças entre cultura, símbolos, costumes, linguagens em relação aos outros povos.

Nesse trecho, o Húngaro articula como diferentes identidades nacionais podem surgir para encapsular diferentes sistemas de valor. A premissa do Húngaro é que a atitude cultural brasileira se desenvolve a partir de uma ideia de ordem que é sempre negociada e flexível. Para o Húngaro, essa flexibilidade, que pode ser vista nos movimentos oscilantes da capoeira e nas atitudes liberais em relação às regras e regulamentos, está no cerne da interpretação brasileira do Jogo Funcional.

A flexibilidade inerente ao Jogo Funcional se manifesta de várias maneiras e em várias escalas. No nível macro, as equipes Funcionais tendem a sobrecarregar o lado do campo onde está a bola, em vez de manter os espaços uniformemente ocupados por todo o campo. Diagonais e tabelas (um-dois) surgem e desaparecem conforme as situações se desenrolam, em vez de uma posição ótima ditar a execução de triangulações entre terceiros. E no nível micro, vemos a flexibilidade no gingado dos quadris sinuosos do driblador.

Brasil x Camarões no Qatar
Brasil de Tite na Copa do Qatar. Image: Mauricio Saldana

É aqui que retornamos ao manifesto tático húngaro de Istvan Beregi. Beregi falou sobre como o futebol brasileiro foi influenciado pela chegada de treinadores húngaros que trouxeram consigo o estilo fluido e flexível da escola do Danúbio.

Beregi se referiu a como as culturas húngara e brasileira compartilham um “espírito popular semelhante” e uma preferência por “soluções inventivas”. Há também a sensação de que a ambiguidade e a confusão são mais prontamente aceitas nessas interpretações mais flexíveis da ordem. Menos necessidade de clareza e definição imediatas, a plasticidade supera a rigidez, e as regras devem ser interpretadas em vez de obedecidas rigidamente.

“Além disso, fomos um dos primeiros a usar posições falsas, como Hidegkuti como um falso 9, que também tinha o propósito de enganar.”

O estilo do Time de Ouro da Húngria estava realmente cheio de truques e enganos. As coisas raramente eram o que pareciam, mas se você prestar atenção àqueles jogos clássicos, é possível identificar os padrões do Jogo Funcional. Pontas, como Czibor, se movem livremente pelo campo, o jogo progride através de passes e movimentações, combinações em proximidade surgem por todo o campo e os atacantes formam diagonais para enganar a oposição.

Assistir Puskas passar por cima da bola ao longo de uma diagonal ofensiva imediatamente evoca imagens de Pelé ou Zico. Há impressões digitais húngaras por toda parte no estilo mítico brasileiro.

O Time de Ouro Húngaro utilizando ‘tocar e passar’, tabelas e um corta-luz para marcar contra a Coreia do Sul em 1954.

Vemos movimentos e padrões semelhantes no jogo ofensivo do Fluminense de Diniz. Jogadores se aproximando da bola, ‘tocar e passar’, tabelas e corta-luz para finalizar. Em ambas as ocasiões, as combinações nas laterais envolvem ambos os pontas. O ponta esquerda Keno atravessou o campo para combinar com o ponta direita Arias.

Essa sobrecarga assimétrica de um lado, com os pontas abandonando suas posições (sem serem preenchidas por rotações), é quase completamente ausente no Jogo Posicional. Esses padrões Funcionais já estavam presentes na famosa vitória da Hungria sobre a Inglaterra em 1953, no estádio de Wembley.

“É revelador assistir a um vídeo do jogo hoje em dia, quando, no meio do primeiro tempo, Wolstenholme [comentarista de TV] observa, com um tom entre o divertido e o surpreso, que o ponta-esquerda Czibor veio buscar a bola na posição de ponta-direita externo.”

— Jonathan Wilson

Kocsis passa diagonalmente de fora para dentro para Puskas, que faz outro corta-luz para criar a chance na Final da Copa do Mundo de 1954 contra a Alemanha Ocidental

A Copa do Mundo de 1978 na Argentina. Cerezo faz o passe diagonal, Mendonça faz o corta-luz e Roberto completa a “escadinha”. Os fluxos danubianos animam o estilo Funcional dos brasileiros.

O movimento imediato após o passe (“toco y me voy”) é um princípio fundamental do Jogo Funcional. Aqui vemos uma combinação maravilhosamente inventiva de “tocar e passar cavado” contra o Uruguai.

O falso 9 Hidegkuti se encontra como um meio-campista recuado. Ele joga para Jozsef Bozsik (o verdadeiro), que avança suavemente driblando pelos desafios — eu toco e eu vou. Um belo toco y me voy penetra na linha defensiva.


Energizada pelo sucesso de times como o Fluminense, a atual seleção nacional húngara tomou a decisão consciente de avançar olhando para o passado. Há um sentimento de que ao ‘retornar’ aos princípios que animaram a Seleção de Ouro, uma nova versão do futebol húngaro Funcional e não-zonal pode ser revivida.

A popularização do Jogo Funcional de Bozsik proporcionou uma lente analítica alternativa através da qual as imagens clássicas poderiam ser observadas e avaliadas. Ao reinterpretar os padrões tecidos por Puskas, Hidegkuti e Bozsik, este projeto ambicioso sonha em reconectar o futebol húngaro com o espírito do povo.

“Assistindo aos jogos antes, eu não conseguia realmente abstrair do futebol de hoje, portanto não entendia bem o que estava acontecendo no campo. À medida que me aprofundei na funcionalidade, comecei a entender cada vez mais, descobrindo, por exemplo, a tendência daquela equipe sempre buscar o “kényszerítő” (tabela / um-dois). Ou o fato de nosso ponta – Czibor – às vezes se movimentar da esquerda para a direita para sobrecarregar surpreendentemente, o que era ainda mais único no futebol rígido daquela época. Por que isso é importante? Acredito que só podemos viver bem no presente se entendermos o passado de quem fomos, o que nos dá contexto cultural. Como nação, não gostamos de ser sistematizados, muitas vezes contornamos o sistema para encontrar soluções únicas – por que seria diferente no campo? Não é por acaso que, na história do jogo, o futebol húngaro e brasileiro estão conectados – como nações, temos uma alma similar, e há também a conexão no futebol.”

Dori Kürschner, Béla Guttmann

Em um artigo para o site alemão Spielverlagerung, Beregi deixa claro a importância cultural de reconectar-se com uma herança tática perdida.

Ele também cita os textos de József Bozsik.


7. Kényszerítő

A Hungria chega à Euro 2024 na Alemanha em boa forma; eles perderam apenas uma vez em quinze jogos. O técnico Marco Rossi tem sido claro sobre a identidade tática não-zonal de sua equipe para o torneio.

O ‘3-4-3’ da Hungria se transformou em uma sobrecarga pelo lado esquerdo. Assimetria radical. O camisa 10 Szoboszlai dita o jogo pela esquerda, sempre buscando entrar em diagonal no bloco do adversário.

Szoboszlai lateraliza pela esquerda para iniciar a jogada. Mais uma vez, os húngaros se reúnem no setor da bola. Passa e movimenta, passa e movimenta. Jogadores se aproximam do portador da bola para oferecer o kényszerítő — kényszerítő (a palavra húngara para um-dois) significa ‘forçar’, como em ‘forçar’ o adversário a tomar uma decisão que não querem fazer — seguir a bola? Seguir o homem? Ou ser deixado para trás.

Novamente a sobrecarga pelo lado esquerdo, o toco y me voy, Szoboszlai desde a esquerda, dribla, acelera, penetra para dentro, kényszerítő, gol.

Quando os jogadores se sintonizam mais com as possibilidades oferecidas pela proximidade próxima e orientada pela bola, começamos a ver jogadas de combinação mais elaboradas, fluidas e imprevisíveis. Novamente vemos a prevalência do kényszerítő com dois em sequência.

Desta vez, Szoboszlai recebe o passe diagonal em uma posição central mais ortodoxa. Ele avança, Kerkez se aproxima para oferecer o kényszerítő. Szoboszlai joga e segue. O retorno é perfeito. Jogadores enchem a área, o próximo terceiro homem chega para tentar o gol.

Agora a sobrecarga se volta para o lado direito. Os húngaros podem se juntar em qualquer lado. Combinações rápidas atraem a defesa. Tocar e seguir, sempre fazendo corridas em profundidade para ameaçar o espaço atrás da linha defensiva.

De volta para o lado esquerdo. Movimentos complementares enquanto seis jogadores circulam em torno da zona da bola. Os defensores não sabem se devem manter a posição ou avançar. Os húngaros aumentam a intensidade compartilhando a bola, falando sua língua com cada passe. Uma corrida nas costas da defesa, um passe em arco para entrar na área.

Uma entrada diagonal da direita. O jogo agressivo de passar e andar força a Hungria para frente. O defensor do lado esquerdo Szalai Attila toca e passa – toco y me voy! – sempre ameaçando a linha defensiva.

Na construção, a Hungria se posiciona com uma arranjo posicional relativamente uniforme e equilibrado. Mas assim que a bola é jogada, os movimentos imprevisíveis começam. Os jogadores se aproximam do portador da bola e buscam avançar com combinações curtas pelo corredor lateral.

Esse tiro de meta demonstra o problema que o jogo de ataque incomum da Hungria representa para as defesas modernas. A Sérvia deseja marcar homem a homem. No entanto, o camisa 10 Szoboszlai se posiciona ao lado do goleiro. O meio-campista defensivo da Sérvia não quer seguir Szoboszlai até tão longe e deixar desprotegida a linha defensiva de 4 contra 4. Szoboszlai recebe a bola na linha de seis jardas e atrai a pressão para criar espaço para o defensor livre. A Hungria avança com combinações de passes e movimentos. Szoboszlai livre faz o passe em profundidade e, se o último passe fosse feito, o armador da Hungria poderia ter concluído uma jogada bastante espetacular por si mesmo.

Existe um sentimento crescente de que os sistemas defensivos agora se adaptaram aos problemas apresentados por décadas de ataques posicionais. Pressões bem treinadas homem a homem e híbridas estão se tornando cada vez mais eficazes contra estruturas posicionais de construção. Essa tendência é mais um motivo pelo qual treinadores como Rossi estão optando por uma organização ofensiva não-zonal. Movimentos de ataque mais radicais obrigam os defensores homem a homem a tomarem decisões que não desejam tomar.

8. Arte e engano

Parece uma história mais estranha que a ficção. As táticas da Hungria foram influenciadas pelas teorias controversas de um blogueiro esotérico e anônimo online. Mais estranho ainda, o blogueiro, que presumimos ser brasileiro, utiliza um dos maiores jogadores da Hungria como pseudônimo e avatar. A decisão de Húngaro de permanecer anônimo encapsula o significado mais profundo de toda essa trama. Ao resistir à identificação, a fonte do Jogo Funcional permanece envolta em mistério.

Quem é Húngaro? Ainda não sabemos. Mas no paradigma Funcional, clareza e certeza não são valorizadas como são na indústria analítica mainstream. Grande parte da análise de Húngaro evita apresentações de dados. Os textos não buscam estabelecer verdades objetivas; são histórias sobre como as pessoas se relacionam através de uma linguagem comum do futebol.

O jogo funcional é um estudo de sentimentos, de interpretação e de como diversas perspectivas podem interagir para criar novas combinações. Quantificação e dados não são vistos como necessários ao contemplar a natureza humana dos fatos táticos do jogo funcional.

Seja o que for que aconteça com o projeto de futebol funcional da Hungria, é vital que eles não cometam o erro de acreditar que existe alguma essência fixa, objetiva ou essencial que devem redescobrir. A fixidez é inimiga do jogo funcional e relacional. Inspirar-se em eventos passados não é o mesmo que retornar a uma versão idealizada do passado. Linhagens e essências devem ser vistas como múltiplas, fluidas e sempre em mudança, em vez de singulares, fixas e sedentárias.

A Conexão Húngara conecta um modo alternativo de análise tática à realidade material do futebol profissional de alto nível. Representa uma subversão radical dos guardiões da indústria que buscam controlar o conteúdo e a forma da “análise tática”. Fomos informados de que os “treinadores profissionais” não têm interesse em jargões obscuros online, como se as pessoas que trabalham no futebol fossem incapazes de compreender algo mais complexo do que um gráfico colorido de pizza.

Em qualquer área da teoria dos jogos competitivos, o engano é uma ferramenta primária. Se você consegue coordenar funcionalmente suas intenções enquanto simultaneamente as esconde do oponente, enormes vantagens podem ser obtidas. Criptografia e espionagem são técnicas fundamentais em arenas de conflito e competição. A comunicação homogeneizada é claramente subótima. Quanto mais localizado, específico e culturalmente relevante for o dialeto, mais difícil será para os outsiders decodificá-lo.

A arte da enganação é uma qualidade incorporada por todos os maiores jogadores, então por que a teoria tática não deveria ser direcionada para a confusão, desorientação e engano no nível da organização coletiva? O Jogo Funcional, o Relacionismo — e a análise dentro dessas estruturas — preferem não alimentar continuamente pedaços de dados objetivos. Neste paradigma alternativo, significados emergem da junção de padrões e sinais diversos. Isso é futebol e sua análise sendo levados a sério como uma empreitada artística. Como dizem no Brasil, isso é futebol arte.

O grande pintor italiano Giorgio De Chirico certa vez escreveu que todo grande artista é um enganador descarado.

Talvez nunca saibamos a verdadeira identidade do Húngaro. Mas acho que esse é o ponto.

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