As conquistas devem apenas nos lembrar que o caminho ainda é longo

Robinho e Daniel Alves são duas grandes figuras do futebol brasileiro que foram condenados por estupro.

A prisão de Robinho na madrugada da última sexta-feira (22) depois de anos fugindo da justiça foi, sem sombra de dúvidas, uma enorme conquista para as mulheres. Condenado em 2017 pela justiça italiana a 9 anos de prisão por um estupro coletivo ocorrido em 2013, em Milão, Robinho se manteve distante da Itália durante todo o processo até que, em 2022, a última instância da justiça italiana negou o recurso do ex-jogador e, considerando a decisão transitada em julgada, pediu para que o jogador cumprisse a pena no Brasil. Mais de dois anos se passaram até que o Superior Tribunal de Justiça (STJ) homologasse a condenação italiana e permitisse a prisão de Robinho. Antes tarde do que nunca, imagino.

Em paralelo, Daniel Alves foi condenado recentemente na Espanha a 4 anos e 6 meses de prisão por estuprar uma jovem em uma boate de Barcelona no final de 2022. A justiça espanhola agiu rápido e, ao atraí-lo para Barcelona para dar um depoimento sobre o caso (à época, ainda divulgado pela imprensa como assédio sexual), conseguiu mantê-lo preso e evitar assim sua fuga durante todo o processo. No entanto, a pena foi considerada leve (a vítima vai recorrer para aumentá-la) e, na manhã dessa segunda-feira (25), Daniel Alves pagou a fiança de 1 milhão de euros e foi solto em liberdade condicional. Pelo menos foi condenado, imagino.

A verdade é que as conquistas nos casos Robinho e Daniel Alves, e me esforçando muito aqui para não chamá-las de migalhas, devem apenas nos lembrar que o caminho ainda é muito longo. Sim, a justiça espanhola agiu bem ao cercear rapidamente as possibilidades de fuga de Daniel Alves (provavelmente de olho no caso de Robinho, que ficou quase 7 anos foragido da justiça italiana) e ao processar com eficiência a denúncia da vítima. Sim, foi ótimo a justiça brasileira não falhar (apesar de tardar) ao homologar a condenação da Itália e mandar prender Robinho. Não há dúvidas que ver Daniel Alves condenado e Robinho preso é algo que devemos inteiramente à luta do movimento feminista por justiça, e que desconsiderar tais conquistas seria algo injusto com o caminho que percorremos até aqui. Mas jamais devemos tratar isso como o suficiente.

Pois, veja, apesar de ter sido preso, Robinho ficou quase 7 anos fugindo de sua condenação e mais de 10 anos fugindo do julgamento. Nesse meio tempo, jogou em clubes gigantes da Europa e do Brasil e ainda atuou pela Seleção Brasileira, mesmo com o caso já revelado pela imprensa italiana. Apesar de ter sido condenado, Daniel Alves recebeu uma pena leve e conseguiu ser solto em liberdade condicional após pagar uma fiança de 1 milhão de euros que, convenhamos, é uma quantia irrisória para um jogador de futebol e que “precifica” o estupro de uma mulher. Além disso, ambos receberam apoio extensivo da comunidade do futebol: posso ficar tecendo inúmeros parágrafos descrevendo todo o apoio público que Daniel Alves e Robinho receberam nos últimos meses e anos sem sequer entrar nos discursos covardes e coniventes que se esquivaram das perguntas e se limitaram a dizer frases genéricas sobre o benefício da dúvida e defesas ao caráter dos condenados por estupro.

Aliás, se o assunto é conivência, covardia e apoio a condenados por estupro, difícil não lembrar do caso Cuca. Condenado em 1989 na Suíça por um estupro cometido em 1987 contra uma criança de 13 anos quando ainda era jogador, Cuca fugiu da Suíça e sua condenação foi à revelia porque ele sequer se dignou a compareceu ao julgamento. A justiça suíça afirmou que a vítima reconheceu Cuca e que havia sêmen dele nela, mas mesmo assim a condenação foi apenas de 15 meses e nunca foi cumprida, pois Cuca ficou décadas longe da Suíça sem sequer tocar no assunto. A imprensa brasileira tampouco fez sua parte: a cobertura do caso durante o processo foi muito superficial e inexistiu nas décadas seguintes. A história só voltaria à tona mais de 30 anos depois, com uma manifestação tímida da torcida do Atlético Mineiro quando Cuca retornou ao clube em 2021 e uma de escopo maior quando Cuca foi contratado pelo Corinthians em 2023, que causou a demissão do treinador depois de apenas 2 jogos. Depois da história voltar às principais manchetes, Cuca decidiu que finalmente precisava limpar seu nome depois de mais de 3 décadas fugindo e pediu que a justiça da Suíça reabrisse o caso em novembro de 2023 alegando que o julgamento fora à revelia (já que ele não quis comparecer) e que merecia se defender. A justiça da Suíça aceitou reabrir o caso, mas o crime já havia prescrito (mais uma vez, porque Cuca fugiu dele por 3 décadas) e a condenação foi anulada. A vítima tentou suicídio poucos meses depois de ter sofrido o estupro e morreu em 2002, aos 28 anos, sem causa divulgada. Mesmo com isso tudo, bastou um breve discurso de Cuca sobre arrependimento e sobre querer fazer parte da transformação (e eu não consigo ressaltar isso o suficiente: depois de 30 anos de um silêncio sepulcral sobre o caso) para um mundo mais seguro para mulheres para que a imprensa brasileira, praticamente em uníssono, comemorasse efusivamente a “nobre” postura de Cuca, que admitiu seu “erro” e que se dispôs a mudar, e deixasse de lado o fato que o “erro” a que Cuca se referiu foi um estupro de vulnerável.

Cuca viveu e trabalhou com muito sucesso e aclamação no futebol brasileiro por mais de 30 anos sem falar nada sobre sua condenação e sem que mais ninguém falasse sobre sua condenação. O caso Robinho veio à tona em 2014 e, nesse meio tempo, passou por Milan, Santos, Atlético Mineiro e Seleção Brasileira. Daniel Alves foi condenado e preso rapidamente, mas pagou uma quantia irrisória quando comparada a seu patrimônio para ter sua liberdade de volta. E, no meio de tanta sensação de impunidade a um dos crimes mais hediondos que existem, o caso Cuca nos diz que basta fugir da justiça por algumas décadas e, quando isso começar a pesar a sua imagem, basta um discurso cheio de palavras vazias em uma coletiva de imprensa aleatória declarando arrependimento e envolvimento com a transformação do mundo que quase todos, inclusive várias mulheres, vão aplaudir tal postura, dizer que ela foi histórica e que precisamos de mais homens desse tipo.

A cultura do estupro da nossa sociedade aparece quando ensinamos meninas a não serem estupradas e não meninos a não estuprar. Transferimos a culpa para a vítima que “não se portou direito” e não ao criminoso que acabou com uma vida. Mas ela também aparece quando celebramos a presença de um estuprador no futebol brasileiro por 30 anos, falamos mal dele por uns 6 meses e voltamos a celebrá-lo depois de um discurso vazio. Quando afirmamos que tal discurso foi histórico, atribuímos o valor desse discurso vazio à vida de uma criança que tentou suicídio antes dos 14 anos e não chegou a viver até os 30. Atribuímos o valor de uma multa de 1 milhão de euros a uma jovem que teve a vida destruída em uma boate de Barcelona. A cultura de estupro vem quando basta que um homem pague uma quantia determinada ou fale uma meia dúzia de palavras bonitas para que a vida de uma mulher não importe mais. Se o mundo de hoje não permite mais que um homem fuja de uma condenação de estupro por 30 anos, ótimo. É uma conquista das mulheres. Mas ele ainda permite que um homem fuja por 7 anos e receba apoio público de amigos e influenciadores. Ele ainda permite precificar o estupro de uma mulher com 1 milhão de euros. A cultura do estupro ainda existe. A sociedade ainda é ávida para perdoar esses criminosos. O caminho ainda é muito longo.

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