A esmagadora indiferença do talento

“Eu acredito que o denominador comum do universo não é harmonia, mas caos, hostilidade e morte”

Em seu filme O Homem Urso, o diretor alemão Werner Herzog conta a história de Timothy Treadwell, ambientalista apaixonado por ursos que se aventurou na natureza para filmar os animais. O projeto virou tragédia, e Treadwell terminou devorado vivo, junto a sua namorada, por dois ursos. Em um momento do filme, em um trecho no qual Herzog nos mostra registros do documentado explorando a natureza e vendo beleza no ciclo animal, Herzog profere uma das falas mais potentes do cinema no século.

“O que me assombra é que em todos os rostos de todos os ursos que Treadwell já filmou, eu não encontro empatia, compreensão ou piedade. Eu vejo apenas a esmagadora indiferença da natureza. Para mim, não há isso de descobrir o mundo secreto dos ursos. E esse olhar vazio denota apenas um interesse meio entediado pela comida que está diante deles. Mas para Timothy Treadwell, o urso era um amigo, um salvador.”

A relação desigual entre ser humano e natureza é um tema muito trabalhado pelo cinema de Herzog. Em um de seus primeiros grandes filmes, Aguirre: A Fúria dos Deuses, Herzog abre a trama com um plano aéreo de um grupo de exploradores espanhóis caminhando pelas montanhas da Amazônia em meio a uma névoa. A indiferença da natureza. Homens que creem estar diante do destino traçado por Deus – no caso, a descoberta de El Dorado, a cidade do ouro –, estão apenas sendo engolidos por uma força muito maior do que eles. Logicamente, a expedição também termina em tragédia (e sem ouro).

“Eu acredito que o denominador comum do universo não é harmonia, mas caos, hostilidade e morte”.

Abro este texto citando Herzog pois não penso, no momento, em uma maneira melhor de falar sobre talento no futebol do que citando sua esmagadora indiferença. Este não é um texto defensor do futebol funcional (ou relacional, como preferir), muito menos um ataque ao jogo de posição. Me falta bagagem e até interesse em participar desse debate, pra ser sincero. Mas é curioso como o talento sempre vence. Seja com Vinícius Júnior humilhando racistas após fazer dois gols em Valência, seja com Messi e Mbappé destroçando defesas para marcarem, juntos, cinco gols em uma final de Copa do Mundo, seja em Pelé com 18 anos marcando dois gols na Suécia para amassar o anfitrião e dar ao Brasil seu primeiro título mundial. A história do futebol se conta a partir dos feitos dos talentosos, e não de qualquer outra coisa.

Há a era Puskas, a era Pelé, a era Cruyff, a era Zico, Maradona, Ronaldo, Romário, Messi e Cristiano Ronaldo, e por aí seguimos. O que vemos no futebol de hoje, porém, é um desaparecimento do talento que é extraordinário – não total, mas em volume. O que vemos é um futebol mecanizado, que muitos cometem o erro de dizer “ah, o coletivo se sobressai, é um esporte mais ‘de grupo'”. Mentira. Todos sabem que é mentira. O futebol pré-Guardiola nunca foi sobre individualismo, mas sobre o coletivo ser formado sem ignorar o individual que há em cada um. Futebol é um jogo demasiadamente humano, que a todo momento evoca mitos e representa culturas dentro de campo. As pessoas não amam suas seleções por representarem suas bandeiras, e sim por representarem seus estilos de vida. A bravura inglesa, o tango argentino, o barroco brasileiro (que chega à luz pelas trevas), etc.

O que é curioso é constatar a dissonância cognitiva que persiste em nortear o esporte no século XXI. Cesc Fábregas é um dos craques que fala sobre isso. Em 2021, por exemplo, Cesc afirmou: “(O futebol evoluiu desta maneira) Talvez por falta de talento… (…)O que o treinador atual quer é que todos os jogadores saibam exatamente o que devem fazer. Se estou aqui, este jogador deve estar aqui, e outro ali, para que o triângulo seja assim. Não sei (se os treinadores confiam menos nos jogadores), mas eles estão muito mais focados na maneira de fazer os jogadores atuarem coletivamente. Antes, fazíamos coisas mais individuais, mais específicas para o ponta, o lateral, o meio-campista…”

Para Fábregas, a falta de liberdade de interpretação do jogador tem minado o futebol. E não é para menos. Hoje, joga-se um futebol cada vez mais parecido, independente do país e da cultura. O futebol não mais representa culturas, mas métodos. É uma lógica de mercado, não de pessoas. O campo virou um grande escritório. Só que os funcionários desse escritório ainda são pessoas, e o quão antes o futebol como um todo lembrar e valorizar isso, antes vamos salvar o esporte de sua vertiginosa piora recente.

Mas por quê negamos? Por quê não conseguimos admitir e trabalhar para que o futebol volte a priorizar a formação de talentos, e não a formação de peças de um sistema? O que falta para enfim voltarmos a produzir craques a granel? Até quando continuaremos não apreciando, mas consumindo futebol como se o jogo da semana fosse só mais um filme genérico da Disney? Por quê persistimos no erro, se lá no fundo, todos queremos ver novos craques criando espetáculos?

Porque no fim do dia, as pessoas até gostam de ver os 50 gols de Haaland na liga inglesa, mas quantos não trocariam estes 50 por 10 gols especiais de Mbappé, Vinícius Júnior ou qualquer outro talento contemporâneo de geração? No fim das contas, as crianças que assistem a futebol dormem sonhando com o gol de bicicleta do Cristiano Ronaldo contra a Juventus, com o gol de Messi costurando todos os defensores do Athletic Bilbao, ou sonham com qualquer jogador aleatório batendo um recorde com quaisquer gols apenas dando um toque?

Nada pode ser mais frustrante para um apreciador de bons jogadores do que ver seus talentos sendo desperdiçados em sistemas que não se importam. Mas mesmo assim, o talento persiste em vencer. É ele que emociona, não o número. E no maior dos palcos, o da Copa do Mundo, essa diferença fica clara. Mesmo no futebol pós-Guardiola. Em 2014, Ozil, Kroos, Lahm. Em 2018, Griezmann, Pogba, Mbappé. Em 2022, Messi, Di Maria, Enzo… No final de tudo, o que sobra é a esmagadora indiferença do talento perante os números. Vamos ouvir o campo e apreciar o jogo, ou vamos continuar consumindo futebol como se fosse o último enlatado da semana?

1 comentário em “A esmagadora indiferença do talento”

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