Cássio, o Corinthians e eu.

— Acorda, filho. — disse carinhosamente minha mãe — Vamos para a escola.

— O Corinthians ganhou do Flamengo, né? — pergunto ainda sonolento, mas animado com a resposta.

— Ganhou, filho. Mas dessa vez não passou… a gente tá eliminado.

É essa, provavelmente, a minha primeira memória futebolística. Incrédulo, desatei a chorar. Não pouco; chorava como se tivesse perdido um parente. Doía como se tivesse quebrado uma perna. Não sabia o motivo — na cabeça de uma criança de 5 anos, poucas coisas fazem sentido. Mas menos sentido fazia Ronaldo, Roberto Carlos, Elias, Danilo, Felipe e companhia — meus primeiros ídolos, que apareciam em minha imaginação como titãs indestrutíveis — perderem um jogo tão importante.

Não sabia também o porquê daquele jogo ser importante. Não escapavam-me dos ouvidos, no entanto, as zoações sobre a tal da Libertadores. Zoavam-me na escolinha; amigo de muitos são-paulinos, ouvia falarem que o Corinthians era o menor pois nunca havia ganhado uma. Apenas reproduziam o que captavam dos pais, claro, mas coisa pior era quando os outros pais zoavam meu pai. Aí doía. “Sabe quando o Corinthians vai ganhar uma Libertadores, Carlão? No dia do nunca!”, diziam, rindo. O Corinthians era uma questão familiar. De pai pra filho.

Mas, bem, voltando ao choro, quando vi meu pai — quem me fazia ser Corinthians, e portanto me fazia sofrer — naquela manhã a tristeza virou raiva. Cometi o maior pecado que poderia: revoltado, afirmei que não seria mais Corinthians. Estava pronto para a bronca. Ao contrário, meu pai tranquilamente pediu que entrasse no carro para que me deixasse na escola. No caminho, explicou calmo que Ronaldo havia feito um, mas que Vágner Love fez para eles, acabando com o jogo. Ao chegar, estacionou o carro na esquina da escola, tirou o cinto, olhou-me nos olhos e se preparou para falar.

— Filho, essa é sua primeira decepção com o Corinthians. Você não sabe quantas tive. — na época, eu não tinha ideia do que foram os 23 anos de seca, e que meu pai havia nascido no período — Se você quiser continuar sendo Corinthians, terá que aprender a ser principalmente na derrota. Aprender a sofrer. Agora, se não aguentar e quiser torcer apenas nas vitórias, bem… pode virar são-paulino sem problemas. Continuarei te amando igual. Quer?

Foi um baque. Será que eu ainda era eu, filho de meu pai e nascido do ventre de minha mãe, se não fosse corinthiano?

— Não precisa me responder agora. — prosseguiu — Façamos assim: hoje saio mais cedo do trabalho, e te busco aqui na escola. Quando te buscar, você me diz se quer aprender a perder e ser corinthiano, ou se quer virar são-paulino.

Não é mistério. É óbvio que na saída respondi que queria continuar Corinthians, conformando-me que teria que amar também as derrotas. Era 2010, e eu não tinha ideia do quão vitoriosos seriam os próximos anos. Mas foi aquela a primeira vez que discerni o corinthianismo.

Envergadura

Em meados de 2012, depois de um bom ano de 2011, tive meu segundo contato claro com o corinthianismo. Naquele ano os contatos seriam bem frequentes.

Mais precisamente em janeiro, quando ouvi no Globo Esporte que o Corinthians tinha um novo goleiro. Se chamava Cássio. Tinha uma cara estranha e o cabelo muito longo. Nos lances parecia meio desajeitado; não tinha o jeito do Felipe, do Júlio César (o do Corinthians, que havia virado meu ídolo após seguir em campo numa partida contra o Botafogo mesmo com o dedo luxado, mas isso é história pra outro dia), do Rogério Ceni, do Marcos… era esquisito. O apresentador, acho que o Tiago Leifert, afirmou que Cássio se destacava pois tinha envergadura de nadador: dois metros e cinco! Mas…

— Mãe, o que é envergadura? — gritei.

— Abre os braços, filho. Tá vendo a distância entre o fim da sua mão direita e o fim da mão esquerda? Isso é a envergadura!

— Então, mãe, o que quer dizer que a envergadura do novo goleiro é de dois metros e cinco?

— Que os braços abertos dele são maiores que nossa porta, filho!

Se tudo seguisse normalmente, se estivessemos falando de qualquer outro time que não o Corinthians, a história desse esquisito Cássio se resumiria a ser apenas um desajeitado da envergadura grande. Amargaria banco. Na época, o Corinthians tinha um goleiro consolidado e um bom reserva vindo da base. Cássio, por sua vez, nunca havia se firmado em lugar nenhum. O típico terceiro goleiro.

Mas, enquanto minha mãe me explicava o que era envergadura, lembro de sentir algo especial com aquele goleiro. Sua cara e seus movimentos ficaram em minha mente até que estreiasse como titular. Não discerni na hora, mas ali experienciei pela primeira vez que o Corinthians é o lugar das coisas ilógicas. Dos esquisitos e dos canhestros; aqui, tem lugar o baixinho sem pinta alguma e o gigante aparentemente desajeitado. Das histórias imprevísiveis, impossíveis e misteriosas; do metafísico. Da torcida que invoca seus santos e orixás nas arquibancadas esperando por um milagre.

Saravá, saravá
Salve o santo guerreiro
E uma vela prá saudar
Meu São Jorge padroeiro

Cássio, o goleiro das causas impossíveis

Mas, antes mesmo de invocar São Jorge, existe na história alvinegra Santa Rita de Cássia, a primeira padroeira do Corinthians e a Santa das Causas Impossíveis. Diz a lenda que a barbearia que sediava as primeiras reuniões entre os fundadores Raphael Perrone, Anselmo Correia, Joaquim Ambrósio, Antônio Pereira e Carlos Silva levava, ao lado de uma lamparina sempre acesa, uma imagem de Santa Rita, a quem a torcida atribuiu as primeiras vitórias corinthianas.

Ora, como Cássio poderia, então, não dar certo? Esquisito, desajeitado e de história impossível; nome de santa e assumido devoto da mesma santa que o nomeia. Assim como o Corinthians, desde sua origem, estava destinado às causas impossíveis, Cássio estava destinado ao Corinthians.

E o goleiro da santa, nos seguintes doze anos, provaria repetidamente ser um devoto das causas impossíveis.

Vi tudo acontecer. Sem esperar muito — fui bem treinado por meu pai —, vi Cássio assumir a vaga de Júlio César. É, algo tinha ali. Estreiou bem, e nada mais Corinthians do que assumir a titularidade justamente em fase crítica do maior trauma do corinthiano: a temida Libertadores da América. Estreiaria na competição contra o Emelec, na altitude. Em 2012, entretanto, havia algo de diferente no ar; um “agora vai” tremendo. Parecia que todas as forças santas e metafísicas corinthianas haviam sido canalizadas para aquele momento. Pro Corinthians, no entanto, isso significa viver numa linha exageradamente tênue entre ganhar e perder. E essa linha foi determinada pela mão, ou melhor, pelos dedos de Cássio.

Depois de uma partida segura na altitude, a canonização de Cássio veio inesperadamente no início de sua jornada. De cara, sem tempo de consolidação. Do absoluto nada.

Nas tensas quartas-de-final contra o Vasco, o Corinthians oscilou como nunca entre a glória e o fracasso. E nunca esteve tão perto do fracasso como no momento em que Alessandro chutou a bola nas costas de Diego Souza, que viu apenas Cássio nos 60 metros que o separavam do gol. Fácil. Mas, ainda usando a camisa 24, o goleiro da santa operou sua primeira causa impossível. O silêncio do Pacaembu foi interrompido pelos milagrosos dedos do goleiro, que na frente de Diego fez seus 2,05 de envergadura se transformarem no tamanho do gol. Impossível — não com Cássio, e não com o Corinthians. A história, dessa vez, não se repetiria. Eu não seria acordado no dia seguinte com a triste afirmação de que havíamos perdido mais uma vez. No fim, gol milagroso de Paulinho e, passadas as semis e a final, Corinthians finalmente campeão. Eu vi.

Vi também no Mundial. Naquele 16 de dezembro, acordei com a certeza de que Cássio seria intransponível. Tudo apontava pro camisa 12. Dito e feito: milagres contra o Chelsea e, novamente, a ponta dos dedos: Moses recebeu na esquerda, cortou pro meio e bateu. Meu coração parou. Merda, era gol. Era óbvio que era gol. Chute perfeito, que entraria em 99 de 100 tentativas contra qualquer outro goleiro. Mas contra Cássio e Santa Rita, numa final mundial, não entraria nem que tentasse 1.000 vezes. De mão trocada, foi buscar, mesmo que parecesse que seus 1,95 de altura e 2,05 de envergadura não fossem suficientes. Os corações em casa pararam. Timão campeão, e com menos de um ano de casa, Cássio ídolo. E para mim, a tranquilidade de quem, além de tudo, podia se afirmar campeão, mesmo sem precisar disso para sentir orgulho do próprio time. Eu vi.

Nos próximos doze anos continuaram as causas impossíveis: incríveis 32 pênaltis defendidos, idolataria consolidada, dezenas de atuações históricas e o medo retumbante dos adversários de enfrentar Cássio em um jogo decisivo. Mas a história também reservou espaço para as falhas, para a oscilação, para a bebedeira e para o estranhamento com a torcida. Eu vi.

Cássio, humano

O ídolo é em essência complexo, cheio de nuances e conflitos. E se Cássio é Corinthians, nada mais alvinegro do que oscilar constantemente entre céu e inferno; entre a glória e o fracasso. Do que ser, ao mesmo tempo que entregue ao santo, ao orixá e ao metafísico, exageradamente humano. Cássio foi feito para as grandes noites; nas noites mornas, parecia desligado. Falhava. Em 2016, veio a bebedeira e o banco, após a glória em 2015. Em 2017, a volta por cima, e em 2018, a convocação pra Copa. Em 2020, a crítica; 21 e principalmente 22, redenção; 23, oscilação completa e 24 o fim. Céu e inferno, ano após ano. Desentendimentos com a torcida, má condução de situações por parte do clube e do jogador. O fim foi inevitável.

Nada que o apagasse como inquestionável maior ídolo da geração. O esquisito goleiro da cara estranha e dos braços grandes demais colocou-se num patamar inesperado. Não maior que figuras como Rivellino, Socrátes e talvez Marcelinho; Cássio representou o corinthianismo enquanto estes o criaram. Mas tão grande e importante quanto. Aquele estranho indivíduo, que seria, se muito, uma nota de rodapé na história de qualquer outro time, no Corinthians se equipara à craques históricos não só do clube, mas do Brasil.

Cássio sai, mas deixa na história uma das mais fiéis representações do corinthianismo já vistas. Devoto de Santa Rita de Cássia, esquisito e protagonista de uma história inesperada, o 12 não precisa se afirmar Corinthians ou ser perfeito. Ele é Corinthians, nasceu Corinthians e morrerá Corinthians. Independentemente do que escolher viver daqui pra frente, o que o liga a nós é maior do que nossos julgamentos. O número 12, a camisa amarela e a faixa na cabeça serão para sempre inconfundíveis.

E por minha parte, um sincero obrigado. Não só por me fazer uma criança feliz com vitórias no futebol, mas por me ensinar sobre o corinthianismo e consequentemente sobre a vida. O Corinthians segue, e é urgente que reafirme os valores que fizeram possível um Cássio.

Para todo o sempre, Cássio, obrigado. Obrigado.

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