Eurico Miranda, John Ford e a complexidade da vida

Eurico Miranda já foi uma figura divisiva. Hoje, é tratado como um dos grandes vilões da história do futebol brasileiro e, principalmente, do Vasco da Gama. A série “A Mão do Eurico“ se propõe, em cinco capítulos, a dissecar essa figura a partir de seus feitos, abordados em ordem cronológica e acessados por relatos atuais e registros históricos. É uma viagem pela trajetória do homem que foi de um mero membro do clube de regatas até se tornar a figura mais poderosa da história de uma instituição centenária.

Poderíamos passar horas em um boteco discutindo as falhas da série. Afinal, é muito claro o que seus realizadores escolhem contar e o que omitir – o que, vale dizer, é totalmente válido, afinal, todo documentário é, também, uma ficção. O fato de a série não falar sobre a Copa União de 1987 e o acordão entre Eurico e CBF para melar os planos dos 12 grandes de criar uma liga independente, por exemplo, é triste, já que, até hoje, o futebol brasileiro sofre nas mãos da Confederação justamente pela sabotada protagonizada por Eurico.

Mas o mais interessante é ignorarmos o doisladismo e focarmos no que a série tem de mais interessante: Eurico foi dúbio por ser, ao mesmo tempo, o pior dirigente para se enfrentar, mas o melhor advogado que seu clube poderia ter. Poucos – ou talvez nenhum – dirigente lutou tanto por seu clube quanto Eurico Miranda, independente do custo. Foi protagonista no desmoronamento de um dos mais tradicionais clubes do país, que teve uma queda que não pode ser comparada com a de nenhum outro grande no século, mas também foi o sujeito que fez o Vasco viver sua era mais vitoriosa; que levou para o campo o gigantismo que o Vasco já tinha fora dele.

Eurico manipulou o regulamento para ter Edmundo na final de 1997 e ser campeão, e deveria ter sido julgado e punido por isso, mas não há como não respeitar o quão longe ele foi e arriscou para ver seu amor triunfar. O interessante de Eurico é que não precisamos dividir entre o bom e o mau, eles coexistem no mesmo personagem, nos mesmos atos, nos mesmos feitos. Quando expulsa Roberto Dinamite, maior ídolo da história do Vasco, das tribunas, é por se sentir ameaçado, por sentir ciúmes do clube que amava, temer perder o controle. O poder, obviamente, corrompe e o corrompeu, mas até em seus gestos mais reprováveis, Eurico demonstrou amor pelo Vasco.

É até engraçado como o documentário da Globoplay traz relatos tão carinhosos sobre uma figura que possui uma imagem tão negativa. Boa parte das conversas são com familiares de Eurico, e outras com jornalistas que não demonstram ódio ou desprezo por ele, mas fascínio, além de lendas do futebol que só têm coisas boas para falar sobre, como Romário. O que “A Mão do Eurico” parece querer vender para nós é que Eurico não é doença, mas sintoma. Uma figura típica (mas exagerada) do futebol do século passado, que se tornou anacrônica ao permanecer no poder quando não tinha mais como acompanhar as mudanças que o mundo do esporte sofreu.

O que acredito, porém, não é que seja um caso de anacronismo nem de doença ou sintoma, e sim de aceitar que o mundo é complexo o suficiente para pessoas boas cometerem atos reprováveis, e pessoas terríveis possam fazer coisas belas. Serve também para a arte, com figuras terríveis como o cineasta Roman Polanski fazendo obras brilhantes como “O Bebê de Rosemary”, “Chinatown” e “A Pele de Vênus”. Serve para o futebol, com Eurico Miranda dando ao Vasco o gigantismo que merecia nos anos 90. Serve, principalmente, para a vida. No próprio cinema, John Ford fez isso melhor do que ninguém em “O Céu Mandou Alguém”, filme no qual três foras da lei, responsáveis pelos atos mais hediondos, arriscarem suas vidas para salvar a de um inocente, custe o que custar. No caso de Eurico, seu amor pelo Vasco custou sua saúde, sua vida, sua relação com sua família. Custou tudo, e tenho certeza de que valeu a pena.

O que podemos aprender com a trajetória de Eurico e com os filmes de John Ford é aceitar, de uma vez por todas, que a vida é dúbia, e se não estivermos dispostos a conceber que o mundo é complexo o suficiente para pessoas possam ser, em vida, heróis e vilões, jamais poderemos nos colocar como agentes que interpretam o mundo. E não digo isso abonando os crimes de Eurico Miranda e muito menos os de figuras como Roman Polanski. Este texto é apenas um pedido para que voltemos nossa atenção para um fato: o mundo é complexo e as pessoas também.

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