Jorge Ben me faz lembrar de muitos fatores que compõem o ser brasileiro. A discografia de Ben é uma reunião dos infinitos fatores que remetem ao Brasil: o improviso, a rebeldia, a luta, a beleza, o futebol, a música em si, o cotidiano do homem brasileiro e suas angústias e prazeres. É claro que poderíamos falar do tecnicismo da coisa e de como ele, em um único som, reúne tantos meios diferentes de se fazer música e cria uma unidade – meios que até então podiam ser interpretados como antagônicos, mas que, através da voz e da mão direita de Jorge, dão vida a algo que considero uma verdadeira forma brasileira de fazer música.
O “jeito brasileiro” não cabe só aqui, e penso ser a capacidade do brasileiro de se adaptar, de dar nova vida ao que vem de fora, um novo rosto, abriasileirado. Como fizemos com o próprio futebol, isso também parte da capacidade/necessidade de fazer as coisas precisando driblar as infinitas dificuldades que se apresentam diante de nós, inclusive na arte. Como foi, não só, mas também, no período da ditadura militar brasileira, que é justamente o momento em que Jorge Ben surge.
A música “Força Bruta”, que faz parte do álbum de mesmo nome lançado pelo artista em 1970, trata de uma história de amor que transita entre sonho e realidade. “Não, não, não diga mais que este amor é como um sonho / Pois os sonhos acabam de manhã / E eu tenho que acordar (Força bruta!!)”, mas também existe o seguinte trecho: “Quero fazer da minha vida um sonho de verdade / Para viver com você”. Ou seja, esse amor precisa ser constante, precisa ser consumado, precisa ser real. A frase “força bruta”, repetida algumas vezes e presente no título da música e do álbum, seria não a força bruta literal, física, mas a força para manter essa chama acesa quando o dia amanhecer.
O futebol brasileiro, como quase tudo no Brasil, já nasce precisando se adaptar a uma realidade material adversa e dura. Sobreviveu e sobrevive assim. É um fato curioso que, dessa necessidade, tenha surgido o futebol mais bonito do mundo. A pluralidade cultural também contribui imensamente para a riqueza de talento e de forma que o país do futebol teve e, em partes, ainda tem. É verdade que vivemos uma crise no futebol brasileiro, representada principalmente pela irreconhecível seleção brasileira recente. Mas, claro, que ainda vai muito além dela. Meu ponto é que essa força ainda reside aqui se ainda formamos Endrick, Estevão e Vinícius Júnior.
Vinícius Júnior: preto, brasileiro, periférico. Por natureza, já nasceu precisando driblar. Uma história repetida, um tema repetido inúmeras vezes quando se escreve sobre o jogador e o futebol brasileiro. Mas gostaria de ir além e pôr o Vinícius no contexto que eu trouxe para o texto, como um representante da Força Bruta. No momento, o maior deles. Até porque a origem do Vinícius não é um fato novo, mas o sucesso dele, tendo vindo desse contexto, custou muito. Ele teve e segue tendo que ouvir as mais desumanas atrocidades, a ponto de estádios se mobilizarem para ofendê-lo, bonecos referenciando-o serem pendurados como ameaça, e os constantes comentários infelizes na mídia. Não só isso, mas só para que se tenha noção do que esse homem suporta. E o seu sofrimento, seguindo a lógica capitalista, é mercantilizado e espetacularizado.
A racialização por si só é construída desde sempre como algo que viabilizava a exploração econômica que esse tipo de hierarquia de etnia e cultura permite. Ainda hoje, isso não mudou. Tanto que Vinícius foi premiado por sua luta antirracista pela mesma elite que corrobora com o seu sofrimento com a impunidade ao racismo presente no futebol. Não se envolvem para contribuir para que os racistas, pelo menos, se escondam, porque o racismo vende. O nome do Vinícius e a sua luta foram usados como cartaz para fazer propaganda do evento. Quando falamos de Bola de Ouro, entendo a importância do reconhecimento de um brasileiro. No momento em que vivemos, contribui para a autoestima do futebol brasileiro que Vini seja o melhor do mundo. Para ele, ser o melhor do mundo é ter mantido viva a chama, a Força Bruta, passando por tudo que passou. Mas é a mesma elite citada anteriormente quem define isso?
Quantas bolas de ouro venceu Pelé? em atividade, nenhuma. E quem se lembra das que foram entregues de maneira póstuma? ninguém, porque elas não importam. Para a mídia, foi um teatro numa suposta (!!) tentativa de revisar os erros da premiação no passado. Para o torcedor, e para o torcedor brasileiro de futebol, não mudou nada. Pelé foi Pelé por si só. O homem que mudou o futebol, e por meio do futebol, mudou em partes, o Brasil. O maior representante do futebol brasileiro e o homem que definiu pra sempre o que se imagina do jogador de futebol brasileiro. Isso nunca foi verdadeiramente reconhecido por essa elite, e ainda hoje perpertuam narrativas que visam rebaixar o Rei.
Vinícius Júnior é o melhor do mundo no presente momento. Não estou cravando que ele não vencerá a Bola de Ouro, nem que vencerá. Mas digo que não é ela a síntese de todos esses fatores. É o próprio Vinícius. Enquanto indivíduo, mas também enquanto alguém que nos representa, que sintetiza grande parte do que é ser brasileiro, particularmente o brasileiro suburbano. No jogo por si só, alegre, bonito, solto, de improviso, um misto de elementos. Mas também na persona, alguém que já nasce inserido em um contexto desfavorável e que o tempo todo tem que resistir. O sonho da recuperação de autoestima do futebol brasileiro não é uma Bola de Ouro – nem o reconhecimento do Vini como melhor do mundo por si só pode ser. Mas, além disso, Vinícius ascendeu ao que ele é atualmente derrubando tudo que queria impedi-lo de fazer isso, tornando o sonho real, verdadeira representação de força bruta.