Após duas baldeações no metrô e um trem, enfim havia chegado ao novo estádio do Tottenham. O bairro que dá nome ao time fica no extremo norte de Londres, uma zona pouco acostumada a receber turistas até a construção do mais moderno estádio da Inglaterra. A partida contra o Az Alkmaar da Holanda não era badalada, pelo contrário, então a turma parecia ser a que está sempre por lá. Mas é muito difícil perceber tradição e comunidade em estádios recém construídos, sobretudo numa arena moderna como a dos Spurs, que mais parece um shopping do que qualquer outra coisa.
Você vê aquele colosso, de longe, cheio de vidraças modernas revelando partes de seu interior. Depois, se aproxima dos portões e se pergunta se está entrando num estádio ou num prédio comercial. Até que chega na área interna e se depara com a maior praça de alimentação que já viu. Por fim, quatro telões imensos no campo transmitem a partida simultâneamente. É realmente impressionante.
Para não virar uma birra contra o futebol moderno, que muitas vezes perde o foco: a arquibancada “popular” do estádio é um espetáculo. A inclinação e a curvatura das beiradas a faz parecer infinita, e os torcedores que frequentam o setor são bastante animados para os padrões ingleses. O que quero dizer é que o Tottenham soube, dentro do possível — considerando que a elitização já é um fenômeno praticamente incontornável — conciliar a modernidade e a tecnologia com a criação de um ambiente de jogo. Ponto em que a maioria das novas arenas falham.
A partida em si foi decepcionante, mas um jogador fez valer o ingresso. James Maddison sempre tinha uma carta na manga. Baixando para buscar a bola no zagueiro ou recebendo sob pressão, o camisa 10 dava fluidez para o time chegar ao ataque. Era o óleo no motor do Tottenham. E quando não levava sozinho, se mandava como opção para lançamentos. Nesse cenário, era impressionante a forma como amortecia a bola no domínio e balançava o corpo para criar seu espaço. Maddison é o tipo de jogador que faz o jogo ser sobre ele.
No pênalti convertido por Richarlison, que garantiu a vitória por 1×0, apareceu Maddison mais uma vez. Fora a jogada que provocou a penalidade, o capitão demonstrou por que carrega a faixa no braço. O brasileiro não passa por um bom momento, e, sabendo disso, o inglês lhe entregou a bola, abrindo mão da cobrança. Ao final do jogo, também não perdeu a chance de elogiar publicamente o garoto Moore, que fez um belo segundo tempo na ponta esquerda. É lindo como a percepção sobre um jogador muda quando vemos o jogo no campo. Ao encurtar a distância e observá-lo de perto, nos inserimos naquele contexto e percebemos sua verdadeira importância.
O juiz apitou o final da partida por volta das 21h55. No caminho até o ponto que o aplicativo tinha indicado, com a barriga roncando, pensei algumas vezes se não valia a pena parar numa barraca e comprar um sanduíche. Mas concluí que o cansaço era maior que a fome e que queria mais voltar para casa do que comer. Com as ruas bloqueadas, andei uns dez minutos para chegar ao ponto, onde o pesadelo teria início.
Alguns meses atrás, assisti com minha mãe ao filme Depois de Horas, de Martin Scorsese. Na trama, um sujeito cansado após o trabalho conhece uma garota que o convida para sua casa do outro lado da cidade. Curioso, ele pega um táxi e vai até lá, mas uma série de eventos inesperados o prende numa interminável luta para voltar para casa.
Trinta minutos se passaram e nada do “149”. De tempos em tempos, minha barriga tentava me convencer a correr até uma lanchonete enquanto o ônibus não passava. Cheguei a insinuar o percurso, mas o medo de perdê-lo me fez recuar. Aquele velho dilema: quanto mais demora, mais perto está de chegar.
Mas não chegava. O cansaço me venceu e subi no “341”, que me obrigaria a pegar outro ônibus, o que pouco importava naquela altura do campeonato. Só queria chegar em casa. Subi as escadas, sentei na cadeira e peguei o telefone. 22h40.
Durante o trajeto, pensava em James Maddison e observava aquela Londres fora do roteiro. O futebol revela partes da cidade. Já eram 23h, e as barbearias estavam abertas, todas com a bandeira de algum outro país estendida. Pessoas entrando, saindo, se cumprimentando. Em meio ao cansaço, ver aquilo me confortou de alguma forma.
Após uma hora no “341”, o ponto da troca enfim se aproximava. Porém fui pego de surpresa por uma inesperada curva à esquerda. Apertei desesperadamente o botão de parar e desci no ponto seguinte. Correndo até onde o “149” deveria me levar, vi o segundo ônibus passar batido. Era o último. Naquele exato momento, lembrei de Depois de Horas.
Desacreditado, voltei para o outro ponto e esperei o “17”. Demorou pouco a passar, mas com ele veio a gota d’água. Ao subir no ônibus, o motorista virou para mim e disse que só iria até o próximo ponto, mas que deixaria eu viajar de graça. Entre um ponto e o outro, senti saudades do transporte público do Belo Horizonte.
O terceiro ônibus foi o “63”, que me deixou a quinze minutos de caminhada do meu destino. Já passava da meia-noite, e entrei num beco escuro, o único caminho possível. Torcendo para não cruzar com ninguém enquanto o poste piscava, vi um vulto se aproximando e pensei: pronto, era só o que me faltava. A figura cambaleante, com uma lata de cerveja na mão, chegou perto, apontou para minha camisa e perguntou: “‘Arsenal fan?” Bêbado maldito. Dali em diante, tudo virou uma grande comédia, até o casal de cracudos que passou tremendo por mim.
Depois de horas, cheguei na casa da minha prima à 00h20. Lembrei da fome, abri a geladeira e esquentei um strogonoff. Foi o melhor da minha vida.