Linhas sobre o corpo no futebol
El fútbol es juego de destreza, picardía, fintas. Essas são as palavras que Dante Panzeri utiliza para definir o futebol. O jogo de futebol é uma ciência difícil, “dinâmica do imprevisivel”. Alguns dizem ser até mesmo, oculta. Pensamento que surge da própria ferramenta de “trabalho” do jogo: o corpo.
Não tem nada mais difícil que conhecer o corpo. Alguns utilizam a biologia, outros a filosofia, uns a crença. Uns mais materialistas outros mais subjetivistas. O corpo é sempre um mistério. Sua frequência, sua transcendência, às vezes, imanência, é um mistério que acompanha o indivíduo sem que ele pense nele(?).
Exatamente por ser esse objeto de desejo entre todos os homens, é que o corpo no jogo de futebol, é um forte dilema. Por se tratar de um esporte de invasão, onde a premissa é “dominar o mais fraco”, o futebol, nesta semiótica de guerra, exige que o corpo (e tanto quanto, “corpo” entendido também como um conjunto, o “corpo técnico”) seja obediente, dócil, se tornando um corpo socialmente modificado, ou seja, controlado, disciplinado e pronto para combater. O jogo como uma guerra é um estado da sua própria natureza – o locus da sua invenção é simulacro de guerra, porém, a sua composição é particularmente tão dramática – joga com os pés, impedimento, goleiro com regra específica – que esse estado de “guerra” se altera, passando da austeridade da batalha, para um completo jogo de encenações teatrais, proibido e total.
Via de regra, para falar do corpo no futebol é preciso falar sobre como o jogo se faz como um todo. Pensamos no estádio. O estádio de futebol é feito como um ‘coliseum’ da era industrial, e como apresentado, esse aspecto parte da necessidade do espetáculo de sangue e violência que partilhamos como entes de uma sociedade que nos tem como “massa uniforme e descaracterizada” pronta para a guerra – mas o desejo não morre. Entretanto, se somos preparados para nos defender, socialmente falando, a manifestação pura desse sangue e violência é proibida. O futebol vira campo para isso. O gosto em assistir a mais alta representação de virilidade e domínio, faz-se um aspecto psicológico desse desejo reprimido, que teatralmente se reinventa no corpo do ‘seu’ gladiador preferido quando ele enfia o punhal no peito do seu rival – um fenômeno de “corpo e representação”. O estádio de futebol recria e de certa forma, aparece para suprir a mesma ‘patologia social’ que flui entre as leis e a ideia de corpo na história. Não é diferente, na arquibancada você pode dizer: – “esse eu faria”. Ou, “eu jogo melhor que esse daí”. Nelson Rodrigues complementa: “para o torcedor é uma delícia perceber, pelo olfato, que não há marmelada, conto-do-vigário: – os jogadores estão realmente suando a camisa, aos borbotões”. O torcedor se torna o próprio gladiador, e é apenas isso que ele quer. E quando não, quer um pouco mais, quer que o gladiador se mate por uma bola dividida, se mate pela camisa do seu time – como ele iria fazer.
Esse apelo (natural) do jogo por situações trágicas é o que verifica as raízes de sua popularidade. O seu jeito de ‘teatro grego’, com o coro dando forma e nota às ações (precisando sempre do “drama grego”, a ação e movimento), o difere dos outros, e mais do que isso, o encarrega de ser mais deslumbrante, do ponto em que ele é narrado, descoberto entre táticas e técnicas, na forma de um suspiro no clímax de uma bola dentro. Dificilmente – novamente por questões de como o futebol é – vai haver um jogo tão sedutor e inesperado como o futebol, e dificilmente, vai haver um rito de corpos na “era moderna” capaz de depender de todos eles em conjunto para alcançar uma “máxima virtude”. O corpo no futebol é uma senhora composição imagética produtora de drama e ele se faz assim, muito, pela forma repleta de imaginação que balizou a estrutura do futebol. Tanto quanto também o é assim, por partir da inevitável necessidade de ser jogado por pessoas diferentes, cada um com seu desvio, com seu parâmetro etc, sempre adicionando a sua unidade de existência no jogo da eternidade contada.
O drible e o cara que dribla
Esse texto é aberto com uma incisiva citação do Dante Panzeri. Para Panzeri, o fútbol es la arte del imprevisto. As notas que ele desenvolve na sua obra maestra Fútbol A Dinámica de Lo Impensado é um excelente esboço para entender quem joga, quem treina e como se joga. O documento feito por ele se desenrola através desses três tópicos.
No futebol contemporâneo, podemos dizer, que vivemos a crise dos DTs (diretores técnicos). Se credita os técnicos antes dos jogadores. Entretanto, essa é a superfície do problema que vamos percorrer.
Tudo se inicia na formação de base. O jogador de futebol, antes de ser jogador, é um homem, homem-comum. Por isso ele joga bola. Desde pequeno tá lá, batendo bola, da mesma forma em que imagina uma artimanha e da mesma forma que o cheiro da comida de casa saboriza o seu paladar. Jogar futebol, no entanto, é tão fácil e misterioso como esses acenos que o corpo dá ao mundo. Panzeri, falando indiretamente sobre isso, utiliza de forma feliz, uma cartilha de motorista para descrever essa sensibilidade que está no “jogar bola” Essa cartilha não serve para aprender a dirigir. Da mesma forma, ela serve para informar que é impossível ensinar alguém a dirigir. Metáfora entre o aprendizado e o exercício que serve para falar: é impossível ensinar a viver. Aqui é quando entra o futebol, como monumento (entidade social) que não se aprende, mas, que é jogado, em um exercício que participa da infância daquele que se tornará jogador, de forma espontânea, sendo necessário apenas uma bola e um descampado para dar início a esse jogo – parte do cotidiano. O futebol, justamente, não pode ser ensinado como tabuada, porque se nasce fazendo ele ou não. É impossível, porém, eleger aquele que nasce sabendo jogá-lo; e aqui é que o futebol, como um jogo indiferente a seriedade e sendo uma prática de natureza infantil, acontece e, empiricamente, forma o jogador, capacitando-o em uma pedagogia da rua, em uma brincadeira de corpos livres.
Mas esse jogador está simbolicamente morto pro ‘futebol industrial’ da nossa década, e essa infelicidade, deve-se ao fato, um tanto velho, de como se valoriza um punhado de especializações de quem é examinado e verificado como um “conhecedor do futebol”. Nessa linha, no tempo atual, a busca é pela fabricação de “um jogador”.
Voltemos à cartilha: ela não serve para nada. Mas aqui e agora, ela substitui o cérebro humano e formaliza em detalhes, o ideal para se dirigir bem ou, jogar futebol. Então, o que antes era uma formação que não atravessava as limitações e adaptações que o corpo, com o tempo, alcançava, se tornou um escopo fabril, alicerçado em uma pedagogia que violenta as fases mais pessoais do homem. Onde, na circunstância que o futebol moderno é desenvolvido na atualidade, ele busca pretensiosamente, manipular a humanidade do indivíduo, que se tornará peça, e fabricá-lo ao seu gosto, roubando-lhe de fato, a alma, sua espiritualidade e seu corpo.
O jogo de futebol é um espaço onde vence o mais esperto, o mais malo, um jogo de picardia. E na sua dualidade simples entre jogar bem ou mal, ele ainda se faz um universo de coisas ao considerar que o volume humano ao qual o jogo depende para acontecer, valoriza aspectos muito pessoais e individuais. Por exemplo: garra, autoridade, coragem. Você pode ser ruim, mas ser virtuoso em outras áreas que também dizem respeito a saber jogar futebol – “o futebol é metáfora da vida”. Essa parte, no entanto, como venho ampliando, é ignorada pelo novo futebol um tanto “biologizante” do nosso tempo. Acredito ainda que estamos na fase onde se joga o futebol mais correto possível, e por isso, é o período onde se joga da pior maneira. O futebol “biologizante” acontece do ponto onde o método de formação dos jogadores ignora todas e quaisquer características pessoais, tendo olhos apenas para a técnica, ou seja, a execução fina do gesto. No nosso tempo, o jogador é medido. O jogador é pesado. O jogador é menos homem. O jogador é mais mercadoria.
Não estou afirmando contra a “técnica”, mas contra o uso idiota e presunçoso dela. O futebol sempre foi um jogo aberto, onde, assimilações do meio social, diziam mais sobre ele do que um “teólogo” da bola poderia dizer. E por isso, ele não se ensina. Não se ensina um canhoto a ser destro, por isso, “ensinar” é falho e atrasado. No entanto, o futebol radicalmente se tornou aquilo que é a cultura ao seu redor: um espaço para formar sujeitos. Sim, como se forma o operário, o aluno, o soldado. Formando “jogadores” carentes e desvinculados do “si”. Colados no corpo e na identificação do profissional jogador; atleta-jogador. O que antes fora homem-jogador, passou a ser um atleta que cumpre e volta para casa. O que é ensinado então, é ser a coisa(!), como nos outros meios citados.
Há no entanto, em meio a todo esse naufrágio do futebol, um elemento minucioso, guardado a excepcionalidade de alguns e odiado pelo futebol de ordem e disciplina: o drible. O drible é um componente que, conforme é possível visualizar, vem quase que de “nascença” com o jogador. O drible se aprende porque se não, não se supera o oponente.
Certo, é um elemento natural do combate, aprendido espontaneamente na brincadeira. Mas, no contexto moderno é diferente, ao drible, foi conferido a ideia de desobediência. E apesar de suja ser a forma como os técnicos se valem desse ‘componente’ nas horas em que suas ideias caem por terra, assim é que o drible aparece no tempo atual: “em último caso drible”. Driblar será o que diferencia a poesia do verso. Uma falha, uma atitude incontrolável da carne, uma impureza. É exatamente por ser tratado como isso, que ele aparece como deve aparecer. Acontece que o futebol faz um “englobamento do contrário” ao negar a validade e razão do drible. Esquece-se que esses ‘homenzinhos’ são tentados por ‘demoniozinhos’ que lhe sopram o mínimo de contradição. Quando eles pensam estar essa impureza, sob as leis do puritanismo da bola, é que o todo faz parte também do outro e o drible vêm. Vêm como um maldito instinto.
Quando driblamos: Mário Filho, Panzeri e Garrincha falam sobre Lamine Yamal
O drible é o instinto original do futebol. Tudo tem o seu pecado, original. No futebol, é o drible. Panzeri aponta esse gosto pela liberdade do drible como sendo uma coisa de ‘cara sucia’, que provém indubitavelmente da vida. O futebol, popular que é, foi (e é) arrebatador nas classes baixas. Panzeri diz que essa é a origem pura e feia do drible: ele aparece como a sublimação da realidade feia. Quase um quadro psicológico, podemos dizer. O drible está antes na sociedade, e assim, na adaptação dela. Se ela é cruel, jogamos bola, se ela é triste, jogamos bola. Essa imaginação fértil da escassez, é o elemento, que segundo Panzeri, colabora para um futebol de rua que é pegado e sujo na ideia de fazer uma ‘sacanagem’ de drible contra o colega. Daí, vocábulos como ‘tiene mucha cancha’ aparecem nas arquibancadas. Ainda assim, apesar de fazer boa ontologia sobre o gesto do drible (revolucionário!), Panzeri busca também, uma dedução sobre a vocação para ser manhoso e gostador de futebol assim. Aqui, ele retorna de novo a origem singela e diáfana do futebol: as crianças. Digo ainda, a esfera. A esfera é um objeto por si só diferente dos demais, tem uma energia própria, e como pensavam os nativos, era o sol. A esfera ao rolar, naturalmente, e de fato, inevitavelmente pede um chute. Porquê um chute? Os pés são muito mais instáveis que as mãos, porque um chute? Mas as crianças chutam e batem bola. Panzeri acredita na vocação como esse traço instintivo de correr atrás da bola; como a mesma necessidade ingênua de chutar uma bola com os pés. Gosto desse trato pois, novamente, não tem como saber quem é elegido para jogar futebol, mas existem aqueles, os quais, que são seduzidos um pouquinho mais pelo gesto lúdico de jogar a bola para o alto ou penteá-la, sendo isso, uma espontaneidade.
Mário Filho na mesma linha acredita nisso quando olha para Garrincha. Garrincha foi caçador de garrinchas quando pequeno e isso o definiu como um feroz driblador. Feroz no jeito, mas humilde na conquista. Porém feroz. Esse composto entre natureza e homem que Mário trata sem perceber é interessante do ponto que Garrincha se tornou exatamente como o seu arredor. Vivia no meio do mato, a caçar, e se tornou bicho, tal qual. Não fazia uma zueirinha e pegava o mais arisco dos animais com o seu bodoque. Instintivo? Claro, Garrincha era como a natureza. E tanto se adaptou, que somente ela poderia lhe dar o sentido de encurtar a perna direita em um arco, para ficar da altura da esquerda, fazendo dele o criador do drible. Assim também, ao ter o seu oponente na sua frente, ele era tão simples, tão natural, que ficava imovel, sem esboçar um nada com a cara, sem acusar um nada com o corpo. Se o drible de Garrincha era o mesmo eu não sei dizer, mas era imarcável porque estava no meio do mato caçando. Poderia ficar horas parado na ponta esperando o seu rival precipitar para acabar com ele. E acabava do jeito que lhe fora ensinado: insinuando um lado, indo para o outro.
No entanto, o que esses monumentos têm a dizer sobre Lamine Yamal é que: ele dribla. Não como qualquer um automatizado, mas como quem deseja e não controla, em uma pulsão tão forte que relembra toda questão que faz o futebol ser essa coisa autônoma que é. Para Lamine ainda cabe a questão que provavelmente ele joga bola como faz uma série de coisas, ele ainda joga bola como se vive, como anda na rua. Ainda não foi aniquilado pelo produto e isso se faz presente no seu drible. Drible tão simples, corpo tão corpo, ainda.
Analisa-se isso ao ver como funciona a sua execução, busco uma anatomia. Yamal ao driblar não responde a estímulos drogados do futebol atual. A busca pela “dinâmica” que falei anteriormente, é na verdade, uma busca pela velocidade da maneira em que se joga. Por isso o futebol é tão sóbrio e destituído de personalidade. Se cumpre para ser rápido, e cumprindo para ser rápido, se ganha, e ganhando, se acumula mais dinheiro. Como completo oposto dessa filosofia, Yamal aparece como um “anjo que nasce”, onde, graças a sua vocação, derrama um futebol que não presenciamos há um bom tempo. Um futebol caseiro e familiar. Um futebol que não precisa de verborragias e chatices táticas para estar lá. Assim, sempre sendo o que foi o futebol.
Quando o vejo com a bola, sempre penso não existir um corpo externo (bola) que está sendo tateado por ele, apenas Yamal correndo e seu corpo acontecendo no movimento puro da corrida. Isso por si só já valeria como uma explicação. Mas vou além. Acho que Yamal é tudo que o futebol é no fim das contas: guerra e violência, corpo e espetáculo. Se voltamos ao Garrincha, uma coisa é clara, Garrincha existe no futebol como um estado de natureza. Um simples estado onde o cérebro nos faz mudar de opinião catorze vezes em três décimos de segundo. E onde Garrincha está sendo tentado ao ataque, a guerra. Yamal é a mesmíssima coisa, e sua violência é de performance, como a violência de boxeadores.
Eu pouco sei da sua juventude – ainda está nela. Mas ele possui uma coisa diferente dos jogadores e dos dribladores em si, ele acaba com o adversário. Não ultrapassa. Acaba, como se lhe enfiasse a adaga. Em um jeito furtivo, nada cínico, frontal. É isso que me anima. A dureza e exame com que dribla fazendo os adversários catarem cavaco em campo, é uma loucura, é como se se tratasse de um menino que domina o corpo dos outros. Por isso, boxe.
Na arte de dar e não receber, um dos fundamentos principais é o exame do que o oponente quer fazer. Para tal exame, como coloco, um Garrincha da vida caçou pacas, e virou um serzinho pronto para identificar a mínima falta de destreza humana em esconder o que quer. Principalmente em se tratando de futebol – onde se rouba a bola do outro; onde tê-la valida o outro naturalmente estar em superioridade. No boxe importa o sangue. Mas até chegar lá, é preciso que seu oponente não desconfie, e que você não vacile. Yamal é um boxeador ao jogar bola, diria até que um bom peso galo de mão pesada, pois é isso. Quando está jogando sempre procura estar na frontal do adversário, sufocando-o mais que o jogo, como um ringue, e pelo fato de ainda controlar um corpo que não o dele, aproveita certas artimanhas de boxeur para destruir a face do oponente. Desta forma, é que Yamal é mau, e como se estivesse caçando, faz o adversário tentar alguma coisa antes dele. Em uma paciência terrível, ele caminha, e vai parando, até parar por completo, em uma tamanha sacanagem, exigindo do fraco adversário desprotegido que ele o ataque. E assim, para. Como um molequinho pronto para quebrar uma janela. O oponente para junto, e não sabe como sair dali sem morrer. Yamal não faz a mínima expressão com a cara, olha fixamente, como se nada estivesse acontecendo – um predador. O redor? Não existe. Apenas ele no 1×1. E vendo, naquele seu olhar sereno, pode sentir seu adversário das pontas dos pés aos fios de cabelo, e sabe que no vacilo, ele acaba com ele. Seu reflexo é como o de uma esquiva, e no tensionar de um músculo ele vai partir. O adversário, nessa situação, forçado a atacar para defender, premedita, abrindo a guarda para definir um bom ataque. Toma o drible. O soco que Yamal faz pela milésima vez. O adversário vai à lona. E seu jeito de ficar sobre os dois pés, fixo, corpo arqueado, faz o seu clássico drible ser um gesto sujo, cheio de malícia, que recria Mané na sua tipica postura de um Muhammad Ali mulato, admirando um Sonny Liston adormecido. Arte de boxe fatal que faz Garrincha gargalhar.