Naquela tarde de Futebol

Foto: Federação Paranaense de Futebol

Tentei sentar no cimento para ver o jogo, mas seria impossível, com todo mundo em pé.

Lá e cá, como dizem que é intenso. Intensidade para mim é antes emocional do que física. Qual o estágio emocional deste jogo? Poderia ser um despretensioso meio de tabela num pontos corridos qualquer. Mas era fácil saber que não. O conceito de decisão de campeonato foi didaticamente explicado quando o torcedor, dois metros de altura e de largura, explodiu no chão o pobre copo de cerveja ao orientar à sua equipe a direção: “pra frente, caralho!”

Faltava um gol para os pênaltis, onde ninguém quer decidir. Do profissional, que dança no TikTok e ri, igual Irene ri (da minha cara, só se for!), ao amador, que sai do campo e bebe cerveja, caipirinha e come costela junto aos oponentes e às torcidas, todos querem fugir da sombria responsabilidade do tiros curtos. Mas quando você vê seu povo agonizando no concreto, consternado ao ver a vantagem conquistada no campo inimigo ser remontada na sua frente, marca da cal é salvação.

O relógio corria. Relógio de fato, empunhado pelo árbitro, pois o jogo não está na tevê. Até está no YouTube, mas não se pode saber. Corria o tempo na forma analógica.

Quando contamos segundo por segundo, somos sabotados pela ilusão de controle do tempo. Agora, quando observamo-los correrem pela volta no ponteiro, enxergamos uma rotação completa, onde cabe o mundo. É hora de arriscar. Triangula, mas se não der, joga pra área e vê no que dá ou não dá. Tanta vida possível, mesmo.

Lembra quando você foi pedir para namorar o teu primeiro amor? O ato durou tempo similar ao de um cruzamento para a área. E uma vida foi mudada eternamente, para bem ou para mal.

A torcida foi junto. Só vi um escanteio. Os visitantes, à frente por 2-0 e com os 2-1 agregados sagrando-se campeões, contestavam: já deu o tempo! Não deixa bater! Me lembro que até o juiz ameaçou erguer o braço, mas desistiu. Vai ter corner. Último do último lance. Até o presidente do clube na área, igual se diz. Contagem regressiva. Dá para ouvir os corações batendo. Botou lá na cozinha. A bola foi forte demais, passando e muito da boca do gol. Mas alguma cabeça lá no alto, a achou. Testada para o alto. A redonda viaja novamente. Dá uma volta ao mundo em segundos e depois cai, com endereço do gol. O goleiro se estica igual a um boneco biruta e cai dentro do gol sem alcançar nada. Dá no travessão. E cai no pé de um solitário, que, dentro da pequena área, só empurra pra dentro. É gol. Festa. Delírio. Torrente de cerveja. Gente ajoelhada. Aranhas penduradas nos alambrados. Vai acabar a vida. Mas foi só o empate agregado.

Quem sente o futebol como se fosse um órgão do próprio corpo já profetizava, e com certeza inabalável: o time que marca no último lance, estando em casa, com esta torcida endoidecida, dos bêbados chorosos às crianças de família, só pode ganhar nos penais. 

Quem dera fosse assim simples. Pode acontecer de perdemos, por que não? Não foi o que todos aprendemos, a distinguir nosso prazer de nossa consagração? A vida nunca se esconde tão simples. Um prazer pode nos conectar ou nos afastar da verdadeira felicidade.

Tá bom. Mas é fato: éramos favoritos.

Favoritismo é um dos conceitos mais flácidos do futebol. Vende, e muito. Mas, na prática, não vale nada. Quem é favorito quando vai bater o escanteio deixa de sê-lo quando toma o contra-ataque. Lembra que eu falei de intensidade emocional? Cada minuto, o favorito é outro. Favorito por muito, por pouco, favorito para golear ou para segurar, há muitos tipos de favoritismo, a gente é que simplifica em dois times e um binarismo: ganhar ou perder.

Deixando a elegância de lado, estava mijando nas calças. Mas não tem banheiro. Uns malucos faziam nos postes mesmo, um instinto territorial canino inconsciente. Seria bom descer para a área externa e dar uma circulada, mas não há como sair. Tentei dar uns pulinhos para disfarçar, mas era caso sério.

Gosto de frequentar este campo pois, além de pertencer ao meu time preferido da querida Suburbana, tem um hipermercado logo na frente. Para quem não consegue desapegar da imagem de torcedor borracho, fica favorável sorver umas latinhas ou uma garrafa de vinho antes de entrar, para não depender dos insumos hiperinflacionados dos arredores e dependências.

Consegui sair do tumulto. Falei para o guarda da entrada que só queria soltar uma água. Ele, que já não estava nem aí mais, deixou sair e entrar de volta no estádio. Corri um quarteirão para dentro do bairro, desenhei com jatos d’água o muro de alguma família e voltei para o palco da peleja. Já estavam batendo o terceiro ou quarto pênalti da série inicial.

Se tem um jeito de demonstrar respeito ao adversário num mata-mata é treinar bem os pênaltis. Competência ou loteria?, outra pergunta epidêmica na crônica. E pode ver que toda decisão é praticamente igual: tem os batedores conscientes, tem os que vão mal e levam sorte, tem os goleiros que acertam canto e os que nem saem na foto. E é sempre um pouco de cada. 

Aqui, por sorte ou eficiência, todas entravam. 5 a 5, e a lógica continuava nas alternadas. 6 a 6. 7 a 7.

Sempre o outro batia primeiro, sob vaias e incentivos ao nosso quíper, André. Mas André não conseguia defender, deixando nossos batedores como atlas a cada cobrança.

8 a 8. Mas há um detalhe: o goleiro deles acertava todos os cantos. O nosso nem via a cor da bola. Uma hora vai dar cagada.

Nona cobrança do time deles. O banco do nosso time sinalizava para André: canto esquerdo! Canto esquerdo!

Bastaria um pouco de malícia para identificar a armadilha. O batedor teria que ir de fato no canto esquerdo, pois era óbvio que André iria em tudo menos lá.

Correu para a bola o jogador de vermelho. Ignorando a intuição e a própria experiência de alguém que está na decisão do campeonato pelo terceiro ano seguido, ele bateu no canto direito. Pela primeira vez, André saiu na foto. E saiu com a bola debaixo do braço.

Pela primeira vez, estávamos em vantagem. Uma cobrança para a glória. Quem bate? Já foi quase todo mundo da linha. Vejo um goleiro andando para a área. É André. O goleiro, que teve uma atuação discreta nos 90 minutos e nas oito primeiras cobranças, de repente pode se tornar um dos maiores ídolos da agremiação. Esse futebol é foda.

André lembrou: canto esquerdo. Mas como ele estava do outro lado, o canto esquerdo era outro. O goleirão adversário, que acertava todos os cantos, também lembrou: o canto esquerdo. Os dois foram nos próprios cantos esquerdos. E dessa vez, então, foi o famoso bola para o lado, goleiro para o outro.

Festa no Bortolo Gava. Acabou a agonia. Campeões, mais uma vez.

Operário Pilarzinho S.C. – Campeão da Suburbana de Curitiba em 2024. Obrigado por tanto, Tricolor do Norte.

GOLS | Pilarzinho 1 (9) x (8) 2 Novo Mundo – SUBURBANA SÉRIE A ADULTO | FINAL – VOLTA

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