Desde 2023, o futebol brasileiro tem acompanhado uma série de episódios que estão levando à inevitável queda de Gabriel Barbosa, o Gabigol, do Flamengo. Clube onde atua desde 2019, fez história, tendo sido, sobretudo, o herói de duas Copas Libertadores. Talvez não se trate exatamente da desconstrução de uma idolatria, mas do fim amargo e doloroso de um relacionamento; mas, afinal, a idolatria de uma torcida para com o atleta não é relacionamento? O que venho propor é uma reflexão sobre as muitas faces desse tipo de relacionamento a partir da história Gabigol e Flamengo.
O que são ídolos?
A palavra surge na Grécia antiga. o Eidolon (εἴδωλον) palavra que remetia a “Imagem”, “forma”, deriva do Eidos (εἶδος) que quer dizer “aspecto”, “figura”. de uma forma geral, o Eidolon era uma forma de representar através da imagem os ídolos daquele povo, nesse caso, os deuses e heróis da mitologia grega. Essas figuras normalmente eram representações de aspectos do ser humano: a beleza, a força, a coragem, a inteligência, a sedução, etc., ou eram soberanos de algum aspecto terreno, como o mar, o céu, o fogo, o vento, as árvores, etc. Assim, o homem coloca a si próprio como o centro do universo e confere sentido à existência. Nessa e em outras culturas, surgiam essas figuras divinas (ou não) que refletiam ideais humanos e que eram auto representações de todas as suas qualidades sendo postas no centro de tudo. A palavra com o tempo deixou de ser associada somente a essa faceta religiosa e ganhou outras conotações. Mas fato é que o ídolo, seja ele um deus, um herói ou uma figura pública, é uma forma de representar os ideais humanos.
Ídolos do futebol
No futebol, os ídolos normalmente são figuras muito vencedoras e/ou muito conectadas a um clube ou ao esporte em geral. Um treinador ou um presidente podem ser ídolos. Pep Guardiola, por exemplo, é um ídolo global do futebol atual; Florentino Perez é um ídolo indiscutível e uma das figuras mais importantes da história do Real Madrid. Entretanto, os maiores ídolos do futebol e do esporte são os atletas. O atleta é um produto, um ideal, e uma figura de veneração: “Os atletas, como os heróis dos mitos antigos, são figuras que nos inspiram a acreditar que o impossível pode ser alcançado, e que a superação é o caminho para a glória.” (Campbell, 1949).
O atleta também é uma representação da excepcionalidade humana e uma forma de enfrentar os limites do mundo material. O atleta é o auge do corpo e a forma mais direta de enfrentar seus limites. É a partir do uso do seu corpo dentro de um contexto específico de cada esporte – mas sempre partindo do princípio de prepará-lo pra atender demandas competitivas – que o atleta surge enquanto representante excepcional de algum ideal ou característica humana. Correr, defender, lutar, pensar, ter coragem, agir de forma inteligente, movimentar-se genialmente com o corpo ou com o corpo somado a algum objeto (como no caso do futebol e demais esportes com bola), a partir disso, o atleta é construído enquanto ídolo e tem seu corpo, sua imagem mercantilizada e jogada ao mercado como produto a ser consumido pela massa.
Não somente isso, o corpo do atleta também se torna um objeto de propaganda dos mais variados tipos de patrocinadores, inclusive de produtos que não convém ao esporte, como cigarros, bebidas alcoólicas e refrigerantes. O esporte é uma grande força da indústria cultural e do mercado, e o futebol é o maior esporte do mundo. E o atleta de futebol é o maior produto desse braço da indústria dentro do esporte, tornando-se uma vitrine de ideologia e excepcionalidades humanas. Por trás da relação ídolo/massa já existe uma relação produto/consumidor mediada por quem controla os meios que os projetam e vendem não somente o seu trabalho mas também sua imagem e seu estilo de vida. Interessa ao mercado que se formem os ídolos futebolísticos e a partir disso a indústria do futebol, que é controlada pelos investidores e pela mídia, controlam seus corpos e seu estilo de vida para os vender como produtos.
Isso não exclui o caráter competitivo do esporte e as exigências físicas, cognitivas, e emocionais do esporte, mas é preciso compreender como tudo isso é usado principalmente como meio de acúmulo de capital acima de qualquer coisa – inclusive da saúde dos ativos (o número de jogos e de lesões só aumentam) e das relações humanas que se desenvolvem no esporte. Não é que essas excepcionalidades e essas relações não existam de fato, elas existem, mas são profundamente submetidas a uma lógica mercadológica e são limitadas por essa lógica, que as transformam em produtos.
Pense em Cristiano Ronaldo e Messi, os grandes jogadores do século 21. No que tange os aspectos competitivos do esporte, ninguém fez mais que eles no futebol desde que os 2 entraram em atividade. A grande questão é que por trás dessa realidade eles servem como figuras que representam não só valores e ideais humanos, mas também do mercado. Dois garotos pobres que enfrentaram grandes problemas na adolescência como a doença que impedia Messi de crescer e o falecimento do pai do Cristiano; dois talentos que superaram essas e outras adversidades, trabalharam duro, e conseguiram chegar ao topo; dois profissionais sérios, focados, que não consomem álcool ou outros produtos prejudiciais à sua performance; que levam uma vida em família. Dentro do mercado futebol, tudo da vida deles se encaixa perfeitamente na teoria meritocrática liberal, de que o sucesso ou falta dele acontece a partir dos esforços e do empenho do indivíduo por si só, ignorando uma série de fatores, além de perpetuar a submissão ao trabalho e o produtivismo como fatores chave da vida do homem. Messi e Cristiano também mudaram para sempre – e em certos aspectos, pra pior – a forma como o futebol é visto.
Numa era onde o mundo é totalmente conectado e tudo é registrado, quantificado e espetacularizado, os feitos numéricos dos dois em gols, assistências e títulos, criaram uma tendência preocupante do público de futebol em ver tudo a partir da ótica quantitativa. De uma forma bastante reducionista, a principal abordagem para observar as qualidades de Messi e principalmente de Cristiano Ronaldo parte sempre em tratar os números dos dois como fim e não como meio da análise. E isso não parou nos dois, afetou todas as rodas de conversa sobre futebol. O jogador é quase um robô, uma máquina de desempenho, e não um indivíduo. Um produto que é avaliado pelos números brutos que produz, pela frequência dos mesmos e somente por isso. Ignorando a parte qualitativa, as peculiaridades, os valores intrínsecos e, por consequência, prejudicando o pensamento crítico e a análise de futebol.
Nada disso é uma tentativa de diminuir o talento e a capacidade de superar adversidades dentro e fora de campo dessas duas figuras históricas, mas um apontamento sobre como tudo isso é instrumentalizado e utilizado como meio de perpetuação de narrativas e de ideologia pela classe dominante. É uma individualização de tudo. Mostrando como esses dois saíram da pobreza para o topo do mundo, os fatores sociais que levaram eles a nascerem em condições prejudiciais ficam em segundo plano e o que acontece é uma ênfase no fato deles terem conseguido, através do futebol e do esforço, a ascensão social, ainda que eles sejam exceções à regra. não porque nem todos gostariam de ser “profissionais”, mas porque não é possível que todos consiga. Com certeza existem mais casos de garotos como Messi e Cristiano que foram engolidos e descartados pelo mundo profissional do que de sucessos dentro dele. Eles e todos os seus pares são uma minoria, mas isso não é dito porque não interessa a ideologia dominante.
Deuses astronautas?
Não somente esses ídolos são tratados como seres excepcionais. Às vezes questionamos até onde eles são humanos e construímos imagens à sua semelhança para serem veneradas. Como os heróis dos mitos antigos, eles se tornam figuras de ampla adoração por tudo que executam dentro de campo e por tudo o que a partir disso a sua imagem passa a representar, como já dito anteriormente. Esse culto se torna produto, mas, como tudo na lógica capitalista, a intenção nunca é a manutenção dos sentimentos e das memórias e sim o uso pra fins lucrativos. A partir do momento em que se enxerga que o produto não gera ou corre risco de não gerar mais um retorno financeiro absoluto, ele pode ser descartado.
Gabigol, por exemplo, canaliza tudo que o Flamenguista idealiza: ele é ousado, um tanto debochado, decisivo, altruísta, confiante, sincero; mas também carrega uma certa malandragem, uma personalidade forte, o tipo de sujeito que tende a não abaixar a cabeça. Por mais que Gabigol não seja o melhor jogador a jogar no Flamengo no século, e creio que a maioria concorda que Adriano, Ronaldinho, Pet, Arrascaeta, Ribeiro, entre outros, são mais talentosos e mais influentes dentro de uma partida de futebol que Gabigol, nenhum deles canaliza tão bem todos os sentimentos que pensamos representar ou que idealizamos no Flamengo. Gabigol, em muitos aspectos, serviu como uma espécie de materialização do Flamengo em campo. uma figura que remetia ao Flamengo uma imagem do próprio em carne e osso: um Eidolon vivo!! Por isso se tornou, sem dúvidas, o grande ídolo do século 21.
Gabigol vs Gabriel Barbosa
Evidentemente Gabriel não é verdadeiramente uma figura mítica ou um ser sobrenatural do rubro-negrismo. Gabriel é um ser humano, que por suas características obteve uma grande identificação com o clube. Como todo ser humano, mais do que ter um lado bom e um lado ruim, Gabriel é complexo, comete inúmeros erros, muitos desses erros frutos de características da sua personalidade que em outros contextos são exaltadas. Como a mídia do espetáculo trata as características do Gabriel e de outros ídolos do esporte depende de como a maré está e no que vai gerar mais repercussão a partir disso. E como todo produto, os ídolos são finitos, e uma hora estarão “em baixa” pela lógica do ciclo de consumo. Uma hora a fase não vai ser boa, a idade vai chegar, as lesões acontecem, e nesse momento toda a glorificação e exaltação dos bons momentos bons vai se transformar em um descarte dos seus dotes atléticos pelo topo do mercado em que ele atua, e em um parasitismo total da sua imagem com sensacionalismo e tudo que envolve a mídia do espetáculo, não importando os efeitos disso sobre o cidadão por trás do ídolo. Para que Gabigol seja completamente explorado enquanto produto, é necessário, em partes, matar Gabriel.
Acontece: quando um atleta tem problemas físicos recorrentes o mercado central tende a o descartar; mas isso não ocorre também pelo calendário completamente congestionado ao redor do mundo e cuja única finalidade é aumentar a receita do futebol através do número de competições que só cresce a cada ano? isso é um dos exemplos que demonstra que o mercado futebol tem como principal finalidade o lucro massivo em detrimento dos atletas e o seu descarte no momento em que eles não forem mais capazes de contribuir para o mesmo. No caso dos ídolos, isso constitui na sua construção, no seu uso para o lucro e, por fim, seu descarte, sendo substituídos por novos ídolos e mantendo assim o fluxo contínuo do capital.
A manutenção e a recuperação do Gabriel não é um fator chave pois no entendimento de Tite e de pessoas dentro do Flamengo outros jogadores podem suprir seu lugar dentro do time enquanto ídolos e enquanto atletas. Gabigol se tornou um produto descartável, não pelos seus erros, que não são novidades e que se não fosse essa lógica de transformar pessoas em figuras míticas pra serem veneradas e consumidas, não seriam tratados como crimes universais, mas pela sua “pouca contribuição” (que é totalmente individualizada no atleta) ao longo de 2023 e 2024 e pelo desgaste de relacionamento entre ele, a diretoria, o atual treinador, e parte da torcida. Gabriel é um atleta de 28 anos, que ainda pode ser recuperado. Em partes, vive mau momento pela sua utilização sem condições físicas pelo clube em 2023. Mas não existe interesse nessa recuperação porque a prioridade jamais será a manutenção dessa relação mas os frutos que ela dá. Assim surge Pedro como um novo ídolo e assumindo o papel de artilheiro e referência deixado por Gabigol.
“O espetáculo é o capital a um tal grau de acumulação que se torna imagem” (Debord, 1967)
Os ídolos são imagens nas quais o capital investe e explora visando retorno. A conexão criada entre nós e os ídolos são mercantilizadas e submetidas a lógica capitalista, incluindo no ciclo de consumo. Eles são construídos, alçados a papéis de heróis e representantes máximos de ideais e valores, tem sua imagem e sua capacidade de trabalho exploradas e, no fim, quando esses dotes são enfraquecidos, eles são descartados. Em nenhum momento se discute a influência negativa dos trabalhos recentes nessa queda do Gabi, em nenhum momento as lesões – às vezes agravadas pela irresponsabilidade do clube no seu uso – entram em pauta; só se discute como Gabriel com seus erros e sua má fase futebolística “se sabotou” e destruiu sua relação com o Flamengo, numa ótica moralista e ridícula, que não consegue compreender o fato de que estamos falando de um homem. Esse moralismo que cria narrativas de ascensão e queda também serve a ideologia dominante.
Gabigol não é o primeiro e não será o último a ser pego por essa falsa guarda da moral. Essas figuras são construídas como representações da excepcionalidade humana, às vezes criando padrões inatingíveis, irreais, e quando falham em atingir esses padrões eles são consumidos e destruídos. E tem essas falhas também espetacularizadas, mas dessa vez como um show de punição pública onde todos nós somos juiz e júri. No caso do futebol, sejam oscilações em campo ou na vida fora dele, e Gabigol há quase dois anos vive ambas as situações ,por isso, sem chance de recuperação, será destruído e substituído literal e simbolicamente.
Concluindo, o ídolo não é somente fruto de uma relação altruísta entre ele e o torcedor. Portanto, sua queda dificilmente poderá ser individualizada nele próprio, pelo contrário, ela é uma tendência e um sintoma do nosso atual modo de vida e seus ciclos. inclusive, as histórias de ascensão e queda fazem parte do repertório de espetáculo, e essa queda pode estar relacionada a dinâmicas que o próprio mundo impõe no sujeito em questão. Essas figuras só são destruídas porque em algum momento são construídas como extra-terrestres e representantes idealistas de habilidades humanas, sendo colocados também sobre pressão para não cometer erros. Não os vemos como homens, mas como heróis abstratos que nunca se traduzem na realidade e quando essa nos confronta, a tendência é a busca por um novo mito, que é também a nova galinha de ovos de ouro do mercado, e o ciclo se repete. Gabigol nos dará adeus em dezembro, mas não vai ser o último homem tratado como máquina de produção e responsável por carregar em si o peso dos desejos e ideais de milhões de pessoas, nesse caso, Flamenguistas.
Ficam para sempre, as memórias dos feitos de Gabriel e as emoções causadas, que foram genuínas. Eu era um dos adolescentes fazendo enlouquecidamente o muque na frente de uma televisão naquela final em 2019 enquanto as lágrimas escorriam. Gabigol foi um homem de feitos extraordinários vestindo vermelho e preto, é assim que quero lembrar.