“Nível”: a linguagem constrói a realidade

Alan Patrick e Dominik Szoboszlai

As Datas Fifa são momentos especiais no ano futebolístico brasileiro. Não porque nos unimos para apoiar nosso país, ou porque a Seleção recarrega nossas baterias com bom futebol e vitórias. Muito pelo contrário. E por isso esses momentos adquirem tal caráter. A Data Fifa tem o poder de evocar as profundas discussões sobre a crise do futebol brasileiro. Cada um levanta sua tese, e as mesas redondas e redes socias se tornam a Ágora ateniense. Todos debatendo pelo futuro da nação.

Assistindo a Itália e França, senti vindo de dentro o chamado: “Opine lá, Felipe. É tempo de deliberação!” Então publiquei um tweet.

Tudo isso tem como princípio a ideia de nível. Afinal, a forma como um jogador se enxerga, o que influencia sua confiança, é intimamente conectada à forma como a mídia, o público e o treinador o avaliam. Hoje, a compreensão de um jogador na opinião pública é quase que indissociável ao conceito de nível. A partir daí, começamos nossa problematização.

A linguagem constrói a realidade. Quando usamos termos como “nível”, criamos a percepção de que o futebol europeu e o brasileiro pertencem a universos completamente diferentes. E isso gera grandes distorções, como a ideia de que um jogador considerado “fraco” no contexto europeu automaticamente se torna excelente para o nível brasileiro. Usarei Cristante, meio-campista da Roma, como exemplo. Na Roma, ele é “ruim”. E se ele fosse para o Atlético Mineiro? Pela lógica vigente, ele seria visto como acima dos demais, mas isso não faz sentido. Cristante é “ruim”, independentemente do contexto.

Antes de continuar, acho que um parêntesis é necessário. É lógico que os melhores jogadores do mundo estão nos time de primeira prateleira da Europa. Não é isso que está em questionamento. O ponto é que não podemos tratar essa força de atrativo financeiro e esportivo, a medida que foi penetrando o imaginário brasileiro, como um imã invencível. Enfim, sigamos.

A questão central é a forma como usamos a linguagem. Quando descrevemos jogadores como sendo de um “nível”, perdemos a capacidade de avaliá-los individualmente. O jogador é “bom ou ruim” em si, e seu desempenho é afetado pelo contexto. Ele pode ser suficiente ou insuficiente para determinado time, mas isso não muda sua essência como atleta. Se Cristante fosse para o Cuiabá, talvez fosse útil. Se fosse para o Atlético Paranaense, poderia dar pro gasto. Mas ele permaneceria sendo um jogador “ruim”. Alan Patrick, por outro lado, é, inegavelmente, um ótimo jogador. Porém, no Bayern de Munique, ele talvez não fosse bom o suficiente, vide que Musiala joga por ali, enquanto no Sevilla, que carece de um camisa 10, poderia ser exatamente o que o time precisa. Nunca saberemos.

Isso tratando apenas de exemplos abstratos. Na realidade concreta, vimos o que aconteceu e vem acontecendo com Willian, Douglas Costa, Andreas Pereira, Diego Costa, Juanfran, entre outros que vieram brincar de Brasil. Não estou aqui para avaliar caso a caso, mas trazer uma reflexão geral. O que o jogador proporciona ao time e deixa de proporcionar? O que faz de bem e de mal? Com qual frequência? Tudo isso pertence ao jogador, sendo afetado em pequena ou grande escala, mas não alterado pelo contexto.

E o que é contexto? Para além de competitividade e qualidade dos adversários, parâmetro geralmente utilizado e que embasa a ideia de nível, há camadas subjetivas que influenciam muito mais no desempenho do jogador. Modelo de jogo do treinador, gosto pessoal do treinador, respaldo da diretoria, saúde mental e questões pessoais, convivência no novo país, momento da transferência. Tudo isso interfere muito mais que a “intensidade” do campeonato.

Ponderações feitas, entro no que acredito que seja o principal problema dessa concepção. Ao tratar jogadores como pertencentes a “níveis”, criamos um determinismo geográfico. Um jovem europeu de destaque será revelado na Europa. Ou seja, o local de seu nascimento o coloca diretamente no “nível mais alto”. Enquanto isso, o jovem brasileiro precisa se destacar nacionalmente, e então se provar internacionalmente. Cada um no seu tempo, que por vezes a janela europeia não espera. Perceba que, seguindo essa lógica, a Europa irá revelar jogadores melhores que o Brasil por uma questão meramente geográfica.

Considere um garoto de La Masia, a base do Barcelona. Quando estreia no profissional, ele já se vê como um dos melhores, pois está no topo do futebol mundial, e o mundo inteiro o trata dessa forma. Isso não só influencia diretamente na autoconfiança desses jogadores, como permite que sejam utilizados na seleção espanhola sem cautela alguma. Mas o que realmente diferencia Pau Cubarsi de Vitor Reis, por exemplo? O excepcional catalão é desenvolvido no Barcelona, e o extra-classe brasileiro no Palmeiras.

Como o garoto do Ninho, o menino da Vila e o moleque de Xerém se enxergam? Fora a desconfiança em solo nacional, que é uma outra questão, chegar ao profissional não basta. É preciso “vingar” lá fora. E se não vinga? Não tem nível de seleção, já que não tem nível europeu. Assim, se ignora as mil e uma variáveis que influenciam na adaptação do brasileiro no exterior. Vitor Roque, por exemplo, praticamente não teve chances no Barcelona, e sabemos dos problemas que ocorreram nos bastidores.

Por mais que se intensifiquem as transferências transatlânticas precoces, essa lógica perde sentido a cada dia. Com o poder financeiro que os clubes brasileiros antigiram, está cada vez mais comum o “bate e volta”. Luiz Henrique, que passou 18 meses na Europa, é um ótimo exemplo disso. Após um bom início, precisou lidar com uma grave lesão. Nesse meio tempo, Abde Ezzalzouli foi contratado como reposição. O brasileiro se recuperou, passou poucos meses no banco e logo foi contratado pelo Botafogo. Não tem nível?

Nesse contexto, a seleção brasileira deve funcionar como a guardiã da confiança do brasileiro distinto. Estevão, hoje, é uma unânimidade no país, mas chegará a um Chelsea com 50 jogadores no elenco e um treinador extremamente questionável na forma como utiliza suas peças. Aos 18 anos, Estevão terá de se provar mais uma vez, como qualquer outro no time. Vale lembrar que os últimos jovens brasileiros que foram ao Chelsea estão hoje no Strasbourg da França, no Al Nassr da Árabia Saudita e no sub-21 dos blues.

Se a Seleção Brasileira der a Estêvão minutos regulares e relevância, independentemente de sua utilização ou não no clube inglês, isso mudará completamente a forma como o craque do Palmeiras se enxerga. É preciso reverter a lógica e alçar a seleção brasileira ao posto de maior importância mudando sua relação com os jogadores. Pouco me interessa se o Estevão tem nível europeu, ele é bom o suficiente para a Seleção Brasileira.

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