Era do Rádio
Naquele tempo, não se assista a tanto futebol. Eram raros os jogos ao vivo. Ao angustiante vício de torcer por um time restava exercitar o músculo da imaginação estimulado pelo rádio: “Abrem-se as cortinas, começa o espetáculo…”, introduzia Fiori Gigliotti. E o Pacaembu se fazia teatro… “Gol do time do povo…”, na voz de Osmar Santos. Ecoavam na mente imagens da massa em joelhos, cruzando o gramado do Morumbi. José Silvério, o gol mais forte, mais longo, mais largo, mais lindo. Aprendi a tirar meus gritos de gol desde lá dos intestinos.
Mais que locutores, Homeros que narravam Odisseias. Pintores radiofônicos. Todo Dicá era Ulysses. À vitória ou à derrota, os restos da batalha na tela de uma guerra civil. O jogo desenhado por detrás da testa, no lobo frontal. Conecta-se ao cerebelo, percorre o sistema nervoso. E o vivente era, assim, de repente — como o coração de Maiakóvski — todo, todo futebol.
Um tipo de Inteligência Artificial nascia aí: juntando emoções, alegrias e desgostos, reunindo fragmentos, consolidando a paixão e a fúria do mundo. Na dor e na delícia de ser torcedor, os primeiros algoritmos surgiam. A Inteligência futebolística é síntese de muitas inteligências: milhões de bites trazidos pelo radinho de pilha.
O desafio era colocar a bola e os jogadores nas proximidades das linhas imaginárias da obscura cancha cerebral: as marcas da cal desenhadas no inefável. Ritmo e dança, cuja adrenalina conduzia. Ainda não se falava em 1o., 2o. ou 3o. terços do gramado. A noção espacial no éter da mais alta atmosfera do espírito onde Sócrates e Palhinha faziam tabelinhas.
E, assim, os exuberantes lançamentos de Airton Lira tornavam-se ainda mais extraordinários do que o extraordinário que de fato eram. As defesas de circo de Valdir Peres, via-se depois, cabiam no trapézio e no picadeiro. O rugido de um Leão que vazava nos microfones dos repórteres de campo, comia a alma de seus zagueiros.
A antena da imaginação captava tudo e definia a técnica e a tática a partir do círculo central projetado na imaginação. Escalava-se o volante na “cabeça de área”, o quarto-zagueiro adiantado, o central na sobra; o ponta-de-lança, 8, entre o ponta e o centroavante, atacante de bico de área. Jogadores eram números costurados em grosseiras camisas grossas: “do um ao onze”, raciocinava Oswaldo Brandão.
Ao final do jogo, o Show de Rádio: “de jogada em jogada, Sangirard está na parada. “Ô negaaa!!! Oiiii. Traz mais uma ampola que meu Coringão, o bão, vai jogar”, pedia Joca. “Saravá, São Jorge”. “Nessa torcida, todo mundo agita: passa uma Marola todo mundo Pitta”: era o Santos dos meninos da Vila, pós Pelé. “W/M”; linhas altas? Ninguém falava nisso. Torcia-se assim-assim sem erudição porque o propósito era apenas a devoção. “Salve o torcedor brasileiro”, cantava o “Show de Rádio”.
Videoteipe e várzea
Era também o tempo do videoteipe. À noite, no domingo, na TV Tupi: “barbaridade, tá gordo”, criticava o Walter Abrão. O tempo que tudo esquece ou consagra fez icônicos os locutores da Cultura: Luiz Noriega, José Góes, Carlos Cicarelli; o “eclético” Orlando Duarte. Esporte é Cultura.
O aparelho Telefunken com seletor de canais “tréqui-tréqui-tréqui”. Um só para toda a casa, numa sala que era quarto também. Dormia-se cedo. Antes, a mãe queria ver o Fantástico e o pai não se importava. O menino lutava sozinho no seu desejo: como era raro e difícil assistir a uma partida de futebol.
Ir ao estádio, de nunca em nunca. Jogava-se muito, mas falava-se pouco sobre o mister. Era natural. Não havia escolinhas, chuteiras da Nike, camisas de todos os times do planeta. Por barato e inclusivo, bater bola era tudo. Os campos brotavam do chão: a relação com o futebol era outra.
O “contra”: o time da rua de cima contra o time da rua de baixo… Bola-de-meia, pedra de bola, bola de plástico, dente-de-leite, bola de borracha, uma bexiga, bola de “capotão”. Bola que tinha “orelha”: bater de “três dedos”, raspar a “orelha da bola” no gomo de couro (ou courvin?) que rasgava, a costura que se desfazia. Bola oval. No quintal, na rua, na terra, no cimento, no asfalto. Ralar o joelho era um de muitos troféus.
O campinho “beira-córrego”, a surdina na quadra da escola, no fundo da sala de aula. No “matão”, cuja árvore frondosa atrás do gol era chamada “punheteira” – “quem perder fica nos galhos de baixo”. As disputas viscerais: treino é jogo e jogo é vida. O futebol, cachaça que não se conhecia. Jogar descalço, perder “a tampa do dedão”. Esconder da mãe. Era assim: os bailes da vida de então.
Todo bairro tinha sua várzea. Ali, eram “onze contra onze”, com juiz. Uniformes, chamados “jogos de camisa”, fornecido pelas fábricas da redondeza. Um “Desafio ao Galo” assistido ali, à beira do “gramado de terrão”. Pancadaria possível a qualquer tempo. A chuva, o barro. Sob um toró danado, grita um cristão: “São Pedro filho da p…”. Nada escapa à memória. Ainda não havia para mim um tal “Dalai-Lama”: a mais perfeita tradução para o nome do time de várzea que não formei… Nem o mundo, nem o Tibete existiam. A vida era os limites da vila. E da bola.
Novos tempos
Todo tempo tem seu tempo; tempo que vai, tempo que vem. “O Teeempo passa”, dizia Fiori. Hoje, entende-se muito de tática. Contrapõe-se Fernando Diniz a Pep Guardiola. Discute-se as sutilezas entre Ancelotti e Klopp. Internacionalistas, a garotada escala times com jogadores de todos os continentes, agrupados na Europa multicultural. Assiste-se ao futebol full time, até durante a aula. Bendito-maldito celular.
Conectados até os ossos, a moçada enxerga concretamente o que a imaginação de antes não supunha: “linha de 5”, “linhas de 4”, “4-1-4-1”; “4-3-1-2”; e, claro, o “4-3-3”. “Losangos”, jogadores que “pisam nas linhas”. Triangulações, novos dribles, novos passes. A geometria dos esquemas nos softwares dos scouts; as lives, as minúcias. A Odisseia de sempre, só que high tech.
Jogadores do passado jogariam hoje? Por suposto que sim. O inverso, mais difícil afirmar. O tempo passado não é melhor nem mais interessante. É apenas aquarela que descolore e descolorirá até se repintar novos Quixotes e seus moinhos de vento. Cada tempo tem seu tempo. Na batida na porta do tempo, a sabedoria ou a melancolia se manifestam.
Antropologia e amigos
Antes de esporte, futebol é antropologia; depois, sociologia. Primeiro, está na cultura, forja nações. Seu arrebatamento é identificação e amor por uma humanidade de lampejos, intermitente. Mais tarde, revela-se organização de grupos sociais; não pela luta de classes, mas por aproximações e distanciamentos de experiências e valores. Novos cortes sociais, as torcidas de futebol superam o conflito interno clássico: burgueses e proletários, uni-vos sob o mesmo ardor.
Pois, torcida é força centrífuga de sentimentos e afinidades eletivas. Usar a camisa de um time traz sentidos e efeitos que vão além da banal escolha do que vestir: consiste em estabelecer e obedecer a códigos de cumplicidades e solidariedade. A camisa de um time de futebol, no outro, faz lembrar o que e quem realmente somos. Uma vez assim trajado, produzo o mesmo efeito.
O futebol faz amigos e afasta familiares. Pode-se discutir Lula e Bolsonaro à mesa de domingo. O caos, a estupidez, a ignorância fazem emergir ressentimentos que corroem afetos. Mas, nessa rinha há ainda alguma esperança, lado a lado, de que um dia a desavença cesse pelo convencimento ou pela capitulação.
No futebol, não há chance disso. Não se recua de uma identidade. Melhor evitar o papo. Sabendo de limites desde sempre estabelecidos, amizades de verdade, o time recolhe-se ao coração como “questão íntima” que relação alguma relação é de contemplar, de questionar. Romper tais Limites é ultrapassar pontos sem retorno.
Amigos que conquistei de graça, pela simples dor e delícia de compartilhar dores e alegrias. Somo o que somos: torcedores do Corinthians. Em relação a outros, caros amigos, evito perdê-los: cada um com sua obsessão. Vibra-se com a derrota do aversário, mas ativar o escárnio, somente pós 48 horas da tragédia. Exijo igual consideração.
Há muita ofensa guardada quando se fala time rival; sem que se admita, outras rivalidades reprimidas assumem a centralidade da desinteligência. Há um Oriente Médio potencial, destrutivo de relações mais sensíveis. Melhor evitar.
“Com o tempo”, pensamos, “isso passará; outras importâncias para além do futebol hão de se impor”. Ilusão doce. O tempo não passa nas reminiscências do menino: se “de tudo fica um pouco”, fica um pouco do teu time, no queixo de teu filho. Fica a perpetuidade de cada jogo épico, de cada Ulysses dos gramados: Rivelinos, Cássios, Ademires; Sócrates, Zicos, Dinamites; Reinaldos, Juaris, Carecas. A sutil elegância de Bobô, e a escancarada fineza de Falcão. Leandros, Fenômenos, Jorges Mendonças… “E acima da canção, a rima. E acima da rima a nota da canção: ‘Pelé” natural sustenido no ar”.
Como o “amor” para Luís de Camões, o futebol “é fogo que arde sem se ver / É ferida que dói e não se sente / É um contentamento descontente/ É dor que desatina sem doer “. Camões. Esse cara era corinthiano.
Outros dirão: “não, é vascaíno”. Poderia ser, é português. Mas, pode ser Flamengo, Galo, Cruzeiro, Vitória, Palmeiras, Internacional, todos os tricolores…Torcedores da Lusa. Amantes do Juventus da Rua Javari: “ódio eterno ao futebol moderno”. Torcedores do Dalai-Lama, a várzea que ficou na impossibilidade do passado. Torcedores de futebol.
Carlos Melo, é cientista político e professor Sênior do Insper.