O óbvio precisa ser dito

Guardiola dando entrevista para o GE sobre Fernando Diniz e o Fluminense

“É escola brasileira o Fluminense. É o futebol brasileiro de muito tempo. Sempre lembro que meu pai me dizia que os brasileiros jogam bem devagar, ao redor da bola todos juntos, passes curtos e de repente arrancam rápido. E parece que a essência é voltar a fazer isso.”

Pep Guardiola ao GE Globo

Após a vitória diante do Urawa Reds, classificando o Manchester City para a final do Mundial de Clubes contra o Fluminense, Pep Guardiola foi perguntado sobre o que sabia sobre o rival tricolor. O catalão foi categórico na resposta: o estilo de Fernando Diniz é o tradicional futebol brasileiro. Essa declaração reacendeu as discussões sobre a identidade do nosso jogo e, diante do que vem sendo exposto nas redes sociais, escrevo pois entendo que o óbvio precisa ser dito.

1) Agora o que Guardiola fala é relevante?

De saída, nunca foi irrelevante. A figura vilanesca não de Pep, mas do futebol que pratica, quando utilizada, é uma clara hipérbole retórica. Jamais foi colocado em questionamento o conhecimento do treinador sobre o jogo. O ponto sempre foi o mesmo de Juanma Lillo, expoente do jogo de posição e hoje primeiro auxiliar do Manchester City, compartilhado em seu texto ao The Athletic, em que fala sobre a homogeneização dos padrões de jogo ao redor do mundo. Algo que vinha sendo dito há anos em solo brasileiro, desde “O Húngaro” a Vanderlei Luxemburgo, mas que finalmente foi levado em consideração, veja bem, não por nós, mas pelos que ignoravam ou desprezavam o debate, quando um espanhol se pronunciou a respeito. A inegável euforia diante dessas declarações não é por enxergá-las como validação do que dizemos, mas por colocar contra a parede os que enxergavam seus autores como referências inquestionáveis. 

“Nós nem percebemos a bagunça que fizemos. Globalizamos uma metodologia que alcançou a Copa do Mundo…Eu me sinto como um pai arrependido. Se existe alguma pessoa de quem eu discordo nesse momento, é o eu de 25 anos atrás. Não confie em ninguém que diga que não se arrepende de nada na vida”.

Juanma Lillo ao The Athletic

Entende-se: a questão nunca foi Pep Guardiola ou o jogo de posição em si, mas a abordagem normativa de quem prega e dissemina o “guardiolismo”, questionando a existência de outras formas de jogar. Em tempo, não misture essa postura com a reação de quem reivindica a identidade brasileira, condenando o “posicionalismo” como um restritor de liberdades (como o próprio Lillo parece concordar). Por mais que haja uma clara preferência estética por parte de muitos, o desejo de voltar a ser é nada mais que uma defesa.

2) Os vários “Brasis”

O problema inicial da tese dos vários Brasis é que ela não é usada para defender a pluralidade do futebol praticado em cada região, descrevendo suas diferenças ponto a ponto e desenvolvendo o argumento, mas para negar o que há em comum e desestruturar nossa formação nacional. Em outras palavras, enfraquecer nossos laços e abrir caminho para o atropelamento pela cultura europeia.

Confunde-se o fato de nossa cultura ser heterogênea e diversa, como qualquer outra (a nossa é ainda mais, por evidências óbvias como o tamanho do país), com ausência de identidade. É dizer que não posso me reconhecer enquanto brasileiro para além do local de nascimento. É dizer que não tenho nada em comum com meu amigo paraense para além da língua falada. 

A busca do DNA do futebol brasileiro abrange nossas diferenças culturais, captura o que há em comum, abstrai esses fatores e propõe o que fomos e o que somos. Negar isso é o que, de fato, mata.

Quando se usa das diferenças na escola gaúcha para a escola carioca, por exemplo, para insinuar que não temos conexões, se apresenta uma incoerência. Falam sobre a tradição defensiva e física, mas o Internacional de Ênio Andrade em 1979 e o Grêmio de Renato Portaluppi em 2017 não corriam por esse caminho. Então não há escola gaúcha? 

É sobre o que se compartilha, as semelhanças. As diferenças sempre estarão presentes, principalmente em especificidades. Mas, num olhar sobre o todo, há tradição. E aqui vale a pena frisar que o conceito de ataque funcional (ataque) trata da forma como se fundamenta a organização ofensiva. Não aborda plataforma tática e muito menos momentos sem a bola. Sendo assim, é inválido apontar a priorização à defesa, como é o caso de Scolari e Muricy, por exemplo, para alegar uma radical diferença a Telê e Flávio Costa.

É verdade, porém, que há diferenças importantes no jogo com bola e que influenciam diretamente na forma com as equipes constroem seus ataques. Recentemente, em entrevista, Renato Gaúcho citou um grande contraste entre ele e Fernando Diniz em termos de saída de bola. Enquanto o treinador do Grêmio preza por tiros de meta longos e prefere “não correr riscos” perto da própria área, sabemos que o tricolor carioca não se preocupa em trocar passes ou driblar até mesmo com o goleiro. Ainda assim, se olharmos para os dois conjuntos no campo de defesa adversário, perceberemos em ambos aquelas mesmas características que víamos em equipes históricas do século passado.

São as diagonais, os falsos pontas, os pontas de lança, as movimentações sem amarras a posições pré-estabelecidas, as escadinhas, as tabelas e tantas outras coisas que marcaram inúmeros times ao longo das décadas. O futebol brasileiro tem, sim, marcas próprias e que aparecem por todo o nosso território nas mais diferentes épocas.

A teoria dos brasis de Darcy Ribeiro, que creio que seja a fonte de inspiração, ou pelo menos deveria, não nega nosso caráter nacional. Na obra “O Povo Brasileiro”, em que o antropólogo expõe toda sua teoria sobre os 5 Brasis, a conclusão é clara:

“Essa massa de mulatos e caboclos, lusitanizados pela língua portuguesa que falavam, pela visão do mundo, foram plasmando a etnia brasileira e promovendo, simultaneamente, sua integração, na forma de um Estado-Nação. Estava já maduro quando recebe grandes contingentes de imigrantes europeus e japoneses, o que possibilitou ir assimilando todos eles na condição de brasileiros genéricos.

(…)

É de assinalar que, apesar de feitos pela fusão de matrizes tão diferenciadas, os brasileiros são, hoje, um dos povos mais homogêneos lingüística e culturalmente e também um dos mais integrados socialmente da Terra.”

Falar em Brasis variados e desconectados num contexto em que se debate a sobreposição por uma cultura estrangeira, como forma de argumentar contra a ausência de identidade nacional, é repetir o processo inicial de descaracterização da miscigenação. É tratar como uma tela em branco. É o que realmente mata o futebol brasileiro.

….

Guardiola olha para o Fluminense em campo e associa com tudo que viu de marcante em seus encontros com brasileiros ao longo da carreira. Tem sua memória convocada. Se lembra de seu pai, de sua infância, da seleção de 82 que tanto exalta quando pode. As impressões que ficam, afetam e constroem o imaginário são parte da identidade.

1 comentário em “O óbvio precisa ser dito”

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