O futebol é um jogo que escapa à teorização. Como rola a bola, rolam os conceitos que tendem a restringir essa liberdade. Mas o futebol também é esse processo de procura num quadro onde todos os eventos do passado podem ser conjugados no presente. Desde o seu primeiro dia, uma excelente forma de na procura de respostas continuar a melhorar as perguntas que fazemos.
A traição da tática
Desde a invenção do jogo que este desenvolve duas linhas de evolução que vivem, de forma constante, em enorme tensão. Por um lado, a prática, que se desenvolve no terreno de jogo através das capacidades e do talento de quem o joga. Por outro lado, a teórica, que se cimenta observando o jogo, através do entendimento das conexões que este desenvolve com o mundo.
Da aurora da competição herdou-se a tendência, ainda bem observável nos dias de hoje, de um condicionamento da análise teórica do jogo ao resultado do evento prático. Aqueles que se superiorizavam no jogo delineavam as marcas teóricas que afetariam as realizações de quem tentava desenvolver novas evoluções. Mas o crescimento do jogo e o tempo a ele dedicado, não como distração, mas como potencial de conhecimento, permitiu o rasgar dessa linearidade.
A aproximação tática ao jogo ficou, erradamente, entendida como uma negação do jogo em si. Ser melhor já não era algo que apenas se definia dentro do campo, mas que contava também com contributos do exterior, alargando a existência do jogo bem para lá das quatro linhas. O analista do jogo, o treinador, a equipa técnica, todos conquistaram poder sobre a existência do jogador e o jogo foi conquistando novas camadas que o capacitaram para ser global. Porque no desenhar das suas regras era compreensível a todos, porque no desenvolvimento da relação com bola era exequível em qualquer lado, porque na composição de estratégias se permitia ao luxo de ver a equipa menos talentosa ultrapassar a acumulação de talentos.
Arqueologia sem escavação
A história da evolução do jogo é também um alargado acumular de equívocos. Encare-se, desde já, esta situação como uma riqueza. Um jogo que tivesse sempre seguido a melhor tendência a cada ensaio e correspondesse de forma unívoca a uma linha de pensamento seria um jogo mais pobre, mais desinteressante, em suma, um jogo que não seria mais o jogo que vivemos. Cada equívoco nasceu da possibilidade de, com onze jogadores, num retângulo de jogo, durante noventa minutos, poder-se ensaiar respostas para perguntas que demoram eternas.
Nunca ninguém descobriu o segredo do jogo. Mas cada pequeno génio que se lança na procura de o fazer, contribui com a sua audácia, desafia-nos com a sua coragem, perturba-nos com a sua capacidade. E porque acontece isto? Porque o futebol é a única modalidade onde a arqueologia não precisa de escavar fundo para encontrar artefactos de qualquer época. Aqui encontramos, perante os nossos olhos, a constante evidência de uma longa história que se faz de constante revisitação de soluções.
É a capacidade humana do jogo a explodir-nos na face. Enquanto a teoria se esforça para delinear tendências e agrupar, de forma conceptual, um lote de respostas, a prática desenvolve-se de maneira livre e desenfreada, com cada jogador a nascer como uma hipótese de expansão dos limites do jogo. Daí a tensão que tanto nos anima e nos faz percorrer, ora pelas estradas de um qualquer país, ora pelas emissões que as redes nos abrem, uma infindável busca da surpresa.
A formação não é um processo estanque
No jogo, a história não se repete. No jogo, a história vive-se a cada instante, sobreposta sobre o campo, inventando-se sobre si mesma. As linhagens que se pretendem definir como historiografia do jogo falham sempre na maneira como é impossível coligar uma influência a uma ação. Sendo o jogo essencialmente um discurso físico, entre os corpos de jogadores, bola e baliza, o jogo é também um discurso mental e literário. Porque o jogo acontece na cabeça de cada um – o que o joga e o que o observa – e é na forma de o descrever de maneira simples que se provocam novos entendimentos.
Ao longo da maioria dos tempos, a formação do jogador foi um processo da mais pura liberdade. Cada jogador desenvolvia-se na sua relação individual com o jogo. Ora observando um número limitado de possibilidades que aconteciam no seu entorno, ora praticando de forma desregulada – ele a a bola, um grupo de amigos divididos como fosse possível, balizas inventadas com pedras ou casacos – ora ainda escutando como se descrevia aquilo que ele via e aquilo que ele só podia imaginar. Nessa distância se inventaram grande parte dos jogadores que ainda hoje nos fazem sonhar. Porque tinham em si essa noção de um jogo que tem várias fontes onde estruturar o seu talento.
O desenvolvimento da formação do jogador, enclausurado em sistemas que repetem, a mais das vezes, a competição profissional, ameaçou de forma grave o jogo como o conhecemos. A capacidade de observar diariamente apenas aquilo que se conforma como a elite, de maneira indireta, não à beira do campo mas no modular óculo da transmissão, estando-se exposto também a conceitos e planeamentos que tendem a excluir mais do que incluir, ameaçou fazer do homem que joga um ciborgue.
Resistência à ciborguização do jogo
Na própria formulação que fazemos do jogo está a semente de resistência que permite ao jogo florescer constantemente. Regressamos à tensão entre prática e teoria: para descorporizar o ciborgue é necessário expô-lo ao humano. No jogo, continuamos a receber os contributos de quem, por falta de acesso, se desenvolve em quadros que nunca foram ultrapassados, mas sim mantidos como referências com maiores dificuldades para se transformarem em discurso. Muitos daqueles que continuam a produzir talento não o fazem de maneira desorganizada, mas tendem a fazê-lo de forma anticonceptual. Daí a liberdade que se sente nos jogadores que, tantas vezes, erramos a etiquetar de “impreparados”.
Os símbolos da resistência no entrar da segunda década do século XXI, no entanto, fazem-no conquistando resultados, libertando jogadores, demonstrando como essa enorme consciência histórica do jogo é bastante mais produtiva do que a resolução do mesmo em fórmulas fechadas. E se as suas capacidades para se afirmarem no jogo foram sendo desvalorizadas como especulações psicológicas (o abusivo discurso da “liderança”), a necessidade de transformar esses dados em discurso acabou por ser uma tarefa pouco valorizada por quem acabava por se desenvolver no terreno. Ou seja, a existência de uma teoria essencialmente prática foi sendo absorvida pela excelência da prática e incapacitando-a como teoria.
É esse o caminho que toma Jamie Hamilton no seu texto “O que é o relacionismo?”. O esforço teórico da resistência é o regresso ao mais exigente desafio que o jogo nos coloca desde o seu início. Como descrever de maneira simples algo que está dependente do entendimento do momento preciso em que o ato acontece, escapando-se constantemente à repetição de fórmulas. Mais do que encontrar nele uma rutura, encontro o futebol pelo qual me encantei. O toca e foge, a tabelinha, a diagonal, o artifício, o constante movimento que nos obriga a entender todo o potencial da forma humana dentro de um terreno de jogo. A resistência é um regresso à compreensão global de uma enorme quantidade de eventos que, classificados como históricos, não deixam de ser palpáveis no dia de hoje.
O que é o futebol?
Já são muitos os treinadores de formação que se depararam com a ciborguização do jogador e que desenvolvem estratégias para abandonar esse caminho. Por isso também em várias academias, mais do que condicionar a formação do jogador, se exacerbam espaços onde estes possam afirmar a sua capacidade de entender e definir conforme o contexto que o jogo lhes apresenta. O processo de resistência está em pleno curso e a chegada contínua de talentos que apresentam recursos fora da norma promete-se estável.
Apesar de todas as constrições, os treinadores de elite não temem em colocar o jogador como elemento diferenciador do seu trabalho. O processo histórico de um Real Madrid na mão das características dos seus jogadores, com Zinedine Zidane e Carlo Ancelotti, a constante revisitação histórica da carreira de Pep Guardiola, entre Messi e Haaland como referenciais, o abraço a “La Nuestra” de Lionel Scaloni campeão do mundo e o triunfo de Fernando Diniz com o seu processo de teorização da liberdade do jogador são mais do que exemplares na maneira como o futebol se afirma em toda a sua abrangência. Relendo os seus próprios equívocos e desenvolvendo-se na riqueza que estes lhes permitem.
O que o jogo necessita para continuar a evoluir dentro da sua raiz é a capacidade de olharmos para a sua história. O futebol é um enorme exercício de liberdade que nasce da capacidade global de quem a pratica. O futebol é um enorme convite à reflexão e ao entendimento das suas forças em constante relevo. O futebol é um processo de entrelaçamento entre prática e teoria, conquistando sempre novos territórios na capacidade de ser descrito de forma inventiva. A competição é o elemento final da imprevisibilidade. E conforme entendermos todas as nossas capacidades, melhores respostas teremos para os desafios lançados por quem nos contraria.