Os sábios historiadores alemães costumavam dizer que sem motivação ninguém pesquisaria nada. Devo confessar que a minha grande motivação ao escrever sobre o sistema da seleção brasileira de Tite reside apenas na reciprocidade ou na capacidade de reagir a algo. De minha parte, entre a irritação e a perplexidade. Com quase dois anos de trabalho, não foram poucas as vezes que vi até bons analistas enfocando ou criticando o seu sistema a partir de uma lógica específica de uma escola predominante ou hegemônica. Como se toda equipe para dominar (ao seu modo) o jogo ofensivo precisasse elaborar uma “saída de três” ou com menos jogadores, ou usar de amplitude, ou fazer um jogo posicional.
Sem dúvida, um dos mais terríveis neste sentido veio de Portugal, onde o autor não compreendia o sentido da saída de bola brasileira, tampouco que nunca realizamos ataque posicional até ali. Perplexo, o autor se perguntava porque laterais fechando o jogo ou tanta gente na saída.
Já expliquei em outro texto os tipos de ataque que são organizados do tempo para o espaço, da consciência para o mecanismo, ou seja, partindo da premissa de que a liberdade individual (bem orientada) constrói melhor a ordem ofensiva. Só compreendendo as premissas desse outro tipo de jogo, tão distante e quase antagônico ao “jogo de posição” holandês, podemos entender as razões futebolísticas de técnicos como Zidane, Ancelotti, Tite, Lucien Favre, entre outros.
1. Saída Sustentada
A safra atual do Brasil possui um perfil com laterais de grande capacidade de passe e de pontas com grande mobilidade, criatividade e habilidade. Junto à isto, há meio-campistas mais físicos do que controladores de ritmo ou de circulação de bola. Por causa desse aspecto, Tite montou um sistema que privilegia o peso dos laterais na saída de bola, forçando a transição ofensiva sempre pelos lados através das duplas Dani Alves/Coutinho e Marcelo/Neymar.
Aqui, começamos o primeiro ponto do seu sistema: a saída sustentada. Boa parte dos times europeus, especialmente os que praticam um ataque posicional, realizam uma saída de bola com menos homens no campo defensivo. Muitas vezes se faz a “saída de três”. Um dos modelos dessa saída é abrir os dois zagueiros, puxar um dos volantes para ficar entre eles e espetar os laterais. A vantagem desse modelo é acumular pernas e linhas de passe no campo ofensivo, facilitando o passe vertical e diminuindo a chance de ter uma posse de bola conservadora ou que faça aquele movimente de “U” indo de um lado para o outro. Aqui se exige mais passes verticais e o peso dos laterais na saída de bola não raro é menor, crescendo a responsabilidade do “5”, dos zagueiros e dos armadores.
Tite e outros técnicos vão na contramão. A seleção faz a saída de bola sempre com sete jogadores mais recuados (oito com o goleiro) no campo defensivo. A linha de 4 e a linha de 3. Há três razões para isto: a) com mais homens recuados, você atrai a pressão do adversário e libera espaços para os três atacantes (Neymar, Jesus e Coutinho) atacarem com o seu talento; b) você recua os laterais para eles terem mais peso na saída de bola e poderem usar o passe mais vertical; c) os atacantes podem ser conectados com espaços para te colocar no campo de ataque e os armadores pegarão essa bola de frente com sua fisicalidade, uma vantagem também defensiva, e aqui Paulinho é muito favorecido, por exemplo. Dois exemplos:
Esta é a “saída sustentada” e possui duas perdas. Ao trazer sete jogadores para próximo do seu gol e atrair a pressão do adversário, um erro pode ser fatal. Por isto, ela exige segurança, fisicalidade e responsabilidade. O outro problema é a falta de linhas de passe a frente para receber um passe mais vertical. Isto predispõe a um perfil de equipe: que se defenda com a bola, saiba minar o adversário primeiro, seja mais conservadora e corra o mínimo de riscos. O que casa bem com um torneio como Copa do Mundo, o que o Brasil em 94 e a Espanha em 2010 já provaram.
Na prática, a “saída sustentada” possui elementos posicionais justamente para o ataque ser funcional no último terço ofensivo. Criar mecanismos complexos de saída de bola é um enorme desafio para treinadores de seleção, que ficam sempre com os jogadores em tempos curtos e espaçados. Por isto, Tite usa uma receita simples para a bola ser circulada entre os jogadores: escalonamento e procurar sempre a transição pelo lado:
Usando os elementos posicionais, os dois laterais ficam sempre abertos para gerar amplitude na saída de bola e para fazer a transição pelos lados, enquanto os outros jogadores se posicionam como os “degraus de uma escada” para facilitar a linha de passe até chegar ao lado do campo.
Na prática, vimos várias transições bem realizadas e gols realizados ou chances claras perdidas. Como também alguns problemas quando o adversário não sai para pressionar a saída de bola.
No segundo gol do Brasil contra o Uruguai, tudo começa de uma bola recuada para Alisson após pressão do adversário e este quebra a linha defensiva com um passe vertical para Casemiro livre:
Contra o Chile, Fernandinho conseguiu tirar a bola da pressão alta chilena e colocou Willian em ótimas condições para contra-atacar:
No amistoso de março contra a Alemanha, outra grande chance construída a partir dessa saída sustentada. Os alemães foram marcar alto o Brasil com o lateral-esquerdo pressionando Paulinho que caiu na ponta para atraí-lo. O resultado foi uma bola enfiada para Gabriel Jesus com muito campo para avançar:
Só para efeito comparativo, reparem como a saída de bola alemã é diferente da nossa, usando poucos homens no campo defensivo:
Assim, a saída sustentada é realizada para atrair o adversário, criar espaços para os três atacantes, aumentar o peso dos laterais na saída de bola, e forçar a transição ofensiva pelos lados, lugar onde o Brasil concentra passe, habilidade, mobilidade, enquanto por dentro aposta mais em fisicalidade, apoios, compensações e chegada à frente.
2. Ataque Funcional
A partir do momento em que a equipe faz a transição ofensiva e se instala no campo adversário, pratica um ataque funcional e não um ataque posicional. Isto significa que tenta controlar do tempo para o espaço, com liberdade posicional e autonomia para os jogadores escolherem suas funções mesmo nas triangulações. Tendo como características: a) juntar jogadores no setor da bola; b) criar espaços vazios do lado oposto por não atacar com amplitude no último terço ofensivo, que poderão ser atacados na inversão de bola; c) buscar desmarques constantes para triangulações de acordo com a criatividade e a intuição do jogador.
O primeiro ponto é que ficarão sempre quatro jogadores por trás da linha da bola: o lateral do lado oposto da bola, os dois zagueiros e o “5”. Os jogadores que atacam possuem liberdade posicional dentro das funções que podem assumir. Um lateral pode escolher, por exemplo, a partir da leitura dos seus companheiros, se irá atacar por dentro ou por fora quando a bola for invertida. Do lado direito, varia entre armador, ponta e lateral a função de abrir o campo para fazer a triangulação. Vejam como se dá com a bola no lado esquerdo ou direito:
Foto de disposição de jogadores da seleção em campo.
A bola entrando no campo do adversário pelo lado esquerdo, Coutinho flutua e cria superioridade pelo setor, juntando-se a Neymar, Marcelo e Renato Augusto. O armador do lado oposto buscará estar entrelinhas, e o 9 dará profundidade. O lateral do lado oposto da bola (o lateral-direito, no caso) fica quase na linha do “5” como um “zagueiro-interior”. No primeiro gol contra a Argentina, Coutinho flutuou entrelinhas e recebeu a bola num passe de craque e de primeira de Neymar:
O lado oposto da bola não tem amplitude. Ou seja, quando o time ataca pela esquerda, ninguém abre o campo na direita, criando um espaço vazio para ser atacado posteriormente. Se a bola é invertida, o lateral ou o armador ou o ponta podem abrir o campo:
A jogada construída do “lado forte” com lateral-esquerdo, ponta-esquerda, armador da esquerda, ponta-armador vindo da direita, pode ser concluída do lado oposto (o lado fraco) como no segundo gol contra o Peru:
O terceiro gol contra o Japão foi de uma jogada trabalhada pela esquerda, quando a bola foi invertida, Danilo, o lateral-direito teve que escolher entre apoiar por dentro ou por fora. Apoiou por fora, e cruzou rasteiro no segundo para Gabriel Jesus fazer o gol:
A jogada do “lado forte” pode ser concluída do mesmo lado depois de triangulações, desmarques, e uma ruptura decisiva. O terceiro gol contra o Paraguai é icônico neste sentido:
Atacando pela direita, há três tipos de situações: o armador abrindo para triangular, o lateral abrindo ou o ponta abrindo. O segundo gol contra a Bolívia surgiu do armador (Giuliano) abrindo o campo após a bola invertida do lado forte. Vejamos os três casos:
Assim, quando chega no último terço ofensivo, o Brasil busca ter equilíbrio com quatro jogadores sempre por trás da linha da bola, dando suporte por trás da linha da bola e não separados dos seis da frente, e dar liberdade posicional para os seis a frente da linha da bola. Com Coutinho flutuando da direita para esquerda, aquele lado se torna o forte, acumulando jogadores e criando o espaço-vazio a ser atacado pelo outro lado, ou triangulando e resolvendo por ali mesmo. Bola do lado direito, Neymar vira “segundo atacante”, e há uma grande variedade de papeis entre lateral, armador e ponta. É um ataque feito para dar liberdade aos jogadores, servir-se de sua criatividade, e dominar primeiro pelo tempo com desmarques, intuição e fazer as coisas certas na hora certa com autonomia para, assim, construir a ordem e dominar os espaços.
3. Funções dos jogadores
Dentro deste ataque funcional, os jogadores possuem características específicas para exercer a multiplicidade que se exige dele. O lateral deve saber ser um “zagueiro-interior” numa linha de três quando a bola estiver do lado oposto, deve ter um bom passe para a saída de bola, e deve saber interpretar a jogada para escolher a função de “lateral-interior” (atacar por dentro na base da jogada) ou “lateral-ponta” (atacar por fora) quando a bola está do seu lado.
Os armadores devem saber recuar e fazer a saída de bola mais atrás. Para isto, precisam de segurança e de fiscalidade para aguentar a pressão e o tranco do adversário. Eles devem saber também atuar entrelinhas, infiltrar e compensar os movimentos dos pontas e laterais. Um dos armadores será o “regista” ou o “segundo homem do meio-campo”. No nosso caso, o Renato Augusto. Ele compensará a movimentação dos outros jogadores e organizará o time mais por trás das jogadas, sendo esta “cola” entre base (pela frente dos volantes) e entrelinhas. Atuará do “lado forte” da jogada para dar suporte ao “ponta segundo atacante”, ao “ponta-armador” e ao lateral por trás deles ou dando profundidade para eles. O outro armador deve ser o “mezzala” ou o “terceiro homem de meio-campo”. No caso, o Paulinho. Atua mais no lado oposto do “lado forte” para infiltrar, trabalhar entrelinhas, tendo grande mobilidade para abrir o campo para que pontas e laterais entrem pelo meio. O mezzala precisa saber trabalhar entrelinhas e infiltrar na defesa adversária, além de fazer a saída de bola como um volante. Por estas características, Giuliano se deu bem na função de Paulinho quando foi testado.
Um dos pontas será o “ponta-armador”, um jogador que deve flutuar nas costas dos volantes no terço final do campo, até o atravessando para jogar junto ao outro ponta. Ele será mais um meia, como são Coutinho e Willian. O outro ponta será um “segundo atacante”, como Neymar. Alguém mais vertical, que busca a jogada rápida, o drible, o passe agressivo, e o gol, não trabalhando tanto a posse como um meia. Com a bola do seu lado, joga mais aberto e profundo. Com a bola do lado oposto, não chega a atravessar o campo, se comporta como um jogador de “segundo pau”, esperando a bola chegar por trás do 9. Já o centroavante precisa dar profundidade a equipe para gerar espaços para o trabalho da bola. Como Firmino é mais um 10 que joga de “falso 9” no Liverpool, teve alguma dificuldade para fazer esse trabalho no lugar de Gabriel Jesus. A questão é se a comissão técnica confia nele para atuar também como um 9 de movimentação que produz profundidade ou se julga que pode mudar os mecanismos ofensivos com dois atacantes de lado mais espetados, sendo menos construtores nessa saída de bola, o que demandaria mais jogo interior.
4. Uma novidade contra a Russia e uma contra a Alemanha
Contra a Rússia, um time que não iria pressionar a sua saída de bola e iria se defender com uma primeira linha de 5 e não de 4, Tite manteve a saída sustentada, mas praticou ataque posicional quando os jogadores não encontrassem espaços. Neste ataque posicional, os dois laterais atacavam por dentro, enquanto os dois pontas abriam o campo, e os armadores se posicionavam entrelinhas. Isto no terço final do campo. Antes, porém, fazendo a saída sustentada, os armadores brasileiros mantinham um posicionamento mais recuado igualmente aos laterais:
Assim que vinha a pressão russa, a ordem era Coutinho e Paulinho atacarem entrelinhas. Várias vezes, Coutinho segurava, vinha pressão, tocava pra Marcelo, e Coutinho infiltrava entrelinhas. Passando da saída sustentada para o ataque posicional. Faltou entrosamento para tocar mais rápido:
Muitas vezes, quando não vinha pressão, Coutinho construía mais de trás, enquanto Marcelo precisava atacar o corredor. Muitas vezes, Douglas Costa não interpretou corretamente a jogada e não saia da ponta. Para não ficar apenas 3 jogadores triangulando pelos lados, Tite criou uma variável. Quando Jesus sai da área para ficar entrelinhas, Coutinho vinha para base da jogada, Marcelo atacava o corredor, e Douglas deveria buscar área de finalização deixada por Jesus:
A partir de então, Brasil varia entre ataque posicional quando a Rússia tá mais bem postada na defesa e o seu ataque funcional quando tem mais espaços. Por fim, destacar também o pressing. Aqui, Daniel Alves pressionar o portador da bola, enquanto Douglas Costa e Willian buscam fechar linhas de passe para o contragolpe. Sim, os pontas terminarem juntos nessa jogada, pois aqui não tinham feito ataque posicional:
Contra a Alemanha, uma equipe que costuma pressionar a saída de bola, Tite voltou ao seu ataque funcional, abrindo mão de elaborar um ataque posicional. A estratégia do Brasil foi pressionar a saída de bola alemã com alguns encaixes e marcar em bloco baixo quando a bola passasse do meio. Os 3 da frente pressionavam a saída de 3 (zagueiros + Kroos). Na imagem, Willian vem pressionar o homem com a bola, enquanto Gabriel corta a linha de passe para Kroos:
O armador encaixava no lateral espetado do seu lado. Na 1ª imagem, Paulinho no lateral, e na 2ª, Fernandinho no Kimmich. Casemiro no Draxler, os laterais nos pontas, e um dos zagueiros encaixava no 9. Estes encaixes eram apenas para o momento de pressionar a saída de bola alemã:
Além de roubarmos muitas bolas no campo de ataque alemão e construído a partir dali, forçamos a Alemanha a cruzar 33 bolas no jogo. Quando sua média na Copa de 2014 foi 16, e nas eliminatórias foram 14 (números do Footstats).
5. Atualização do “jogo brasileiro”
Independente do resultado da Copa, Tite já deu sua contribuição para que se pense o jogo e sua organização ofensiva fora da imposição de uma escola hegemônica que parte do espaço para o tempo. Isto eu já expliquei num texto mais longo em duas partes. Na seleção brasileira, vemos um sistema ofensivo construído para as características dos jogadores e que privilegia a expressão deles como também o é no Real Madrid bicampeão da Europa dirigido por Zidane, embora este até costume atacar com mais jogadores a frente da linha da bola.
Sempre foram características do jogo brasileiro: o ataque funcional, segurar um lateral enquanto o outro sobe, empilhar jogadores no setor da bola, fazer um ponta flutuar, etc. Tite atualizou características históricas dentro de um sistema funcional para adaptá-lo ao jogo contemporâneo. Essa proposta não é melhor e nem pior do que outras, ela possui a sua lógica e compete desta maneira. Com ou sem o hexa, vamos nos divertir nesta travessia.