Nos acostumamos com a lógica sistemática do mundo à medida em que ela é, mesmo, sistematicamente inevitável. O estágio atual é preocupante, e se você não se apercebeu disso, tudo bem, pois é complexo e acaba sustentando o ponto disso tudo.
Refenizamos nossos irmãos a conceber tudo na vida operando à imagem e semelhança da estrutura que conhecemos. A escola, a igreja, as relações familiares, a pelada dos solteiros e casados, até mesmo os poderes estatais, tudo se explica e se confunde com o jeito que o mercado, a instituição-espelho desta lógica, se organiza.
E se num momento anterior nós olhávamos para nós mesmos e procurávamos encaixar o valor da ultraprodutividade em nossas atividades individuais — quero um hobby, mas ele funcionará da mesma forma que meu trabalho: meta de 3 livros lidos por mês, ou 50 por ano; não sair da academia até cumprir o programa de treino; terminar essa peça de crochê até amanhã — agora isso se instala até mesmo onde se deve existir puro lazer, os momentos da diversão ingênua, de contato com o que éramos antes de nos abandonarmos (futebol, consumo artístico, sair para farrear, etc.).
Uma crise nas artes…
Você chega a uma exposição de artes visuais porque, primeiramente, acredita que aquele lugar e aqueles quadros têm algo a lhe dizer; eu digo, você crê que algo na disposição daquilo vá te apresentar a um novo padrão, um ponto de vista meio esquisito, mas que também é realidade, afinal.
O que acontece é o contrário: as salas cinzentas e exageradamente banhadas por luz azul, os quadros de tamanhos idênticos, unidos por paleta similar (quando não todos em preto-e-branco) perfilados em grid e espaços rigorosamente equânimes entre si, um sentido próprio a que o visitante deve percorrer a sala, às vezes uma determinada duração; tudo faz lembrar o que já vimos ou o lugar de onde acabamos de sair: os escritórios, os consultórios, as salas comerciais, os prédios e suas paredes geladas…
Você muda de sala, a temática é diferente, mas o padrão é o mesmo da outra. Onde foi parar o caos, a anteforma, o lirismo, a dúvida, a diferença? Aonde a arte passou a viver?
No futebol, esse jogo mágico, capaz de combinar a estratégia do xadrez à liberdade da dança, a associação automática à realidade penosa de nossas vidas (falo das sul-americanas em especial) sequestrou o imaginário coletivo e fez com que tudo girasse em torno do desempenho.
Ou seja…
O jogador de bola deixou de ser ator do espetáculo para tornar-se projeção direta do funcionário comum, que bate ponto, cumpre com suas obrigações, já predefinidas em sua função, muitas vezes sob os gritos histéricos de algum doido megalomaníaco, sem permissão para inventar nem brincar com nada.
E a plateia também mudou: de torcedores, hinchas malucos movidos pelo belíssimo espírito da incógnita das tardes de domingo, temos agora stakeholders, acionistas frios que fiscalizam a performance de uma empresa em seu nicho de atuação, prontos a culpar dirigentes, managers e funcionários em caso de uma má entrada, como se a derrota do time significasse queda na bolsa, assim, perda de uma parte do capital.
Ligar a televisão num jogo de futebol é, por vezes, um desafio incômodo. De tanto medo de encontrar aquela velha realidade nos interceptando, acabamos sendo cautelosos com a experiência. Vemos aquela sequência de ações sendo executada com precisão cartesiana (quando há o mínimo de técnica para tal), cada bola se encaminhando para um setor específico como se o meia tivesse uma série de códigos prontos, e nos lembramos do “nosso lugar nas coisas”.
Aí, a crise da experiência: não mergulhamos — claro, pois quem quer se machucar? — naquela livre simulação do mundo corrido.
– “O futebol, hoje…”
— mas não desenvolvi. O dia havia sido matador e eu só queria dar um momento de descanso à cabeça. Hoje é quarta-feira. Tem Brasileirão, né? Olho pelo celular. Fluminense versus Fortaleza. “O Flu ta muito bem, e o Ganso, hein? Jogando um bolão…”. Sim, pensar nas boas coisas. Vou bater o cartão, passar por aquela catraca giratória e encontrar, num céu já anoitecido, a liberdade para organizar a existência até o dia seguinte.
“Um trocado?”, pede um homem, no caminho. Puxo dois reais da carteira e o alcanço. Claro, a falta de mergulho: somos cidadãos, porra! Estamos nos alheando até de nosso nível primário. Nesse ritmo automático, vamos concebendo com assustadora naturalidade que irmãos nossos possam não ter o que comer, não ter peças de roupa suficientes para protegerem-se do frio, sequer tenham para a passagem do ônibus. Isto é o que querem de nós? A ideologia da sistematicidade e seu efeito de disfunção narcotizante nas pessoas: cegamo-nos à arte, cegamo-nos à vida.
Chegando em casa, contra todos os impedimentos da rotina selvagem, às 19 horas e 30 minutos o banho já estava tomado e a televisão, ligada na partida. Paulo Henrique Ganso, o 10 do Flu, estava inspirado. Logo noto, com a curiosidade de uma criança: ele, literalmente, anda em campo, enquanto todos os outros correm. Como, então, ele está em todo lugar? Parece até que é a bola que o segue.
Que beleza!
Bola com ele, avançando pela intermediária. A lógica das automações: para tocar ao ponta-esquerda, código 1. Ponta-direita, código 2. Botar o ponta-de-lança para correr por trás do defensor, código 3. Caramba! Ganso segurou a bola e o tempo parou. Corredor central. O que ele fará? Os defensores perderam a passada e desencontraram a trinca de ataque. Aquele átimo de segundo, um intervalo miserável perante o tempo que o universo oferece, foi suficiente para o ataque do Fluminense se recriar.
Tudo reconfigurou-se, a despeito da racionalidade dos relógios. Ganso enfia por dentro, a bola atravessa o Atlântico, no meio daquela gente toda, até chegar a Germán Cano, que abre e bate seco. 1 a 0.
Eu abro um sorriso, por contemplar as belezas, a “arte-em-seu-lugar” mas não só: eu não estava delirando! Há, sim, vida nas entrelinhas do tempo, e todos aqueles quadros bem alinhados possuem, sim, histórias, emoções e uma necessidade dos “antirrelógios”. É possível inventar uma nova realidade entre um tic e um tac, criar um novo domínio das coisas.
É só entender: nós somos o tempo. Nós somos os lugares que criamos e para onde destinamos as coisas.
Mea-culpa: esquecer disso é, também, parte do nosso processo, claro.
E o mais legal: quando isso acontece, a amnésia social nos varre e tudo parece entregue, largado, irreversível, vem algum sujeito de chuteiras e camisa 10, para quem o tempo e as negociações da vida funcionam diferente, nos lembrar: somos nós os protagonistas.
E se eu me entrego ao vazio do sistema, nada a temer. Paulo Henrique Ganso está em minha televisão duas vezes por semana, devolvendo-me a vida imprevisível. E assim sigo a minha jornada, livre, ébrio, distraído pelo espírito da bagunça.
Só assim mesmo pra me organizar…