Um dia turco em Manchester

Hakan Çalhanoglu engolindo Rodri no meio campo

Desci do ônibus em Manchester faminto. Felizmente, a procura por um lugar para comer foi curta: logo em frente à rodoviária havia uma lanchonete de kebab. Atravessei a rua sem pensar duas vezes. Analisei bem o cardápio e fiz meu pedido para o atendente que também não parecia ter vindo dali. O “doner kebab” dominou a comida de rua européia após a larga imigração turca nos anos 70. É um sanduichão com tiras de frango ou carne, pimentão, cebola, alguns outros vegetais e geralmente apimentado. Está por toda parte na Europa.

Com o problema da fome bem resolvido, segui meu roteiro turístico de tiro curto. A viagem era de bate e volta, só para assistir a minha primeira partida de Champions League, mas antes de ir ao Etihad Stadium, passei no National Football Museum e numa famosa loja de camisetas antigas de times do mundo todo. Às vezes me questiono sobre como tudo na minha vida gira em torno do futebol, mas acho que amar é justamente essa força que atropela o raciocínio.

Logo na entrada do museu, um guia me contou uma tremenda mentira. Depois que declarei minha torcida pelo Flamengo, disse que o irmão mais velho havia ido ao Rio e trazido uma camisa rubro-negra de presente quando era criança. Até ali não me parecia tão inverídico. Mas depois que falamos do Zico e o inglês completou a história com um suposto encontro do irmão com o Galinho no aeroporto, passei a duvidar de tudo. No mais, vi o primeiro livro de regras da história do futebol, a primeira camisa usada numa partida entre seleções e algumas outras relíquias bacanas que não me marcaram tanto quanto o momento em que tocaram o hino do Brasil. Longe de casa a nossa grama é mais verde.

Para chegar à loja, atravessei o movimentadíssimo centro de Manchester que já estava tomado pelos italianos. Quando envolve futebol, o esteriótipo fica ainda mais forte. A torcida nerazzurri extravasava seus cantos para toda a cidade ouvir. Aquele amontoado de gente te magnetiza, faz ter vontade de subir junto na mesa do bar e gritar. Mas o tempo era curto e eu estava vestindo a camisa do adversário.

Comprar naquela loja era impossível. Foi como trocar de museu. No início até pensei que encontraria uma pechincha naquele mar de camisas, mas logo desisti da ideia e me contentei com olhar. Foram quase duas horas lá dentro passando cabide, acompanhado da cerveja que vendem lá e conversando com um vendedor que entendia até que bem de futebol brasileiro. Dentre as centenas de camisas que vi, uma prendeu meu olhar.

Turquia 1996-1998, visitante. Espetacular. Praticamente toda branca com três listras vermelhas incompletas que esvaneciam no peito, onde brilhavam a lua e a estrela. Uma camisa hipinotizante, preenchida por marcas d’água da bandeira e com uma gola polo vermelha de pequenas listras pretas e brancas. Fiquei parado apreciando-a como um quadro, e limitado a isso pelo valor na etiqueta.

Fui até o estádio caminhando com dois mexicanos que conheci na rua, enquanto olhavamos para a passeata da Curva Nord, a organizada da Inter. Um trajeto longo que foi encurtado pela conversa com os novos amigos torcedores do Tigres. O Etihad não é distante do centro, mas um tanto desconexo da cidade. Nos arredores, uma concessionária da Tesla e um enorme supermercado de rede, além da passarela que liga o estádio ao centro de treinamento. Havia, também, uma pequena rua residencial, evidenciada pelo grande grafite de Guardiola no muro da primeira casa. Me despedi dos mexicanos, que entravam por outro portão, e peguei meu rumo para o campo.

A expectativa para o jogo era alta, afinal se tratava da penúltima final da competição. Infelizmente a Inter não mandou a campo seu time titular completo por conta de lesões e do dérbi do domingo contra o Milan, o que sem dúvida alguma contribuiu para o 0x0 no placar. Com Lautaro e Di Marco iniciando, a história provavelmente seria outra, já que os substitutos não deram conta de converter em gols as várias chances que tiveram em contragolpes. Mas em meio aos excelentes titulares que estavam no gramado, como Barella e Bastoni, um marcou a noite e fez valer o ingresso.


“Há alguns meses, eu disse que estava entre os melhores registas do mundo, e ninguém acreditou em mim. Mas acredito sempre em mim, conheço as minhas qualidades e não tenho medo de ninguém…Enzo Fernández em 5.º, Kimmich em 4.º, Kroos em 3.º e Rodri em 2.º. O primeiro? Çalhanoglu”.

– Hakan Çalhanoglu

Çalhanoglu estava por toda parte. Contra um Manchester City que não parava de pressionar, regeu as saídas curtas e garantiu que a Inter chegasse com fluidez ao campo de ataque. De costas ou de frente, aparecia em todos os lados e carimbava a bola sempre que pudesse, aclarando as jogadas. Um daqueles casos de jogadores que você gostava pela televisão, e passar a amar quando vê assim de pertinho.

O turco se considerou como o melhor do mundo na posição uns tempos para trás, à frente do badalado Rodri. Essa partida no Etihad serviu para que ele pudesse reafirmar tal condição para o resto da vida. Numa função parecida com a que fez Brozovic no último confronto entre as equipes, Hakan saia para pressionar o espanhol, tomando conta do meio-campo com e sem a bola. Do início ao fim, foi dominante nos duelos diretos e colocou o rival para correr.

Me lembro de uma vez em que meu pai estava tomando uma cerveja e vendo campeonato alemão, muitos anos atrás, quando de repente me gritou para ver um golaço. Fui correndo e vi a pintura de falta. O velho ficou falando do tal camisa 10 turco do Lerverkusen, que era um craque e queria no Flamengo. Depois daquele dia fiquei com o Çalhanoglu na cabeça.

Anos depois, lá estava ele, já não como 10, agora regista, exibindo a mesma qualidade na bola parada. A grande chance da Inter no primeiro tempo nasceu de um fantástico arco do turco que parou na cabeça de Marcos Thuram, superado por Ederson. Todo passe longo era perfeito, do gesto à trajetória da bola. Quando invertia, não demorava um segundo para cruzar o campo e aparecer como opção. Se Barella estivesse por perto, tocava e passava com a convicção de um melhor do mundo.

Apesar da partida decepcionante do Manchester City, que marca gols em quase todas as partidas que disputa e deixou para economizar justamente na minha presença, fui contente para casa. E não só porque ouvi o hino da Champions League pela primeira vez num estádio, mas porque tive o privilégio de ver um craque de perto em sua melhor forma. Obrigado, Çalhanoglu.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Rolar para cima