Meu objetivo é induzir um estado psíquico em que meu paciente comece a experimentar sua própria natureza – um estado de fluidez, mudança e crescimento, no qual não há mais nada eternamente fixo e desesperadamente petrificado.
Carl Jung
EXPOSIÇÃO
De muitas maneiras, parece que chegamos a um momento de transição significativa. Fui exposto ao futebol do Fluminense de Fernando Diniz quase exatamente há um ano. Ao longo dos últimos 12 meses, tentei desenvolver minha compreensão desse futebol alternativo e quais poderiam ser as possíveis implicações de seu (re)aparecimento para a ecologia mais ampla do futebol.
Técnico do Fluminense, Fernando Diniz.
Eu escrevi e twittei como uma forma de documentar o que tem sido um processo de transformação intoxicante. Durante esse período, minha compreensão do que estava acontecendo mudou quase diariamente. Ao trazer minha visão existente do futebol para um intenso diálogo com essa dimensão alternativa radical, me vi lidando com a rápida erosão de crenças que antes considerava sólidas e robustas.
E à medida que essas antigas verdades se desfaziam, novas brotavam e cresciam. Às vezes, parecia que eu não tinha absolutamente nenhum controle sobre onde ou para quê minha atenção seria direcionada em seguida. Novas raízes apareceriam das origens mais imprevisíveis.
Esses eram tempos caóticos. Recebi elogios e interesse pela pesquisa que estava realizando. Mas, simultaneamente, também recebi críticas de céticos (incluindo treinadores profissionais e analistas) que rejeitaram as ideias que eu estava promovendo.
Acredito que grande parte das críticas decorreu da minha própria incapacidade de articular o que eu havia entrado em contato. Devo ter parecido um louco pregando nas ruas, tuitando no vazio em uma tentativa desesperada de mostrar aos outros vislumbres do que eu tinha visto.
Mas com o tempo – e com muita ajuda, orientação e tutela daqueles bem versados nessa linguagem do futebol alternativo – finalmente pude fazer uma tentativa coerente de traduzir e descrever esse “outro futebol”. Essa tentativa foi o artigo “O QUE É O RELACIONISMO?”.
Nos meses desde esse artigo, parece que as ondas iniciais de ceticismo recuaram. O termo ‘Relacionismo’ parece ter sido amplamente aceito no léxico contemporâneo do futebol, sendo uma parte vital dessa mudança de paradigma.
O Relacionismo agora está próximo de conceitos de futebol europeu firmemente estabelecidos, como o Posicionalismo. Mas talvez ainda mais criticamente, o Relacionismo está agora em contato íntimo com modos localizados de futebol nacional e regional.
É precisamente essa proximidade que torna a reação inevitável. O Relationism é – literalmente – sobre fusão e mistura. Trata-se de ‘relacionar-se’ e interagir com os outros de maneiras intuitivas e espontâneas. Trata-se da primazia das relações entre as coisas.
O Relationism como conceito é imprevisível, instável e inerentemente aberto. É um agente caótico. A própria natureza de seu futebol reflete essas disposições. E quando uma substância dessa natureza caótica entra em um novo ecossistema, uma cadeia de interações emergentes certamente será desencadeada.
FUSÕES
A coexistência de diferentes linhagens de análise de jogo enriquece significativamente a maneira como o jogo pode ser observado.
‘Tropicalia ou morte’. Essa foi a proposta oferecida pelo comentarista e escritor português de futebol Luis Cristovão em seu artigo “Language, functional play and Tropicália: understanding what we are, what others are, what we can be together” (‘Linguagem, jogo funcional e Tropicália: compreendendo o que somos, o que os outros são, o que podemos ser juntos’).
Mas qual é o significado por trás da analogia de Cristovão entre ‘Tropicália’ e a atual discussão em torno da paisagem tática do futebol?
Tropicália ou ‘Tropicalismo’ foi o nome dado a um novo movimento musical que surgiu no Brasil no final da década de 1960. Nas décadas que antecederam a chegada do Tropicalismo, a música brasileira era em grande parte definida por várias formas de tradicionalismo.
Ao longo da década de 1950, o estilo musical da ‘Bossa Nova’ era considerado representar os ‘valores brasileiros’. A Bossa Nova era defendida por muitos na esquerda como uma expressão autêntica da identidade brasileira. Mas – graças às representações populares do Brasil como sofisticado e idílico – também caiu nas graças do regime militar que derrubou o líder socialista João Goulart no golpe de 1º de abril de 1964.
Entretanto, à medida que os anos 60 avançavam, o crescente poder do rock internacional tornou-se impossível de ignorar, à medida que a popularidade crescente de bandas como The Beatles e The Rolling Stones tocavam todos os cantos do globo. Esse movimento internacional, com suas guitarras elétricas, estruturas de rhythm & blues e estética do rock ‘n’ roll, era oposto pelos tradicionalistas em ambos os extremos do espectro político brasileiro.
À direita, havia as preocupações demasiado familiares sobre influências estrangeiras poluindo a pureza ideológica nacionalista cuidadosamente elaborada pelo regime. E à esquerda, os fãs da música brasileira folclórica e rústica recuaram diante da adoção, pela Tropicália, de guitarras elétricas e posturas e motivos de rock americano de mau gosto.
Em 1967, uma plateia chocada vaiou quando Gilberto Gil (que liderou o movimento Tropicalia ao lado de Caetano Veloso) teve a audácia de colaborar com o som amplificado da banda de rock de vanguarda brasileira Os Mutantes.
Junto com Veloso, Gil e um conjunto disparate de artistas brasileiros alternativos, Os Mutantes passariam a personificar o Tropicalia e os princípios que o movimento defendia.
Mas quais eram esses princípios? ‘Havia três tipos de pessoas’, lembra o músico do Tropicalia Tom Zé, ‘aqueles à direita, aqueles à esquerda e aqueles que foram inocentemente conquistados pela estética, curiosidade e inovação’.
A Tropicália buscava abraçar uma diversidade estética que rejeitava o puritanismo conservador dos tradicionalistas tanto à direita quanto à esquerda.
Os músicos da Tropicália não queriam simplesmente substituir a herança musical brasileira pelas novas modas de uma nova ordem global. Mas também não queriam isolar e preservar a música brasileira em sua forma atual.
Em vez disso, a Tropicália focava na integração e mistura de formas novas e novas no ecossistema musical brasileiro. O objetivo era trazer a diversidade da música brasileira indígena para o diálogo com as formas alternativas propagadas do Ocidente e de outras partes do mundo.
Ao se envolver nesse projeto de sincretismo musical, a Tropicália tornou-se sinônimo de uma espécie de experimentalismo multicultural.
Através desse processo, novas formas de música ‘brasileira’ surgiram. Mas não foi um abandono do passado. Foi uma reconceituação do que a arte poderia ser como expressão do que significava ser ‘brasileiro’. Qualquer tentativa de definir e preservar completamente um conceito tão fluido e diversificado quanto a identidade de uma nação está fadada a acabar em catástrofe.
O mesmo pode ser dito das ‘táticas de futebol’. O aspecto humano irremovível do futebol torna qualquer paradigma tático sempre incompleto – nenhum sistema pode ser total. Mas, apesar dessa verdade fundamental, há ‘analistas’ que insistem em enquadrar todo o futebol nos estreitos limites de suas próprias compreensões localizadas.
Se não houver uma organização simétrica e uniformemente distribuída em exibição, esses analistas criticarão o treinador por ‘não ter sistema’. Organizações posicionais como a formação 2-3-5 foram fossilizadas em tempo real, endurecidas em dogmas numéricos diante de nossos olhos. Esses planos estruturais são usados como folhas de respostas – qualquer análise deve conformar-se aos requisitos dessas leis generalizadas. Trabalhar no esquema 3-2-5, que maneira de ganhar a vida.
E é aqui que podemos localizar a essência da analogia de Luis Cristovão entre Tropicália e futebol. É o argumento de Cristovão (um argumento que eu apoio) de que setores tradicionalmente Posicionistas da comunidade de futebol europeia também podem se envolver com sistemas táticos Relacionistas – como o Jogo Funcional – no espírito com o qual os Tropicalistas brasileiros se envolveram com a música internacional.
O propósito não é substituir o Posicionismo pelo Relacionismo na Europa, mas tampouco o Posicionismo europeu deve rejeitar totalmente a validade dos sistemas Relationistas. Pelo contrário, um ambiente deve ser cultivado onde essas cepas contrastantes de táticas de futebol possam ser estudadas, mescladas e cruzadas.
As táticas Relationistas propõem que conexões novas e imprevisíveis surjam das interações caóticas entre os jogadores. As rotas de progressão da bola não são premeditadas por padrões definidos e automações repetidas. Novas ordens surgem da instabilidade de ambientes desordenados.
Diagrama do artigo ‘The Positionist’.
Essa é a essência da Tropicalia. Criar ambientes nos quais a desordem e o caos dos encontros entre corpos estrangeiros levam a fusões e amalgamações estranhas, mutações selvagens e hibridismo.
Não pode haver novidade sem essa mistura.
Como Cristovão diz: é Tropicália ou morte.
MUTAÇÕES
Infelizmente, meu gosto musical é típico de um homem branco, heterossexual e ocidental. Música é tão divertida, eu gostaria de ser mais caribenho e queer.
Henrik Rydstrom
Henrik Rydstrom, treinador do Malmo FF, costumava escrever resenhas de música para a publicação sueca Barometern. E talvez – dada sua explícita vontade de ter um relacionamento com a música do Outro – não seja surpresa que a mais notável manifestação contemporânea do Relacionismo na Europa esteja acontecendo sob a orientação de Rydstrom.
Treinador do Malmo FF, Henrik Rydstrom.
Durante a entrevista pós-jogo após o dramático gol tardio em Halmstad, o ex-jogador transformado em comentarista Nordin Gerzic abordou Rydstrom diretamente sobre o estilo de jogo pouco ortodoxo do Malmo.
‘No primeiro tempo, vi sua equipe inclinando muito para um dos lados. Vocês estão fazendo algo novo no futebol sueco. Não sei de onde vem a inspiração, embora suspeite que seja do Fluminense, do Relacionismo, é algo novo na Suécia’.
As observações de Gerzic sobre a tendência do Malmo a ‘inclinar-se’ foram precisas. Desde o primeiro dia da temporada contra o Kalmar, o Malmo frequentemente abandonaria qualquer noção de manter uma organização simétrica da equipe uniformemente distribuída.
Em vez de ocupar a área do campo ‘racionalmente’, os jogadores do Malmo se reuniam em um lado do campo, deixando grandes áreas do campo vazias e desprotegidas.
Em alguns momentos, até nove jogadores do Malmo se reuniriam em proximidade para criar condições caóticas para progressões de bola Relationistas surgirem. No exemplo acima, também vemos um benefício tático adicional da inclinação – quando a bola é perdida, o Malmo pode pressionar agressivamente usando a sobrecarga numérica e a lateral como uma espécie de defensor adicional.
Contra o AIK, podemos ver outro exemplo da extrema assimetria do Malmo. Nove jogadores ocupam uma faixa estreita do campo no lado direito. O lateral esquerdo Busanello fornece segurança com a diagonal defensiva antes de atacar o espaço aberto para receber a inversão de jogo.
A comparação de Gerzic com o Fluminense é apropriada, já que a inclinação é uma característica comum no repertório tático da equipe de Fernando Diniz.
Fluminense inclinado para a esquerda durante o Brasileirão deste ano contra o Fortaleza.
Escadinhas também surgiram como um motivo repetido no estilo de jogo do Malmo. Essas ‘escadas’ ou ‘ladders’ diagonais há muito são reconhecidas como características do Jogo Funcional brasileiro e agora estão começando a encontrar condições para crescer organicamente nos sistemas táticos de treinadores europeus.
Grêmio usando uma escadinha para penetrar no bloco baixo.
O Malmo entra pela esquerda através de uma escadinha para marcar contra o Gothenburg.
O surgimento dessas diagonais tem sido interessante de observar no jogo do Malmo.
Quando questionado recentemente sobre a influência do Relacionismo no estilo do Malmo, Rydstrom ficou feliz em dar sua perspectiva sobre o assunto.
‘Primeiro, deve ser dito que não faço nada apenas porque é sensacional ou estranho. Tudo o que faço e que a equipe técnica faz é “Como podemos tornar isso ainda mais difícil para os oponentes e obter ainda mais dos jogadores que temos?”. Eu procuro inspiração aqui e ali. Depois é divertido, em parte para o bem de Malmö e em parte para o bem do futebol sueco. Você pode chamar um pouco de atenção, mas também inspirar um pouco no sentido de que não há apenas uma maneira de jogar. A maneira como jogamos é uma maneira. Você pode discutir o que é certo ou errado, mas o que você pode dizer é que não há ninguém na Allsvenskan que jogue como nós. Veremos se alguém segue ou se inspira.’
Parece que o Malmo de Rydstrom está redescobrindo o espírito da Tropicália cerca de cinco décadas após o surgimento do movimento musical contracultural.
A ideia de Rydstrom não é copiar o Jogo Funcional ou parachutar o Dinizismo no sul da Suécia. Em vez disso, a ideia é encontrar maneiras de usar esses conceitos alternativos para ajudar a maximizar os potenciais dentro do grupo do Malmo. Futebol sueco com um toque brasileiro por meio de fusão estética transcultural.
O que diferencia Rydstrom de muitos outros treinadores é que ele parece disposto a procurar inspiração fora do paradigma tático cada vez mais míope do Posicionismo europeu. Ele se sente à vontade trabalhando com ideias de outras partes do mundo do futebol e adaptando-as às restrições localizadas do ecossistema sueco.
E os resultados até agora têm sido encorajadores. O Malmo lidera a Allsvenskan com 11 vitórias em suas 13 primeiras partidas.
O internacional peruano Sergio Pena está se tornando cada vez mais confortável com os novos ritmos do jogo.
O ex-jogador de futsal Taha Ali está adaptando sua incrível habilidade em 1v1 para se adequar aos vários princípios táticos coletivos de Relationismo de Rydstrom.
A ligação de Stefano Vecchia tornou-se uma característica das combinações de ataque do Malmo.
E o papel de Sebastian Nanasi como um atacante errante e orientado para a bola ganhou uma importância maior diante da notícia de que o capitão e principal armador Anders Christiansen não jogará mais nesta temporada.
E Rydstrom está muito ciente das dificuldades que a ausência de Christiansen pode acarretar. Com Hugo Larsson também saindo para a Bundesliga, o coração do meio-campo do Malmo precisa ser reformulado.
‘Avaliamos constantemente. Talvez precisemos mudar agora que Anders não está lá. Eu não sei. Anders foi absolutamente central nisso. Veremos. Talvez precisemos ter um período em que seja mais controlado e estrito.’
Portanto, talvez a curto prazo seja necessário um retorno a uma abordagem mais tradicionalmente ‘sueca’? O tempo dirá.
Mas podemos ver pela resposta de Rydstrom que sua atitude em relação à questão da ‘identidade da equipe’ não é fixa ou definitiva. E por que deveria se esperar que uma equipe de futebol tenha uma identidade fixa? Por que não Posicional em uma fase e Relationista na próxima? Já a construção do Malmo muitas vezes se assemelha mais à De Zerbian do que à Diniziana.
A própria identidade emerge na negociação com a complexidade do ambiente. A natureza de nossas identidades não é totalmente predefinida ou inteiramente previsível. Se as condições forem apropriadas, estranhas mutações podem ocorrer por meio de interações caóticas e encontros fortuitos.
Então, qual é a identidade tática do Malmo de Rydstrom? Talvez esta seja a pergunta errada. Por que sua identidade deveria ser singular ou definível? Por que deveria ser a de alguém?