Linguagem, jogo funcional e Tropicália: compreender o que somos, o que os outros são, o que poderemos, juntos, ser

A coexistência de diferentes linhagens de análise do jogo enriquece, de sobremaneira, a forma como o jogo pode ser observado. Mas para lá daquilo que cada teoria possa pretender como seu, importa sobretudo entender que na dimensão do jogo, não haverá como fechar a porta aos processos desencadeados pela presença humana de quem o joga. Um convite a entender uma perspetiva atual da teorização do futebol a partir do movimento da Tropicália.

Fernando Diniz

O jogador em possibilidade de invenção

“Aqui pode-se ensinar como se faz um poema, mas não como se faz um poeta”

Décio Pignatari

A observação de Décio Pignatari sobre a poesia e os poetas tem um equivalente próprio na forma de olhar o futebol. Podendo-se ensinar como se joga, não se pode ensinar como se faz o jogador, linha de pensamento que mantém em aberto essa inventividade que pertence àquele que joga. Observando e compreendendo aquilo que me rodeia, consigo notar as particularidades das coisas que existem. Mas o poeta, tal como o jogador, é algo em constante possibilidade de invenção. Em todas as épocas alguém afirmou o fim das capacidades de um qualquer invento. E, no momento seguinte, o humano concedeu ao dado-morto um novo significado que lhe permitiu rever a sentença como falhada. Por isso a bola, no jogo do futebol, mantém-se como esse elemento de imprevisibilidade constante.

Uma nova linguagem sobre a linguagem que dominamos

“Zé Celso gostava de dizer que havia uma forte componente masoquista no tropicalismo. De fato havia como que uma volúpia pelo antes considerado desprezível.”

Caetano Veloso (p.206/7)

Aos olhos do observador mergulhado na evolução do futebol no Século XXI, resgatar determinados princípios entre os apresentados por Fernando Diniz no Fluminense, parece um movimento que desconsidera a história recente do jogo. No fundo, obriga-nos a encontrar novos esquemas de leitura para abranger uma outra linhagem que parte de momentos simbólicos do “bom futebol” dos nossos dias. Esse é o tipo de movimento a que somos obrigados pela forma como nos são apresentadas as bases do jogo funcional. Pressente-se, tal como tropicalismo descrito por Caetano Veloso, uma certa volúpia pelo que fomos levados a desprezar. E, na nossa mente, há uma nova linguagem que se vem acomodar sobre aquela que antes dominávamos, como um pequeno gato se senta sobre o gato mais velho, em busca de conforto. Sentimo-nos incomodados, reagimos instintivamente com uma certa repulsa, mas acabamos por conceder (a velha experiência do gato) que acabaremos por encontrar uma forma de acomodar novas realidades. Há um petisco guardado para quem o conseguir fazer.

Onde não há centro, não haverá periferia

“O nome de ‘tropicalismo’, que rejeitei a princípio por considerar restritivo, hoje me parece adequado como nenhum outro o seria. Justamente por eu ter preferido enfantizar em primeiro lugar nossa aceitação do repertório pop internacional – como oposição de choque ao nacionalismo -, o apelido hoje me soa como uma revelação involutária da essência do movimento. Sua própria construção – por jornalistas ingênuos a partir de uma sugestão de Luís Carlos Barreto por causa da obra de Oiticica – tem a marca do acaso significativo, do acercamento inconsciente a uma verdade.”

Caetano Veloso (p. 404)

Uma nova linhagem precisa de quem a descreva de forma autónoma – como o autor conhecido como Jozsef Bózsik” no Twitter tem feito -, precisa de quem lhe desenvolva conceitos em diálogo com o entendimento mais lato do jogo – esforço a meu ver preconizado por Jamie Hamilton, mas só é considerada quando se comprova a sua coexistência com os restantes ramos de leitura do jogo. Esse é o processo de afastamento da lógica centro/periferia de que Caetano Veloso também fala. Por ser nessa lógica que se fundava a ideia de que havendo uma maneira correta de abordar o jogo, quem o fazia de forma diferente teria que o aprender ou de acomodar-se a um processo mais evoluído do mesmo. Ora, o movimento que procura, exatamente, acrescentar leituras a um caminho que tendia para a unicidade, percebe-se que nasça de uma certa abordagem inconsciente – qual a natureza do futebol brasileiro? – mas que parta para a sua universalidade. É essa a prática de Fernando Diniz. Não apenas satisfeito com a resposta que tenta dar à pergunta feita, entende o seu percurso necessário para formalizar unidades de treino a partir dessas respostas. Com o elemento humano do jogador no centro da sua ação.

Tropicália ou morte

“A palavra-chave para se entender o tropicalismo é sincretismo. Não há quem não saiba que esta é uma palavra perigosa. E na verdade os remanescentes da Tropicália nos orgulhamos mais de ter instaurado um olhar, um ponto de vista do qual se pode incentivar o desenvolvimento de talentos tão antagônicos quanto o de Rita Lee e o de Zeca Pagodinho, o de Arnaldo Antunes e o de João Bosco, do que nos orgulharíamos se tivéssemos inventado uma fusão homogênea e medianamente aceitável.”

Caetano Veloso (p.235)

Se o percurso dos teorizadores do jogo funcional caminhar para a determinação fechada da sua composição, entrarão em negação da lógica que o jogo por si visto proclama. Esse é o risco de todas as teorias, o da criação de monstros que os seus criadores não conseguem controlar, como bem demonstrou Juanma Lillo nos seus textos sobre o Mundial publicados no The Athletic. Mas se seguirem os princípios que nos sobram da Tropicália, então haverá entendimento sobre aquilo que o futuro nos poderá trazer. O filósofo francês Thibaud Leplat incita-nos, no seu livro “La Magie du Football” a “deixar de tentar, em vão, explicar o futebol. Tentemos descrevê-lo”. Nesse exercício, as proclamações práticas de Fernando Diniz, as matizes da evolução do seu pensar, abrem portas a mais treinadores que preconizem no sentido comunitário, aproximativo do jogo, as suas ideias para a elaboração de um coletivo. Nesse processo, precisaremos de incentivar o desenvolvimento de momentos que parecerão antagónicos, mas que fazem, de forma essencial, parte daquilo que o jogo tende a ser. Naquilo que o Fluminense apresenta na presente temporada, Fernando Diniz já o percebeu.

Livros mencionados:

Caetano Veloso – Verdade Tropical, Quasi Edições, 2003

Thibaud Leplat – La Magie du football, Marabout, 2019

Texto original

1 comentário em “Linguagem, jogo funcional e Tropicália: compreender o que somos, o que os outros são, o que poderemos, juntos, ser”

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