Sempre que meu tio fala do seu Atlético Mineiro há um prefácio indispensável: as injustiças sofridas nos anos 80. “O Atlético é um clube enorme, mas foi extremamente prejudicado lá atrás”. É como se o Galo fosse a consequência de uma ação objetiva e inabalável. Causa e efeito. Se hoje o alvinegro é derrotado, é porque em 1980 José de Assis Aragão expulsou Reinaldo. E se amanhã sai vitorioso, venceu também José Roberto Wright (ou poderia ter vencido por mais se não fosse ele). O conforto travestido de indignação é como ele se explica para o mundo, e explica o mundo para si. A busca pela verdade, porém, está longe de ser exclusividade atleticana.
Voltemos a 1998. Como é possível perder Ronaldo numa final de Copa? Os campeões do mundo tomarem de 3×0? A constante aflição do inesperado é inaceitável. Precisamos de uma resposta, de um porquê. “Se as pessoas soubessem o que aconteceu na Copa do Mundo, ficariam enojadas”, disse Leonardo. E de repente a tragédia estava explicada. Por trás dos panos, a CBF havia vendido a final para a FIFA, com intermédio da Nike, em troca de sediar o torneio numa futura edição. Tudo estava detalhado na conspiração: valores, nomes, planos e discordâncias. Havia explicação.
Não poderia ser outro além de Nelson Rodrigues o primeiro a brincar com essa nossa defesa contra o incontrolável. Em suas crônicas, creditava o acaso aos personagens Gravatinha e Sobrenatural de Almeida. O primeiro era o responsável por toda casualidade que conviesse ao Fluminense, a grande paixão do escritor maldito. O repentino escorregão do atacante adversário, o quique da bola no morrinho mudando a rota para dentro do arco, a falta de Zico indo de encontro com a trave. Era sempre o fantasma Gravatinha agindo providencialmente a favor do tricolor. Já Sobrenatural de Almeida possuía os mesmos poderes, mas os usava contra o Flu. E assim Nelson transformava o imprevisível numa queda de braço entre as figuras, ironizando a tentativa de ordenar o indomável.
Numa partida de futebol, o acaso já sai vencedor mesmo antes do apito inicial. O imprevisível é intrínseco ao jogo, que, diferentemente de outros esportes, não se divide em rali, game, fase de ataque, fase de defesa, ou delimita um tempo para atacar, um espaço para passar. Sendo assim, todas as ações estão em constante potência. O futebol está sujeito a todas as possibilidades, incertas e complexas como a vida social que emula. Até seu elemento limitador, o dono do tempo, a palavra final, que é o juiz, é refém da insuperável subjetividade. Em “Veneno Remédio, o futebol e o Brasil”, José Miguel Wisnik define o árbitro como “um hermeneuta que deve dirimir judiciosamente, em tempo real, a nebulosa questão da intencionalidade (houve ou não houve, não propriamente o fato objetivo, mas a sombra quase religiosa de uma culpa?).”
E mesmo sob essas condições, a culpa integral da arbitragem tornou-se não só comum como a lente mais utilizada na interpretação do jogo. É indispensável na transmissão de uma partida a presença do consultor de decisões arbitrais, como a própria palavra já diz, que julgará (da cabine de imprensa ou do estúdio), como ex-árbitro que é, de forma arbitral uma ação que só é no momento em que ocorreu. Após o jogo, tanto a decisão tomada dentro de campo quanto os comentários feitos pelo juiz-do-juiz pautarão o debate, numa busca incessante pela verdade (se era para cartão ou não era, se estava impedido ou não estava) que explicará o resultado. Causa e efeito.
Já o técnico entra como uma força externa cuja missão é a redução das incertezas. É ele o responsável por decidir quem vai ao campo e como. Por meio do plano, é capaz de premeditar, na medida do possível, os acontecimentos do jogo. O plano, porém, vive apenas no mundo das ideias, enquanto o jogo está em constante movimento e alteração. Há, portanto, o futebol ideal, previsto, e o futebol real, imprevisto, que pode ocorrer com máxima ou mínima semelhança em relação à sua abstração. Nesse sentido, o técnico, ser humano tal qual o torcedor, visa o máximo controle, a ordem às incertezas, e, assim, podará ao máximo o devenir da partida. Não à toa o positivismo invade o futebol, talvez por um princípio muito mais ontológico do que imaginamos.
Antonio Conte é um positivista como seu xará August Comte, que via na subjetividade um perigo para os estudos das ciências sociais. Para o francês, a estrutura e o pré-ordenamento prevalecem. Dessa forma se tem controle objetivo do mundo.
“Tudo. Ele controla tudo…Ele acredita no time, não acredita em indivíduos. Essa é sua filosofia.” (Cesc Fábregas)
“Todos querem a bola, todos estão fazendo os ângulos corretos que o técnico quer, todos estão fazendo as corridas que ele quer.” (Matt Doherty)
Como disseram Fábregas e Doherty, o italiano quer determinar todas as ações, e, em sua perspectiva holística do time, entende que o macro se sobrepõe a qualquer variável subjetiva. É necessário o controle, o domínio, para que o futebol real não fuja de forma alguma do ideal. Se Conte reduz ao máximo as incertezas, menor a chance do “detalhe definidor”, ou melhor, do acaso superá-lo.
Então, mais uma vez, voltemos a “Veneno Remédio” para compreender a segunda lente explicativa do debate futebolístico. “Pretende-se uma espécie de engenharia futebolística. Atualiza a vocação cientificizante latente nos primórdios, consubstanciada numa das dimensões do jogo, a da codificação que funda o futebol moderno contra as pugnas arcaicas e seu dispêndio improdutivo de energia”, explica Wisnik. Se não é o árbitro, a culpada é a falta de intensidade ou o plano equivocado do treinador. O que vence uma partida é o estudo, a preparação, as boas ideais. Quando o técnico é bem-quisto pelo público, culpados são os jogadores, incapazes de assimilar o plano.
Difundiu-se o positivismo na esfera do discurso, e, conjuntamente, disparou-se o número de “agentes epistêmicos” do futebol, os analistas, estudados e treinados para produzir conhecimento, extrair e divulgar conclusões, reduzindo, assim, as incertezas do público.
Dessa maneira, a tática subiu ao panteão das seguras verdades que explicam e organizam o mundo. E para alcançarmos o maior rendimento, devemos copiar o modelo europeu. Intrínseca ao positivismo, a ideia de unidade, evidentemente, também invadiu a percepção futebolística. Existe um auge conjunto que precisamos atingir, e ele está na Europa. Por meio do avanço e do progresso, negando a diversidade e as especificidades culturais, afinal, eles estão muito à frente de nós, chegaremos lá. Estamos atrasados. Ouve-se hoje, vindo de figuras relevantes da mídia esportiva, frases como “Não há treinador nascido no Brasil capaz de treinar a seleção”. Partindo da lógica desenvolvimentista, o discurso acaba caindo em determinismos quase que darwinistas. Entende-se como um papel moral do subdesenvolvido aceitar e clamar pela ajuda da sociedade mais “evoluída”, pegando pela mão a sociedade menos “evoluída” e levando-a ao desenvolvimento. Como já percebia Nelson Rodrigues décadas atrás, “o brasileiro é o narciso às avessas, que cospe na própria imagem”, com uma imensa dificuldade de perceber os próprios processos e valores.
“Com Ancelotti é a liberdade. Ele te permite interpretar à tua maneira.”, (Thiago Alcantara)
“Cristiano Ronaldo tem que ter a liberdade para fazer o que o seu instinto manda. A mudança de posições entre os atacantes é boa, faz o nosso ataque ser imprevisível.” (Carlo Ancelotti)
Há, porém, quem compreenda o caos do jogo e busque não o inibir, mas usá-lo a seu favor. O que será que é melhor: meu plano ou o improviso de Luka Modric? É o que me pergunto e o que acredito que se pergunte Carlo Ancelotti, exemplo de treinador que prefere a imprevisibilidade do gênio à predeterminação máxima das ações. As equipes do também italiano enfatizam a agência, ideia que compreende o criativo, o desejo, a subjetiva e complexa individualidade, distante do controle. Carleto quer o craque, pois este condiciona o incerto ao benefício próprio. O comandante do Real Madrid não tem certeza de como, quando ou onde, mas tentará preparar o terreno para que o imprevisto o surpreenda. Percepção historicamente compartilhada pelos treinadores brasileiros, como Zagallo, Telê e Renato Gaúcho, que prezam por uma ordem mais flexível, com ênfase na subjetividade de cada jogador, compondo, assim, de baixo para cima, a estrutura coletiva.
Não é incomum vermos menosprezo por parte do público em relação a Ancelotti e a treinadores brasileiros, ditos como fracos taticamente. Aquilo que impõe um limite à explicação nos perturba, incomoda e leva à negação. E é talvez por isso que o ataque funcional, o relacionismo, o jogo de aproximação, como queira, gere tanta repulsa no meio da análise. Abraçar o imprevisto, aquilo que não se compreende por inteiro, é uma tarefa difícil. Naturalmente os argumentos contrários se direcionam à inexistência de literatura, ou à “abstração” do conceito, pontos que sugerem mais a desconfiança e a incerteza do sujeito do que a inexistência do fenômeno em si.
Fala não, só me explica como/As coisas mais bonitas são as coisas sem explicação/Sempre contente com quem te compreende, ahn/Vem de encontro, nem te conto o quanto eu ‘to quente/E autêntico/Até no meu último plágio, yeah
“Vapor”, Froid