Análise Tática: Como 1907 de Osian Roberts (e Cesc Fábregas)

Osian Roberts e Cesc Fabregas

1. Introdução

O acesso histórico do Como 1907 à Série A Italiana marca o fim de um longo período de vacas magras no clube. Após ser rebaixado da primeira divisão na temporada 2002/2003, última em que o clube figurou na elite italiana, o Como passou por dois processos falimentares. Em 2019, porém, um movimento deu esperanças a seus torcedores; o clube foi comprado pelo Djarum Group, que tem como sócios minoritários os ex-jogadores Cesc Fàbregas e Thierry Henry. Após duas temporadas consecutivas terminando na décima terceira colocação, o Como 1907 foi vice-campeão da Serie B na temporada 2023/2024, o que garantiu ao clube uma na Serie A temporada que vem

Paralelamente ao seu papel como sócio minoritário, Cesc Fàbregas assumiu o cargo de treinador interino do clube em Novembro de 2023, um pouco depois do início da temporada 23/24. No entanto, como não possuia a licença de treinador completa, o ex-jogador não pôde ser efetivado no cargo, o que obrigou o Como a encontrar outra solução. É nesse contexto peculiar que vem ao clube o galês Osian Roberts. Contratado como dirigente, mas tendo exercido o cargo de treinador interino na reta final da temporada, o galês deu sequência ao trabalho de Fàbregas, que permaneceu na comissão técnica do clube.

Taticamente, o Como foi incrivelmente intrigante, especialmente na posse de bola. Com um toque próprio, a abordagem ofensiva de Fàbregas e Roberts continha muitas ideias que se assemelham ao estilo crescente do futebol relacional. Esta análise tática faz um exame aprofundado das táticas ofensivas por trás do sucesso do Como em 2023/24.

2. Visão Geral:

Antes de esmiuçar a parte tática, esta seção fornece uma visão geral estatística do desempenho do time quando com posse de bola. Com 21 partidas no comando, Roberts venceu 12, empatou seis e perdeu três. Nesse período, o Como superou seus rivais com 1.52 xG contra 1.02 xGA por 90 minutos. Da mesma forma, marcaram 1.81 gols enquanto sofreram 1.10 gols por 90 minutos. Essa superioridade continuou com 13.24 chutes a favor e 8.86 chutes contra por 90 minutos.

Seu estilo pode começar a ser ilustrado por algumas métricas ofensivas. A posse média de 52.93% sob o comando do galês indica uma ligeira, mas pouco significativa superioridade. A mesma tendência pode ser observada para passes por 90 minutos.

Revelando mais sobre a equipe, o Como teve uma média de 3.99 passes por posse em comparação com 3.69 dos seus oponentes. Essa métrica é bastante útil para ilustrar a probabilidade de um time manter e controlar a bola. Para referência, o Catanzaro liderou a Serie B com uma posse média de

57.23%, e tiveram uma média de 5.01 passes por posse em comparação com 3.78 dos seus oponentes, da mesma forma, 9.3% dos passes do Catanzaro eram passes longos, enquanto sob o comando de Roberts, o Como teve 11.72% de passes longos, de maneira que os ataques da equipe não eram caracterizados por uma tentativa de reter e controlar a posse, o que dá uma pista sobre o ritmo da equipe.

A regra dos 15 passes de Pep Guardiola refere-se à ideia geral de manter a bola para estabelecer controle e se organizar antes de atacar. Sem uma retenção ou controle significativo, o Como jogava em um ritmo muito natural. Em nível coletivo, não havia pausa significativa ou desejo de desacelerar o jogo e ditar o ritmo. No entanto, eles executavam suas ideias táticas extremamente bem, encontrando organização por meio de princípios e comportamentos estruturais.

3. Players and Shape

O Como utilizou um 4-2-2-2 cujo time titular era muito bem definido. A defesa era formada pelo goleiro Adrian Šemper, o lateral direito Alessio Iovine, os zagueiros Edoardo Goldaniga e Federico Barba, e o lateral esquerdo Marco Sala. Vindos do banco, Cas Odenthal e Nicholas Ioannou eram opções para Barba e Sala, respectivamente. Embora o já veterano de futebol italiano Daniele Baselli fosse uma alternativa, Alessandro Bellemo e Matthias Braunöder formaram a dupla de volantes titular do time durante a temporada. Os brasileiros Gabriel Strefezza, e Lucas da Cunha completavam o meio de campo, e tinham à sua frente os italianos Patrick Cutrone e Alessandro Gabrielloni. Simone Verdi era uma opção como meia avançado, enquanto Nicholas Gioacchini oferecia uma dinâmica diferente no ataque. Ao longo da temporada, foi esse núcleo duro de jogadores que deu vida às ideias táticas de Fàbregas e Roberts

XI Como

No campo, podemos ver os jogadores do Como organizados em 4-2-2-2. À frente dos quatro defensores, os dois volantes se posicionam por trás da primeira pressão do adversário, com os dois meias por dentro do bloco, enquanto os dois atacantes, bem próximos, ficam cerca da última linha defensiva adversária.

Em contraposição ao 4-4-2 tradicional, com meias bem abertos, o 4-2-2-2 de Osiah Roberts propiciava o aparecimento de algumas dinâmicas interessantes, como a proximidade entre seus meias.

No sofascore o mapa de posicionamento médio da equipe do Como na partida contra o Consenza ilustra ainda mais essa dinâmica. A baixa amplitude da equipe no campo ofensivo chama atenção, mas a proximidade mesmo entre os volantes é significante frente ao que vemos mais comumente no futebol atual.

Posições médias Como

Isso pode ser melhor entendido a partir de um panorama dado em entrevista recente por Antonio Gagliardi, auxiliar técnico da Itália campeã da Euro 2020. A estrutura do Como com bola conta com cinco(seis, incluindo o goleiro) jogadores “de perímetro” e cinco relacionais. Ainda que superficial, essa ideia é útil para visualizar a dinâmica geral da equipe.

Os quatro defensores mantêm-se em suas posições, proporcionando uma referência mais fixa para a estrutura. Os meio-campistas mais recuados estão sempre se movendo juntos, e os meias-atacantes têm bastante liberdade em seus movimentos. No ataque, Cutrone desempenha uma função semelhante à de Zirkzee no Bologna, mantendo a profundidade, mas também habilitado a recuar.

Perímetro COMO

Este breve primeiro vídeo oferece uma visão da formação na prática e identifica algumas das dinâmicas citadas, como a largura mínima, a proximidade entre os jogadores e a distinção entre jogadores “de perímetro” e jogadores relacionais, com o Verdi (#90) até baixando para buscar a bola.

Este segundo exemplo foca estritamente em Gabriel Strefezza (#21), talvez o jogador mais relacional da equipe. No vídeo abaixo, ele pode ser visto se deslocando de sua posição inicial. É especialmente curioso como o outro meia-atacante, da Cunha (#33), também se desloca junto com ele.

4. Jogando Perto da Bola

Para além da formação tática inicial, parada, o Como leva a amplitude mínima adiante. A dupla de volantes normalmente se move junta e permanece próxima, geralmente com a bola como principal referência. Os meias-atacantes procuram fazer o mesmo. Na frente, os dois atacantes são mais estáveis em termos de profundidade, mas ainda tendem a permanecer próximos um do outro, ainda com Cutrone recuando muitas vezes.

A proximidade e o movimento orientado pela bola desses jogadores frequentemente resultarão na sua formação se fechando em torno da bola, criando estruturas comumente encontradas em outros times relacionais. O exemplo abaixo ilustra claramente essa unidade de quatro no meio-campo, mantendo-se próximos um do outro e procurando jogar perto da bola.

O vídeo abaixo oferece mais duas oportunidades onde o Como aparece criando essas estruturas. Novamente, os quatro meio-campistas são os que oferecem mais movimento, enquanto os quatro defensores desempenham a função de perímetro. Em ambos os vídeos, também é claro como Cutrone tem mais liberdade para interagir com a construção, enquanto Gabrielloni tende a ser mais fixo.

4.1. Funcionalidade

No geral, em times mais relacionais é comum observarmos os jogadores com muita liberdade de movimento, com muitas trocas de posições ente eles. Contudo esse não é o caso do Como, que funciona de uma maneira mais “entrar e sair”, de forma que no geral os jogadores mantenham suas posições em relação ao restante da equipe. Em vez de criar oportunidades através da desorganização e do caos, eles movem a bola através da estrutura e reagem de acordo com as particularidades de cada jogada. As exceções são, é claro, quando Strefezza ou da Cunha se deslocam mais de suas posições para outros setores do campo.

Essa estrutura pode levar a sobrecargas ao redor da bola, facilitando a progressão através da oposição simplesmente por ter muitas opções. Sobrecargas são uma consequência comum desse sistema, mas geralmente só são bem-sucedidas quando exploradas com rapidez, de forma a evitar que as defesas tenham tempo para fechar os espaços

O Como se utiliza dessas estruturas como um catalisador de combinações que fazem com que o time avance em campo. Com jogadores mais próximos uns dos outros, há mais possibilidades de combinações de passes, e em um ritmo acelerado, essas podem ser extremamente perigosas.

Com tantos jogadores ao redor da bola, essas estruturas podem facilitar substancialmente o pós-perda da equipe, que por óbvio contará com mais jogadores para pressionar o adversário. O vídeo abaixo mostra duas ocasiões em que o Como perde a bola, e com a vantagem de ter muitos jogadores próximos, consegue recuperá-la rapidamente

Apesar de ocorrerem em todos os setores, os as corridas em profundidade têm mais importância no último terço do campo, onde os jogadores atacam as costas da última linha de defesa do adversário, obrigando-o a baixar em campo, o que consequentemente gera espaço para o resto da equipe. Com isso, combinações se tornam mais frequentes, especialmente com movimentos complementares(apoio e ruptura, sair e aparecer). Todas essas ações servem para desorganizar o oponente e criar oportunidades para a progressão em campo. Novamente, essas se tornam mais relevantes no terço final, embora ainda possam aparecer em outros lugares.

É importante observar que jogadores como Cutrone, da Cunha e Strefezza são jogadores extremamente técnicos e criativos. Essas estruturas promovem que eles joguem juntos e, em algumas situações, a genialidade e criatividade individual deles são suficientes para criar oportunidades.

4.2. Escadinhas

Intencionais ou não, as “escadinhas” são um tema relevante na posse de bola do Como. Novamente encontradas em times relacionais, essas são instâncias onde geralmente três jogadores formarão uma linha vertical ou diagonal. A formação do Como (4-2-2-2) e as dinâmicas (jogadores próximos da bola) tendem a criar natural e frequentemente essas estruturas em todo o campo, e elas podem ser um recurso para progredir.

Quanto a quem as cria, as opções são infinitas. Nos exemplos que observaremos, elas surgem como LD-AT-AT, VOL-MEIA-AT, ZAG-AT-AT, LD-MEIA-AT, ou MEIA-AT-AT. No entanto, elas aparecem tão naturalmente que podem envolver qualquer combinação de jogadores. Elas são usadas tanto como corta-luz (finta) e/ou virada e passe. No exemplo abaixo, essas linhas verticais e diagonais podem ser vistas surgindo ao longo de seu ataque.

No próximo exemplo, a escadinha é criada através do lateral (com a bola), o primeiro atacante (fazendo corta-luz), e o segundo atacante (recebendo). Embora a execução falhe, a ideia está lá. É também um exemplo para mostrar mais uma vez como a proximidade entre eles os ajuda a reagir bem após perder a bola.

Embora sem sucesso, esses outros dois exemplos mostram como eles tendem a criar e usar esse recurso. Como mencionado no início, os comandados de Roberts não necessariamente preferem reter a bola ou controla-la, estando muito confortáveis em atacar rápida e agressivamente. Essa seção mergulha nessa verve para reforçar algumas ideias e a forma como a estrutura interage com elas.

5. Agressividade

Talvez influenciando suas métricas de posse de bola, o Biancoblù pode ser costuma ser muito agressivo ao atacar. Como dito no início desse texto, os comandados de Roberts se sentem muito confortáveis para atacar rápido, deixando um pouco de lado a retenção e o controle da bola. Essa seção busca explicar um pouco dessa verve, e como ela se relaciona com a estrutura da equipe.

5.1. Sequências Verticais

O ataque do Como progride em campo através de combinações de passes rápidos e verticais, que são amplamente propiciados pela formação e pela dinâmica da equipe. Como observado anteriormente, as distâncias curtas entres os jogadores podem oferecer mais possibilidades de combinações, e as diferentes alturas nas quais os jogadores se encontram potencializa o aspecto vertical dessas sequências.

4-2-2-2 Alturas

Essa verticalidade é mais relevante nos dois primeiros terços do campo, embora haja diversos exemplos dela influenciando determinantemente as ações no último terço. O exemplo abaixo mostras dois desses movimentos; a primeira ajuda a recuar ligeiramente o adversário e manter a circulação da bola, e a segunda os ajuda a penetrar no terço final.

Em outro exemplo, o potencial para ataques verticais trazido pela formação é perfeitamente explorado na primeira fase de posse de bola e os ajuda a penetrar no terço final para criar uma chance.

Agora no segundo terço, esta sequência é realizada pelo lateral esquerdo, o meia-atacante (que se desloca para a lateral) e o primeiro atacante. O lateral esquerdo faz uma corrida invertida para criar o terceiro homem antes de encontrar o segundo atacante diretamente no terço final. Uma sequência vertical em alto ritmo os leva do meio para o terço final, e eles fazem um excelente trabalho ao chegar na área com cinco jogadores.

Finalmente, na criação de um gol, o zagueiro encontra o meia-atacante, que imediatamente se vira e encontra o atacante no terço final, quase por meio de uma escadinha. O atacante encontra seu companheiro na área para finalizar num lindo gol.

5.2. Corridas para Frente

Os jogadores do Como estão sempre orientados a realizar movimentos de ruptura e de ataque a última linha. O que, apesar de ser uma ideia simples, acaba sendo de enorme relevância para o jogo ofensivo da equipe.

A largura mínima de sua formação potencializa as corridas dos canais internos para as áreas amplas. Estas frequentemente serão feitas pelo meia-atacante quando o lateral tem a posse de bola, como visto nos três exemplos abaixo.

Embora essa seja a dinâmica mais comum, não é a única maneira. Essa ideia serve como um princípio geral em seus ataques, influenciando as decisões dos jogadores e criando um ambiente de ataque agressivo.

6. Jogo Direto

6.1. Para os Atacantes

O Como também foi bem-sucedido em seus ataques diretos, levando sua verticalidade mais ao pé da letra. Seja a partir de tiros de meta, na construção do jogo ou no terço final, eles se sentem confortáveis em jogar uma bola longa para seus dois atacantes. A formação é ótima em apoiar essas bolas longas, já que com duas unidades de meio-campo se aproximando na frente dos atacantes, eles são mais capazes de ganhar as segundas bolas e combinar para frente.

Cutrone e Gabrielloni têm se saído excelentemente recebendo esses lançamentos, trabalhando extremamente bem um com o outro. Mantendo-se próximos um do outro, eles estão sempre “prontos” para serem a opção de jogo direto. Enquanto um sobe para o duelo aéreo, o outro busca ganhar a segunda bola. Este segundo atacante irá ou atrás para o desvio ou na frente para o toque para trás. Isso se mostrou de muita utilidade para o Como chegar ao terço final ou até mesmo criar chances.

6.2. Corridas e Segundas Bolas

Com duas linhas de meio-campo se aproximando na frente dos atacantes, o Biancoblù geralmente está em uma boa posição para ganhar a segunda bola. No primeiro exemplo abaixo, enquanto Gabrielloni sobe para a disputa, há três jogadores se aproximando dele prontos para garantir a segunda bola. O segundo exemplo é muito mais confuso, mas destaca a capacidade deles de apoiar esses lançamentos longos com muitos jogadores, encontrando uma maneira de sair com a bola.

Com os jogadores vindo de trás, eles conseguem imediatamente apoiar a segunda bola com corridas e combinações. Nos três exemplos abaixo, eles rapidamente conseguem opções ao redor da bola e transformam o lançamento longo em ataques sustentados no terço final.

6.3. Bolsões Externos

Como explorado com as corridas para frente, sua formação naturalmente cria bolsões externos para os jogadores avançados fazerem corridas. Isso também se aplica ao seu jogo direto, com os atacantes e meias-atacantes frequentemente fazendo corridas para esses bolsões. Esses passes longos são facilmente apoiados pelo lateral, volante e meia-atacante, se o atacante for o alvo.

Bolsões laterais

7. Conclusão

O Como garantiu uma promoção histórica de volta à Serie A após 21 anos de lutas. Sua temporada foi marcada por uma situação incomum com os treinadores, mas o Biancoblù obteve consistência na segunda metade da temporada. Taticamente, Fàbregas e Roberts introduziram uma abordagem agressiva com dinâmicas interessantes. Será curioso ver como este projeto continuará na primeira divisão Italiana na próxima temporada.

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