Acima da entrada da academia de Platão havia uma mensagem inscrita em pedra – “Quem não é geômetra, não entre!”
“O nosso futebol, com a sua criatividade e alegria, é uma expressão da nossa formação social, da nossa revolta contra o excesso de ordem interna e externa, contra os excessos de uniformidade, de geometrização, de estandardização, e os totalitarismos que fazem pela variedade individual ou pela espontaneidade pessoal”
– Sócrates
“Enquanto o futebol europeu é uma expressão apolínea do método científico, em que a pessoa humana é mecanizada e subordinada ao todo, o futebol brasileiro é uma forma de dança, em que a pessoa humana se destaca e brilha”
– Gilberto Freyre
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PRÓLOGO
O ano é 2022. O futebol mundial está sob a tutela da FIFA, a partir da sua sede em Zurique, na Suíça. Apoiadas por patrocínios empresariais, cinco ligas europeias superam todas as outras em popularidade e riqueza, restando às nações não europeias lutar pelos restos.
Esta centralização do poder reflete-se em campo: os sistemas posicionais europeus dominam uma paisagem cada vez mais estreita de estilos de jogo, com os jogadores condicionados a aderir às exigências rigorosas da elite de treinadores ocidentais. Independentemente de suas culturas e origens, os jovens futebolistas de todo o mundo são obrigados a conformar-se com as regras destes sistemas, sob risco de exclusão dos mais altos níveis de competição.
Estes sistemas são autossuficientes, a maximização da sua própria funcionalidade e eficiência tem prioridade em detrimento de quaisquer noções românticas de conexão humana ou criatividade. O desejo é aproveitado como combustível para o sistema, os seres humanos são as baterias que alimentam a máquina; o espírito é apenas mais um recurso a ser extraído.
Nesta altura, é mais fácil imaginar o fim do futebol do que o fim dos sistemas posicionais de jogo. Não há alternativa, é o lento cancelamento do futuro, o fim da história dado pela ocupação racional do espaço.
Mas há algo acontecendo no Rio de Janeiro. Ouvem-se sussurros de um estilo novo e corajoso que rejeita as imposições dos conquistadores sistemas europeus, um estilo que procura ressuscitar o que antes se pensava estar perdido, que busca convocar um espírito do passado e revivê-lo com um sopro do agora.
Fernando Diniz é o treinador do Fluminense; o futuro do futebol está em jogo…
ANÁLISE DA MÁQUINA
A Máquina é tudo no mesmo lugar ao mesmo tempo…A Máquina é abstração…A Máquina é definição…A Máquina é quantidade…A Máquina é lógica…A Máquina é repetição…A Máquina é estandardização…A Máquina é aquele casamento de conto de fadas de 20 mil dólares que vai ser tão diferente de todos os outros. A Máquina é a fábrica… A Máquina é a sala de aula… A Máquina é a medição… A Máquina é o mapa… A Máquina é a planta… A Máquina é o número… A Máquina é o procedimento… A Máquina é a automatização… A Máquina é aquele emprego de sonho com que te iludes e que te vai fazer feliz, quando tudo o que faz é amolecer-te os ossos e esmagar-te o coração. A Máquina é a geometria… A Máquina é o cálculo… A Máquina é a racionalidade… A Máquina é a contabilidade… A Máquina é o capital… A Máquina é o consumismo… A Máquina é a entrega no dia seguinte… A Máquina é a dívida… A Máquina é verificar a aplicação do seu banco móvel a cada 5 minutos até que o seu salário mínimo deduzido dos impostos finalmente chegue. A Máquina é o Complexo Industrial Militar… A Máquina é a Epidemia de Opioides… A Máquina é a Bomba Atómica… A Máquina é o Canal do Suez… A Máquina é a Companhia Holandesa das Índias Orientais… A Máquina é a Extração de Recursos… A Máquina é a eficiência… A Máquina é a produtividade… A Máquina é a vigilância… A Máquina é sermos bombardeados sobre como somos livres enquanto tudo em nós é moldado para se conformar aos requisitos do sistema.
A Máquina não é a tecnologia em si; isto não se trata de um protesto “contra a tecnologia”. A Máquina em questão não é nada senão um tipo particular de utilização tecnológica – é um posicionamento distinto dentro do campo da tecnologia, um sabor particular de técnica. É a prioridade da estandardização, da automação e da repetição, um achatamento da criatividade humana através de processos mecanizados concebidos para beneficiar e servir uma entidade externa não-humana.
…NOTICIÁRIO… SINTONIZE PARA UMA “MASTERCLASS” DO TREINADOR!…
Josep ‘Pep’ Guardiola: “As táticas são colocadas em campo para os ajudar (os jogadores) a exprimir o seu talento com maior frequência (…) Utilizo as táticas para criar alguns padrões para que todos possam estar mais confortáveis, possam ter mais tempo e exprimir o seu talento tanto quanto possível (..). Com a bola, se conseguir criar alguns padrões, por exemplo, se chegarem 20 bolas à área para os nossos avançados terem mais oportunidades de marcar um golo, isso é tática (…) Não acredito que a tática seja fazer o que se quer, porque depois é um pouco o caos e, no caos, não se sabe exatamente o que vai acontecer. “
Thomas Tuchel: “Penso que a minha função é criar oportunidades e criar uma estrutura que nos permita criar oportunidades.”
Cesc Fàbregas sobre Antonio Conte: “Foi como ir para a escola. Conte nos diz exatamente como quer que seja do goleiro até marcarmos um gol, o que temos de fazer, exatamente tudo.”
POSICIONALISMO
O termo “Positional Play” surgiu há já algum tempo. Foi anunciado como uma tradução inglesa do espanhol “Juego de Posicion”. Este método misterioso era, aparentemente, a magia secreta por trás do geracional Barcelona de Pep Guardiola de 2008-2011, um sistema alucinante de regras e diagramas lógicos que orientavam as ações dos jogadores em campo –- nunca mais de 2 posicionados em linha vertical, um máximo de 3 na horizontal, quando ele vai para ali, vai para aqui, quando a bola está aqui, você está ali.
O campo é reinterpretado como uma grade, uma planta esquemática compartimentada num conjunto vertiginoso de corredores retangulares e gabinetes. As divisórias foram concebidas para manter os jogadores distantes. As distâncias e o espaçamento entre os jogadores são fundamentais no Jogo Posicional, não se aproximem demais, a ocupação do espaço deve ser racional, não percebem? Eu disse RACIONAL, porra! Racional de acordo com o plano! Está tudo aqui no plano, não estão vendo? É só seguir o plano e nada vai correr mal. Agora parem de conversa e voltem para suas mesas!
O jogo posicional é um modo maquínico de futebol em que o sistema governa com mão-de-ferro. Tal como os Faraós do Antigo Egito, que tinham acesso exclusivo à vontade divina dos Deuses, os treinadores do Posicionalismo apelam à autoridade do sistema para justificar a sua abordagem. O sistema exige que se toque aqui, não ali — as probabilidades são maiores, a criação de oportunidades é mais eficiente. É preciso estar parado e esperar aqui, sozinho sem a bola, para fixar esses defensores. Não é uma escolha minha, rapazes, é apenas um fato, é o que a lógica do sistema exige.
E, tal como os antigos Deuses-Reis, o Posicionalista implementa padrões de estandardização e repetição para garantir que os protocolos são cumpridos e as estruturas são mantidas, os automatismos e os padrões pré-escritos são obedientemente executados pelos humildes trabalhadores. Os triângulos construídos no gramado podem não ser feitos de pedra do deserto, mas essas formas geométricas retilíneas meticulosamente calculadas de carne e sangue humanos são, no entanto, monumentos aos desejos de imortalidade do seu líder.
ORIGENS DA GINGA
Foi por meio de um processo histórico bem documentado que o futebol chegou ao Brasil vindo da Europa. Os europeus colonizadores já extraíam recursos do solo fértil do Brasil há séculos e, no início do verão de 1894, quando o inglês Charles Miller voltou de seus estudos em Southampton armado com uma bola de futebol e conhecendo as regras da Association Football, a exploração sistemática do continente já estava em andamento.
Desde a “descoberta” dessa terra estrangeira, a ânsia raivosa do Velho Mundo de consumir produtos exóticos, como o açúcar e o café, tinha alimentado a máquina para acelerar e maximizar a produção. Terríveis frotas de navios negreiros atravessaram o Atlântico vindos da África e, juntamente com pelotões de cativos indígenas, a sua carga humana foi posta a trabalhar arduamente nos campos intermináveis de vastas plantações de calor abrasador — a humanidade é secundária perante a autoridade inquestionável da Máquina.
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O acadêmico brasileiro Luiz Uehara identifica a “ginga” como originária da capoeira, uma prática que o antropólogo Greg Downey descreve como “um jogo acrobático, dançado ao som de uma música vocal e instrumental distinta. Derivado das danças de desafio africanas e moldado pela escravatura, gangues urbanas e pela repressão oficial ao longo do século XIX e início do século XX no Brasil (…) uma forma de arte marcial brasileira que se baseia na oscilação como movimento chave para ultrapassar o adversário.”
No seu livro de 2006, The Ball Is Round, David Goldblatt cita o sociólogo e escritor brasileiro Gilberto Freyre como o pioneiro da ginga colocada num contexto futebolístico – “…Os nossos passes…os nossos truques…esse algo que tem a ver com a dança, com a capoeira, marcam o estilo brasileiro de futebol, que arredonda e adoça o jogo que os ingleses inventaram, o jogo que eles e outros europeus jogam de forma tão aguda e angulosa”.
O mítico estilo brasileiro encarnado pelos grandes jogadores e equipas dos anos 50, 60, 70 e 80 incorporava a ideia de ginga, fazendo um jogo colorido pelo movimento constante com fluxos fluidos, espontâneos e disfarçados tanto nas ações individuais como nas interações entre colegas de equipe –- uma engenhosa dança rítmica de escravos apropriada para o confronto esportivo. Contrastava fortemente com o jogo “agudo e angular” dos europeus — um antídoto inebriante para os limites estáticos do Posicionalismo inicial.
A perpétua novidade destas perspectivas inter-jogadores em constante mudança, trazida pela ginga, proporcionou uma criatividade e uma arte que, durante décadas, foi capaz de confundir e provocar um curto-circuito nos sistemas e estruturas previsivelmente maquinais de tantos adversários do Norte.
Mas a máquina não para.
…NOTICIÁRIO…O BRASIL DE TELE SANTANA PERDE PARA A ITÁLIA NA COPA DO MUNDO DE 1982!…
“Foi o dia em que morreu uma certa ingenuidade no futebol: foi o dia em que deixou de ser possível escolher simplesmente os melhores jogadores e deixá-los trabalhar: foi o dia em que o sistema venceu”.
– Jonathan Wilson, A Pirâmide Invertida
FERNANDO DINIZ CONTRA O HOMEM-MÁQUINA
“Na minha concepção de viver a vida, prefiro que a vida seja mais arte do que ciência. O que é artístico marca para sempre, mexe com as pessoas”
“Os meus maiores mestres deram-me muita liberdade e isso é diferente daquilo a que os jogadores estão habituados… Tento promover um ambiente em que possamos criar coisas coletivamente, todos dão a sua opinião para que se sintam parte daquilo, é muito vivo, muito orgânico”
– Fernando Diniz
“É um homem que te levanta quando você erro… Te faz sentir à vontade e te levanta apesar das vaias e dos palavrões da torcida. Está sempre presente… Diniz é, sem dúvida, um dos melhores treinadores com quem já trabalhei.”
-Antony
Há um número infinito de maneiras de ver e entender o mundo. Mas quando uma visão do mundo alcança tal domínio que todas as outras passam para segundo plano, aproximamo-nos do que é conhecido como um ponto de singularidade. Todas as alternativas foram canceladas.
Vivemos atualmente no limiar de um tal acontecimento. O enquadramento maquínico do mundo ameaça envolver tudo e todos no seu caminho. Mas ainda não, nas margens, os ventos suaves da revolução estão começando a voar, fala-se em voz baixa de um homem que se diz possuir uma força interior, uma rara capacidade de resistir à invasão da Máquina. O nome desse homem é Fernando Diniz.
Um de nove irmãos, Diniz cresceu e teve uma carreira de sucesso como meio-campista em clubes brasileiros de primeira linha, como Palmeiras, Corinthians, Fluminense e Flamengo. Depois de se aposentar aos 34 anos, Diniz passou a ser treinador de vários clubes da primeira divisão, mas só quando chegou ao Audax SP é que o estilo de jogo único de seus times começou a ser notado por um público mais vasto.
Em 2016 (durante sua segunda passagem pelo Audax), ele levou o pequeno clube à final do Campeonato Paulista, onde perdeu para o Santos. Mas a abordagem pouco ortodoxa de Diniz fez com que os especialistas começassem a fazer comparações com o jogo de posse de bola “Tiki-Taka” do Barcelona de Guardiola – uma comparação que persiste até hoje, quando encontramos Diniz no comando de um Fluminense jogando um dos futebol mais emocionantes que o Brasil já viu desde o grande time de Telê Santana em 1982 e os últimos dias de ginga.
Mas é precisamente nesta confusão que se revela a verdadeira distinção entre o método de Diniz e o Posicionalismo altamente sofisticado de Guardiola. “A equipe dele é absolutamente posicional”, diz Diniz sobre o estilo de Guardiola, “é um jogo em que os jogadores mantêm as suas posições nas faixas do campo que ocupam e o jogo chega até eles… a minha equipe é totalmente diferente, mudamos muito de posição… tentamos aplicar um jogo dinâmico, é uma participação coletiva diferente”.
Em contrapartida, quando questionado sobre a importância da movimentação dos seus jogadores do Manchester City, Guardiola deixou bem claro que a percepção do repórter estava errada. “Cada um tem de estar na sua posição, quando se mexe muito não é bom… a bola chega onde nós estamos, não vamos buscar a bola. É completamente diferente”.
As maquinações sistêmicas do Posicionalismo ditam onde os jogadores devem estar. Têm de estar nas suas posições. Podem mudar e rodar, mas apenas entre estes locais situacionais pré-alocados. Se a bola está aqui, você está aqui. Os jogadores humanos não interpretam o espaço, mas aprendem a localizar-se dentro de uma conceitualização generalizada do espaço já definida. A máquina já pensou por si – os jogadores são engrenagens do homem-máquina.
O sistema de Diniz é diferente. Continua a ser um sistema, mas não é da Máquina. É um sistema de maior elegância e complexidade do que o Posicionalismo, uma vez que foi concebido para dar prioridade a momentos localizados de criatividade entre os jogadores, dando-lhes liberdade para interpretarem o espaço tal como o interpretam no momento. Rejeita a estabilidade da ocupação “racional” do espaço e procura maximizar os momentos em que os jogadores podem se reunir em pequenas áreas para criar padrões imprevisíveis e novas relações de colaboração. Proximidade e movimento em vez de Posição e espaço.
Para o olho maquínico, a estrutura racional da equipa de Diniz parece estar longe do equilíbrio – a equipe está desequilibrada! É instável, idiota! Mas imaginem um capoeirista balançando e se apoiando tanto num pé só, com o corpo torcido, que qualquer participante não treinado perderia imediatamente o equilíbrio e cairia deitado no chão – agora imaginem que este é o momento em que a novidade emerge e a vantagem crítica é criada.
JOGO DE PROXIMIDADE
“Nossa história não é sobre espaço, mas sobre jogadores”
– Gabriel Dudziak, comentarista de futebol brasileiro
Ao rejeitar a definição maquínica do espaço como uma terra estéril e plana à espera de ser passivamente povoada, podemos começar a ver o verde do campo de futebol como um local de encontro para os jogadores colaborarem e criarem novos padrões e mundos; podemos escapar às grades prisionais do Posicionalismo. Existe um caminho alternativo à geometria linear da neurose posicional da Europa.
Apesar da sua expansão sempre acelerada, A Máquina ainda não consegue dar conta da comunicação humana ao mais subtil dos níveis, a leitura dos olhos uns dos outros, o conhecimento intuitivo dos conceitos mais profundos uns dos outros. É por isso que o Jogo de Proximidade, aparentemente caótico, permanece fora dos limites do Posicionalismo – a Máquina não pode computar os potenciais de tais interações e arranjos, uma vez que ainda não processou e reproduziu os aspectos mais complexos da experiência humana.
A hora é cada vez mais tardia para ultrapassar o Posicionalismo e entrar num novo paradigma. E é através dos métodos de treinadores como Diniz que podemos ver uma brecha na armadura da Máquina. Para que o jogo evolua para uma linha de tempo mais artística, dinâmica e humana, o locus da responsabilidade criativa tem de ser devolvido ao poder interpretativo dos jogadores, em vez de ficar fechado na posse de treinadores-sacerdotes da doutrina dos sistemas posicionais.
Nenhum sistema de futebol é TOTAL.
A partida entre Mirassol e Sampaio Corrêa configurou-se como um embate entre as tentativas de saída curta da equipe paulista vs. a pressão alta do conjunto maranhense. Dado tal cenário, destacável atuação de Paulo Henrique, zagueiro canhoto do Mirassol.
Coordenando as saídas paulistas, Paulo demonstrou sua impressionante compostura sob pressão. Sempre calmo quando constrangido e de bom pé esquerdo, o atleta deu lucidez às saídas com seu ótimo senso posicional para lidar com a pressão adversária. Trabalha muito bem com a sola do pé para “pisar para atrair” ao mesmo tempo que compreende quando necessita conduzir com o mesmo propósito.
Além disso, é dono de ótima precisão para bolas longas, sobretudo virando o jogo para o perfil direito, oposto ao seu lado preferencial. Considerando seu perfil longilíneo – é magro, alto e de membros longos –, tem uma bela relação com a bola, sendo inclusive ágil ao manipular ela – nesse sentido, recorda o zagueiro Nino, do Fluminense.
Sem a bola, apesar de pouco exigido na defesa de área na partida analisada, foi bem nos embates individuais contra Frazão, camisa nove adversário. A ressalva reside em alguns erros técnicos em rebatidas quando correndo para trás, que podem ser tanto fruto de desconcentração quanto de falta de força no contato com a bola, resultado de demora na mudança de perfilamento corporal para rebater.
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