O Nome da Rosa

Diniz e Ancelotti

O rumo escolhido pela CBF para a próxima Copa é heterodoxo, mas rico em possibilidades. A sua potência está precisamente numa combinação de “linhas tortas”, que podem gerar um contexto único para reinterpretar o nosso jogo. Saímos do pensamento linear com os seus roteiros traçados e rigidamente demarcados, e embarcamos numa aventura ao desconhecido.

O ESTILO DE DINIZ

Recentemente, uma fala interessante de Renato Gaúcho passou despercebida. Ele fez a seguinte comparação do seu estilo com Diniz: “Temos ideias parecidas. Só não arrisco como ele arrisca. É suicídio. Ele arrisca com goleiro e zagueiro na área” . 

De fato, alguns poucos treinadores brasileiros como Diniz, Renato e Dorival são herdeiros da cultura brasileira, que – na organização ofensiva – buscava uma ordem negociada, flexível, menos baseada no espaço em que me encontro, e mais no movimento que realizo em relação a bola e ao meu companheiro . Os três venceram com Fluminense, Grêmio e Flamengo adaptando a organização ofensiva do “jogo bonito” às demandas do futebol contemporâneo. Contudo, há uma faceta em que Diniz viajou mais profundo e onde se encontra a rejeição de Renato: a saída de bola.

Com os jogadores preenchendo mais rápido cada palmo de campo e com a melhora da defesa em cobrir espaços, não se pode mais jogar de área a área como numa posse do basquete, onde se organiza e se cria jogadas perto da cesta defendida pelo adversário. É preciso saber jogar e se organizar ofensivamente desde o primeiro passe do goleiro. Construir por todo o campo. A famosa e tão incompreendida “saidinha” do Diniz é uma maneira inovadora de adaptar as características do futebol brasileiro não só a organização ofensiva no terço final do campo, mas desde a saída de bola do goleiro. 

Quase todos os times saem jogando curto desde o goleiro, poucos saem sempre na bola longa. A maioria dos times repetem os mesmos padrões de saída de bola para superar a pressão adversária. Contudo, Diniz arquitetou uma maneira de sair jogando desde o goleiro com mais aproximações e possibilidades. Os jogadores não se aproximam perto da bola apenas no terço final do campo, mas fazem isso desde a saída de bola, deixando a possibilidade de inversão de lado para um jogador. Ao contrário da maioria dos times, Diniz não pede apenas o toque rápido e de primeira, mas usa conduções e dribles para superar o pressing rival. A “saidinha” de Diniz produz infinitamente mais gols do que sofre em erros esporádicos. Ele foi muito adiante de qualquer outro treinador brasileiro nessa adaptação.

OS RESULTADOS DE DINIZ

O debate futebolístico brasileiro sempre esteve entre o imobilismo (rejeição total das novas demandas) e a mera imitação (apenas copiar o que dá certo no exterior). Antes do 7 a 1, havia predomínio do imobilismo. Depois, hegemonia da mera imitação. Diniz não é mera imitação e nem imobilismo, mas antropofagia, ou seja, inovação de fora para dentro.

Quase sempre assumindo times de passado grande e com presente pobre, sem dinheiro para contratações, Diniz foi o técnico mais polêmico e criticado nos últimos dez anos justamente por estar entre esses dois mundos do imobilismo e da mera imitação.

Com um São Paulo afundado em dívidas, Diniz brigou pelo título brasileiro com um quarteto ofensivo formado por Igor Gomes, Sara, Luciano e Brenner, e sem opções no banco de reservas. Diniz deu ao São Paulo a sua melhor classificação no Brasileiro (4º lugar) desde o rico time de 2014 com Kaká, Ganso, Pato e Luís Fabiano. Depois da sua saída, o São Paulo (com melhores reforços) foi apenas 13º e 9º nos anos seguintes.

No Fluminense, ocorre a mesma coisa. O glorioso time carioca não está nem entre os oito times de maior investimento no país. Não chega perto, por exemplo, do investimento do Red Bull Bragantino. Sem grandes receitas, o Flu opta por jogadores mais velhos e desvalorizados no mercado (Fábio, Felipe Melo, Samuel Xavier, Cano, Marcelo, Ganso, etc.), unindo-os com jogadores mais jovens. A partir desas mescla, Diniz montou um time com o futebol mais atrativo do continente por meses. Todavia, a média de idade do time é altíssima, e as reposições não são do mesmo nível. O normal nesse contexto é que o time oscile a partir dos problemas físicos e que a diferença de qualidade individual para outros times mais ricos apareça.

Diniz é condenado por fazer um time que não está entre os oito de maior investimento terminar em 3º no Brasileirão 2022 e não em 1º lugar. Diniz é criticado por fazer um time de investimento médio jogar um futebol muito acima da media de talento do seu grupo de jogadores e depois oscilar. Cobram Diniz como se ele estivesse treinado um City ou um Real Madrid, um Flamengo ou um Palmeiras, quando ele está sempre assumindo times de passado grande com presente de carestia.

DINIZ NA SELEÇÃO

A pior bússola para a escolha de um técnico de seleção é o número de títulos. As Copas desmentem isso todo o tempo. Vejamos os últimos 3 campeões:

Low: 1 campeonato austríaco, 2 copas nacionais.

Deschamps: 1 campeonato francês, 1 série B italiana, várias copas nacionais.

Scaloni: 0 títulos, nenhuma experiência.

Enquanto isso, técnicos que venceram Champions ou um mundial como Luis Enrique, Flick, Van Gaal e Tite não chegaram tão longe.

O que há de comum entre os três últimos campeões da Copa? Eles souberam reinserir a cultura futebolística do país com as demandas do futebol contemporâneo. Low manteve a verticalidade e a fisicalidade do jogo alemão, mas os adaptou com alguns elementos do jogo de posição. Deschamps manteve a tradição do jogo funcional mediterrâneo, que sempre imperou na seleção francesa, e criou um 4231 torto que se transformava em 4312 com Matuidi de falso-ponta pela esquerda. Na França dos anos 80, recuava-se para depois pensar o jogo com os geniais Tigana, Giresse e Plaini, e usar os rápidos Rocheteau e Papin. Na França de Deschamps, o time recuava, entregava a posse para Pogba, Matuidi e Griezmann criarem, com Mbappé correndo, driblando e definindo, e o útil Giroud como pivô. Igualmente, Scaloni adaptou o estilo argentine às demandas contemporâneas, buscando resgatar a ideia de losango no meio-campo, a posse mais pausada e técnica, a movimentação inventiva, e o toco y me voy.

Diniz traçou o mesmo caminho dos últimos três campeões: a inovação a partir da adaptação do futebol brasileiro às demandas do futebol contemporâneo.

AFINIDADES ELETIVAS ENTRE DINIZ E ANCELOTTI

No Brasil, há uma dicotomia burra e que já não faz tanto sentido entre técnicos que seriam “ofensivos” ou “defensivos”. Hoje, todas as boas equipes atacam e defendem com e sem a bola. O rótulo de “defensivo” foi colado em Ancelotti, mas não faz o menor sentido. O Real Madrid de Ancelotti defende em bloco alto, médio ou baixo dependendo das circunstâncias e da estratégia. Ele sabe pressionar o adversário desde a saída ou recuar em alguns momentos para aproveitar a velocidade de Vinicius Júnior.

É verdade que os times de Diniz costumam defender em bloco mais alto por mais tempo do que os de Ancelotti, ou que também costuma ter um pouco mais a posse de bola em jogos grandes. Contudo, algumas diferenças não podem apagar as inúmeras afinidades entre os dois.

Para começar, temos a filosofia de vida espelhada no jogo. Diniz sempre reivindica que o seu estilo nasce do jogador com o seu talento e trabalho, que as relações socioafetivas no campo são mais importantes do que a mera repetição de um padrão posicional. Ancelotti pensa semelhante. Para o italiano, o futebol é simples: Colocar cada jogador na situação em que se sente mais confortável, criar uma grande empatia entre eles, e deixar ocorrer. Os times de Ancelotti também não são fanáticos por rígidos padrões posicionais.

A partir dessa filosofia, Diniz busca escalar sempre os melhores jogadores sem se importar com a ideia de posição. O extraordinário André pode jogar de zagueiro, um atacante pode ser adaptado na lateral, etc. Ancelotti já faz isso de longa data. Para não ter Pirlo no banco para meias e atacantes talentosos como Rui Costa e Shevchenko, transformou-o em ‘regista’. Recentemente, colocou Camavinga de lateral-esquerdo para não deixar o talentoso francês no banco com um jogador inferior no time titular. Ambos buscam jogadores de futebol, que possam aportar talento ao time, e que saibam dialogar com os outros talentosos. O espaço em campo se adapta pelo movimento.

Por fim, tanto Diniz quanto Ancelotti são tributários de uma organização ofensiva que se tornou contra-hegemônica. No Fluminense, Arias abandona a ponta-direita e atravessa o campo para dialogar com Ganso, Keno, André, Alexsander, Marcelo, etc. Os jogadores se aproximam no setor da bola, passam a bola e vão adiante para receber de volta. O time avança em campo pelos deslocamentos e tabelas. No Real Madrid, Rodrygo abandona a ponta-direita e atravessa o campo para dialogar com Karim, Vini, Modric, etc. O importante é construir essas sociedades em campo, saber se movimentar, estar solto para criar, sabendo esvaziar e preencher espaços ao invés de fixá-los. A organização ofensiva do Real Madrid ou do Milan do 4321 (sem pontas) e de tantos outros times do Ancelotti guarda semelhanças com o que faz Diniz com o seu “futebol aposicional”.

Ataque Funcional Real Madrid

ANCELOTTI & DINIZ

Sabe-se que a intenção da CBF é que Diniz seja interino até a chegada de Ancelotti e que depois se torne membro da sua comissão técnica, quem sabe se preparando para o ciclo da Copa de 2030. É difícil especular o futuro.

A seleção brasileira pode arrebentar nas mãos de Diniz e Ancelotti jamais chegar.

A seleção pode arrebentar e Ancelotti chegar. Diniz pode ficar na comissão ou sair.

A seleção pode oscilar e a chegada de Ancelotti dar mais maturidade ao intento.

Diniz vai se concentrar na seleção e sairá antes do final do ano do Fluminense?

São muitas possibilidades a partir dessas linhas tortas que foram escolhidas pela CBF. Um técnico apalavrado que só chega doze meses depois. Um interino que é um técnico profissional de time grande, com título recente, disputando a Liberadores, preferido de muitos (eu, inclusive) para assumir o cargo da seleção de maneira definitiva.

Diniz traz a mesma coisa que Low, Scaloni e Deschamps: adaptar a cultura futebolística do país às demandas do futebol contemporâneo. Como fruto persistente do modelo italiano (que se importava mais com as funções do que com as posições), Ancelotti guarda afinidade com esse modelo de organização ofensiva do “jogo bonito” e traz pragmatismo e experiência ao projeto. Experiência e juventude, exterior e interior, pragmatismo e frescor podem se combinar perfeitamente. Seja com a união dos dois ou apenas com um deles, o caminho para 2026 torna-se mais promissor.

As possibilidades e as linhas tortas não devem suprimir a potência da felicidade e do otimismo. Porque depois de muito tempo a CBF está olhando para o lugar certo. Ancelotti e Diniz são duas respostas semelhantes para o mesmo problema. O “italiano mais brasileiro do mundo” e o “brasileiro mais antropófago do nosso futebol” é uma combinação perfeita de sabores, potente o suficiente para criar sonhos e realidades.

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