Futebol: Liberdade e Vocação

Futebol concreto

No futebol, como é na vida, descobrimos princípios e produzimos conhecimento a partir de nossas experiências. Esse conhecimento pode ser sistematizado e organizado, ganhando expressão literária e prestígio acadêmico; ou pode ser também que se mantenha no ambiente e no palco onde tudo acontece, sem contudo deixar de ser mais ou menos legítimo. Em posse das ideias, dos modelos mentais de estruturas do jogo, passamos a raciocinar a partir delas. Mas abstração e raciocínio não esgotam a inteligência, que é o aconchego do pensamento à realidade. E muitas vezes discutimos a partir de modelos mentais e esquecemos da situação concreta.

Diz-se, por exemplo: “o time joga mal, mas o treinador tem boas ideias”. Nesse momento, alguma coisa já está fora do lugar e o debate se tornou vazio. Veja: futebol não é jogado no mundo das ideias. Não existe futebol platônico, nem jogo abstrato; existe o jogo real, concreto. Existe a boa ou a má performance numa partida de noventa minutos, no tempo e no espaço. Nenhum treinador é bom ou ruim a priori. Não me diga o que pensa o treinador ou o que ele diz em entrevistas; mostre-me seu time jogando futebol. Isso não quer dizer que não haja dificuldades e uma diferença entre o que se imagina e o que acontece de fato no jogo, mas que somente o jogo concreto pode ser objeto de análise.

Coletivo e Indivíduo

Mas logo surge uma dificuldade. É que o futebol carrega consigo algumas verdades que aparentemente se contradizem. Dentre elas, particularmente uma chama bastante atenção: que o futebol é um esporte de expressão coletiva, e, não menos verdadeiro, que o futebol é um esporte de expressão do indivíduo. Essas duas verdades estão postas, de modo que escolher uma e excluir a outra é suprimir a realidade e incorrer em erro. Tanto o indivíduo influencia o coletivo quanto o coletivo influencia o indivíduo. Organizar o coletivo é permitir ao indivíduo que se expresse total e livremente; só quando o indivíduo se expressa livremente é que o coletivo ganha sentido e forma. Pensar que um time deve escolher entre jogar bem coletivamente ou potencializar individualidades é um falso dilema.

Pense, por exemplo, no time do Liverpool, em temporadas passadas, quando jogavam Firmino, Salah e Mané. Perguntamos se Firmino potencializava o coletivo do Liverpool ou se o Liverpool potencializava o Firmino individualmente. Em algum momento Klopp precisou sacrificar um em prol do outro? Em algum momento ele pensou se deveria permitir que Firmino jogasse mais, sacrificando seu time? Ou devia ele, por causa do time, sacrificar toda potência de Firmino? Certamente que não.

O time do Liverpool potencializou Firmino jogando com dois interiores um tanto lateralizados, enquanto o corredor central ficava livre pra ele ser um falso nove perfeito. Mas não só isso. Firmino também potencializou o coletivo do time quando abria espaço para Salah e Mané invadirem em diagonal o espaço por ele deixado. Quando há esse encontro de características e potencialização do coletivo e do indivíduo, dizemos que há liberdade.

A liberdade

Por isso, liberdade no futebol não pode ser compreendida simplesmente como espaços que um jogador pode percorrer em campo medidos em metros. Vinícius Júnior não é menos livre porque não desce entre os volantes para construir o jogo, nem seria mais livre se atravessasse o campo várias vezes para buscar a bola na direita. Aliás, se disséssemos ao Vinícius Júnior para ocupar o espaço que quiser dentro de campo, provavelmente ele ocuparia o mesmo espaço que agora ocupa, partindo como ponta, da esquerda, em direção ao gol, como segundo atacante. Na tática e no futebol, liberdade deve ser entendida como a condição necessária para a realização do talento do jogador.

Quando falamos, portanto, que um treinador tira a liberdade de um jogador, é que ele não pode mais ser a sua melhor versão para expressar e exercer o que o caracteriza como jogador e ser humano. Liberdade é poder ser. Não é ter todo espaço do mundo disponível, mas sim ter o seu próprio espaço — e eu não estou falando dessa ou daquela faixa de campo: liberdade é encontrar-se consigo próprio. E o que o jogador tem como característica própria do ser é o talento; o talento, por sua vez, não é genérico, mas uma inclinação específica; porque ninguém é talentoso para fazer qualquer coisa, senão para uma tarefa singular. O talento é um presente da vocação ao ser. Quando há liberdade, o talento aparece.

Assim que liberdade é liberdade para seres o que nasceste para ser, para seres teu melhor, para viajares rumos altos sob a luz do sol, e não parar quando chegar a noite e a vontade vacilar. Não podes ser qualquer coisa. É impossível para ti. O que tu podes, no entanto, ninguém mais pode ser. Liberdade é dar ao jogador a condição para que ele seja a melhor versão de si, de ser único, de ser talentoso, de cumprir sua vocação — carregando em suas costas a vocação, a cultura, a história, a identidade de um povo inteiro.

O sentido

Essa vocação é o que chamamos de sentido. É o motivo-de-ser; a significação do ser. Todo jogador possui um sentido, uma direção, um caminho a percorrer; possui, na verdade, um encargo. Determinado jogador é melhor aqui e não ali. É melhor lá do que acolá. Alguns jogadores são melhores jogando assim; outros, melhores jogando assado. Isso parece óbvio, mas há uma enorme insistência por parte de torcedores — e mesmo de treinadores! — em fechar os olhos para as características do jogador a fim de que um sistema imaginado seja posto em prática, não importando se essas características se harmonizam ou não com a ideia.

É mal do nosso tempo esse futebol mecânico, industrial, enlatado, sem personalidade, robotizado. Não importa mais quem são os jogadores, tornaram-se peças homogêneas. Importa que o sistema seja implementado. Sob essa abordagem, tudo bem escalar Everton Ribeiro como ala. A palavra ala (ou interior ou ponta) tem mais peso que Everton Ribeiro. Esquece-se se há compatibilidade ou não. Não mais se pergunta como aproveitar o máximo de Everton Ribeiro. Esquece-se do futebol concreto e da vida real. Tudo gira em torno de manipular os modelos abstratos de jogo. O que o jogador pode ser, seu potencial, é deixado de lado. Perde-se o sentido.

Recuperar, portanto, o sentido é dar o protagonismo do jogo ao jogador. Porque não se escala essa ou aquela posição, mas pessoas e jogadores específicos, únicos. É o Neymar que joga, não a posição dele. É o Zico, o Maradona, o Ronaldo, o Messi, enfim. São eles que vencem os jogos, protagonizam o espetáculo e capturam nossa memória num lance eterno. Assim, cada jogador possui uma maneira adequada de se expressar, de ser quem é. Cada um carrega uma potência, e para alcançar o que se é em potência é que serve a tática, o treinador, os métodos; para que, sendo sua melhor versão, esteja mais perto da glória.

Ato e Potência

Do ser se diz ato e potência. Ato é o que o ser é agora, “atualmente”, o movimento, que está manifestado plenamente; a energia, o trabalho. Potência é o que pode ser, o ser em potencial. Sérgio Ramos era, em ato, um lateral direito, mas também era potencialmente um grande zagueiro, até que se tornou, de fato, esse zagueiro. Diz-se que atualizou. O que era só em potência se tornou ato.

O Amor

Com esse parêntese filosófico chato acima, compreendemos claramente que há uma potência em cada jogador. O difícil todavia é enxergar. É verdadeiramente um dom conseguir ver o que alguém é em potência. Na verdade, não é um dom qualquer: é o próprio amor. O amor é que nos capacita a enxergar o melhor do ser humano, a despeito de toda contrariedade atual. É por causa do amor que não levamos em conta tudo que se nos apresenta, mas nos agarramos ao que pode ser — e sempre pode ser bem melhor.

Pelo amor, não só enxergamos o melhor de cada um, mas tratamos como se já fosse, posto que ainda não seja. E ainda trabalhamos, pelo amor, para que o que existe apenas em potência se torne atual, fazendo força, ajudando, esperando com humilde paciência. Pois se somos melhores do que ontem e deixamos no passado aquela massa podre e inútil do nosso ser, foi porque alguém nos amou e acreditou que não éramos somente aquilo.

O mestre

No futebol, o treinador e mestre é a personificação e encarnação do amor. Ou pelo menos deveria ser. É ele quem enxerga o talento, acredita e cria as condições para que esse talento floresça, aparando-lhe os espinhos, regando com instruções, permitindo que cresça ao sol do trabalho cotidiano. O mestre e treinador ideal é o que pega o jogador pela mão e o conduz pela senda segura do sentido e da vocação. É o que acredita e melhora o jogador. O bom treinador é o que ama.

A Coragem

Não apenas talento, porém. É preciso coragem. Coragem é o que se requer do jogador vocacionado. Se existe alguma possibilidade, cumpre então acreditar nela, e levar a carga. Não somente que o mestre deve acreditar, mas o jogador também deve acreditar em si mesmo, no que ele carrega, no seu potencial, enfrentar seus medos, até chegar e alcançar, por fim, o que ele via prometido nos sonhos. Deve ter em mente que o futebol é onde tudo é possível. “Tudo é possível ao que crê”, disse Jesus Cristo.

O sonho

Com coragem, o jogador vive entre dois pontos: entre o talento atual e o sonho. Enquanto um diz respeito ao presente, o outro diz respeito ao futuro. O talento é grande demais, por causa disso se acredita no sonho, por causa do potencial se arranca rumo ao ideal. E é porque o sonho é lindo e grande demais que não se pode desanimar e desacreditar de si e de seu talento. O sonho atrai; o talento persegue.

Pragmatismo

Talvez você pense que tudo o que foi aqui exposto não passa de pura retórica, de uma visão romantizada, e que nada tem a ver com o futebol real. Futebol ainda é um jogo, e no jogo se busca a vitória, afinal. O jogo é pragmático. Na verdade, não é preciso ir longe na experiência para perceber que a filosofia aqui defendida é justamente a que dá resultado. Os melhores times, os mais vitoriosos, são justamente os times onde cada jogador é potencializado e onde se respeita o sentido.

Outro comentário comum é: “o time é mal treinado, depende do talento individual”. Certamente há times mal treinados, e alguns se salvam pelo talento. Mas o correto seria pensar se não são times melhores treinados aqueles onde o brilho do talento resplandece mais forte. Se Dorival Júnior é um técnico ruim porque dependia do talento dos jogadores flamenguistas, por que seria bom um time em que esse mesmo talento desaparece?

Tática

Essa confusão toda ecoa os problemas apresentados nos dois primeiros tópicos: de julgar o futebol apenas em termos de modelos mentais e esquecer o concreto; e de não entender a dinâmica indivíduo-coletivo. Além disso, há uma inclinação de achar que bom treinador ou que time bem treinado tem a ver com movimentos mecanizados e repetidos. Por isso que um time brilhante, cheio de repertório e brilho individual, é tido como um time sem ideias, porque nem tudo é movimento ensaiado e mecanizado.

A tática não precisa ser só isso. Aliás, qualquer um, leigo que seja, pode pesquisar na internet e descobrir milhares maneiras de vencer pressão na saída de bola, de atacar blocos baixos e compactos, de fazer pressão na saída de bola, de potencializar a transição ofensiva, de organizar a transição defensiva. Mas não pode o treinador simplesmente decidir como desenhar a tática sem levar em conta o contexto e quem são seus jogadores. Isso é negar as características e o talento do jogador; e tal atitude afasta a vitória.

Nas mãos do treinador, a tática deve ser um instrumento para o sentido. É serva da vocação e da liberdade. É o meio pelo qual o que está em potência se manifesta em ato; é o instrumento da atualização do ser. Quando o treinador impõe um estilo de jogo e uma tática ideal sobre jogadores que nada tem a ver com ela, ele se torna um tirano: já abandonou o amor. Também abandonou a inteligência, porque como foi dito, a inteligência existe no apego do ideia à coisa, quando o pensamento é imagem do real.

A cultura

Por extensão, cobrar certo respeito às características dos jogadores também é afirmar a cultura. Quando falamos em sentido, não é alguma coisa determinista. O sentido do jogador é explicado também pelo meio e vocação tem tudo a ver com circunstâncias: a cultura, o país, a história particular do jogador, a história do seu povo, seu sangue, suas condições materiais, sua condição psicológica. Tudo isso forma o ser humano, e o ser humano é quem joga. Por isso deve a cultura ser considerada, apreendida e então incorporada no modelo de jogo. Ao considerar a cultura, o talento individual é privilegiado sem que se abra mão de uma forma coletiva.

A herança

Toda cultura que o jogador carrega é a herança que recebeu. Começando pela formação da própria identidade nacional, marcada por inúmeros fatores — no caso brasileiro, a própria escravidão, a miscigenação, a imigração posterior, a prostituição estatal, a desigualdade, a pobreza, o solo, a luta. Fomos paridos nessas circunstâncias, e nossa vida está tão intimamente ligada à tudo isso que o ato mais corajoso de se elevar por cima de tais condições ainda fará levar consigo as velhas marcas.

Nossa herança diz respeito a muita coisa. E o jogador especificamente viu aqueles que jogaram antes dele. Ainda moço, recebeu uma informação, assimilou, e então praticou na sua vida: correu pelas ruas, imitou o craque, quis ser igual, e o significado do jogo escorria também pelas batalhas do cotidiano. Nesse momento, o que havia no jogo era expressão da vida; e a vida também era parecida com o jogo. Por causa disso, o tipo de jogo que nos interessa é o apropriado, que é adequado; que cai bem, que fica bem com aquilo é próprio da nossa forma de vida.

O particular

Porém é claro que haverá sempre o mistério. O particular. Aquilo que, apesar de toda força externa, — muitas vezes contrária — pulsa vivamente no recôndito do ser, e que, inacessível, agita a alma como um borbulhar de lavas de um vulcão acordado. Nesse sentido, o jogador carrega a cultura e a história do seu povo; mas também carrega o que é só dele. A tática e o coletivo carregam a forma da cultura, mas sem que perca o lugar do inaudito, invisível e singular.

Futebol brasileiro e Ataque Funcional

Se há um sentido para o jogador e se esse sentido se expressa também de forma coletiva pela cultura de um país, segue-se que podemos identificar um sentido para o futebol brasileiro. Temos, sem dúvida, uma forma. Isso significa que temos uma vocação, um chamado e uma responsabilidade: a de servir ao mundo com o nosso futebol. Como, exatamente, identificar tudo isso não é tarefa fácil. Mas há quem proponha.

O Ataque Funcional é a melhor proposta de mapeamento do futebol brasileiro existente, trazida pelo pseudônimo József Bozsik (veja os textos aqui). Explicado exaustivamente já há algum tempo, não vou me ater nessas questões. Quem quiser entender deverá ler todos os textos. Tudo está ali. Uma abordagem histórica, sociológica e técnico-tática (!) do futebol. Nosso texto, aliás, só existe por conta desse novo paradigma, dessa nova porta que foi aberta para o debate do futebol. Aqui usamos, contudo, uma abordagem filosófica.

Conceito: Extensão e Intensidade

Há no entanto alguns questionamentos sobre essa questão e gostaríamos de responder a um deles, que é o da existência do Ataque Funcional. Seja porque não há na literatura (não foi escrito?) seja porque o Brasil não possui uma identidade futebolística, é um absurdo tal questionamento. O primeiro argumento é puro preconceito. Não há mais nada a dizer. Já o segundo nega uma identidade porque o Brasil não possuiria uma só cultura, nem uma só maneira de jogar. O problema é que se ignora o método e em como conceitos são formados. Há diferentes times e formas de jogar que marcaram a história brasileira, sim, mas o que o pesquisador faz é abstrair (trazer pra fora) o parecido e dar um nome.

Todos os fatos são únicos; mas se há algum elemento em comum que os una, abstrai-se então esse parecido e cria-se o conceito. Pela extensão (latim ex-tendere; tender para fora, dilatar, aumentar) o conceito se amplia e abriga muitos fatos. Se for grande demais, tudo cabe no conceito, não diferencia nada e cai na inutilidade. Pela intensidade (latim in-tendere, tender para dentro de alguma coisa), o conceito se especifica. Se excluir muitos fatos, fica restrito, e perde-se a utilidade.

Assim, há uma reunião de fatos e elementos que constituem o futebol. De forma descendente, através da intensidade: futebol > futebol sulamericano > futebol brasileiro > futebol carioca/paulista/gaúcho/baiano. Por isso, dizer que futebol brasileiro não existe é um erro metodológico, científico, ou, talvez, puro preconceito. Temos um sentido, uma vocação, um futebol único, que abriga todos esses grandes e únicos jogadores. A tática é apenas filha desse processo e deverá honrá-lo. Outra atitude é patricídio.

A restrição

A restrição é fundamental para a otimização assim como a disciplina para a criatividade. Usar disso, porém, para legitimar uma estrutura mecânica e hiper disciplinada do jogador, contra suas características, é um erro de aplicação. Como o assunto é complexo, seria necessário um texto só para o assunto. De qualquer forma, a pista disso tudo está no fundamento metodológico e epistemológico desse texto: o sentido.

Orientações

Podemos melhor avaliar um jogo a partir de tudo o que aqui foi dito. O que foi proposto é também um ponto de vista, isso é, um ponto pelo qual se enxerga a realidade do jogo. A proposta é dar uma passo além de identificar o sistema tático e a organização/transição ofensiva/defensiva. Só isso não fornece boa leitura do jogo. Mesmo ater aos pormenores do jogo, se o fizer apenas de forma descritiva, não será suficiente. Além de perceber as dinâmicas coletivas que o treinador intenta e os pormenores que estão influenciando o jogo, é necessário perguntar se o time está no “seu lugar”, se o esquema condiz com o que cada jogador pode oferecer.

Conclusão: a Felicidade

Toda ação é para um determinado fim. Um jogador que possui um ideal, um sonho, uma vocação, um sentido, uma cultura, nada mais possui do que uma finalidade. E tudo o que ele faz como jogador é caminhar nessa direção, de modo que um desvio na rota — ações contrárias a esse ideal — é uma negação da finalidade e consequentemente uma negação de si mesmo. Viver em harmonia e perseguindo esse fim, todavia, é a consagração e a plenitude do ser, a eudaimonia dos gregos — de fins intermediário e instrumentais até chegar ao Fim dos fins, à Beatitude, à Graça, ao rosto de Deus: Eis a Felicidade.

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