“Garrincha é o nome de um passarinho alegre, cor de terra. Esse filme pretende mostrar, dentre outras coisas, que quem apelidou Manoel Francisco dos Santos de Mané Garrincha conhecia tanto o rapaz quanto o passarinho, e era um poeta” – narração introdutória do filme.
O que o filme faz não é a “desconstrução” do mito, mas sua humanização. Não apenas ao mostrar que aquele homem, de um status quase mitológico, também era de carne e osso, mas ao evidenciar que o fato de ele ser também um “homem comum” atua diretamente na forte identificação coletiva que existe em torno de sua figura. Dos momentos em que Garrincha caminha pelas ruas sem ser reconhecido (até dado momento) aos que ele aparece tomando refrigerante e jogando futebol com seus amigos, estamos falando do mesmo homem que atua com a camisa do Botafogo e da seleção. O que se altera são justamente as percepções de cada setor sobre esse sujeito. Para seus amigos de sua cidade natal, que nunca tiveram intenção de usufruir de seu status para benefícios próprios, ele ainda é o companheiro de infância com quem compartilharam boa parte da vida. Para os políticos, é uma propaganda ambulante. Para os colegas de clube e seleção, as pernas da salvação. Para o público em geral, uma lenda. Para si mesmo, um cara que não gosta dos holofotes, mas que entende o tamanho que tem. O filme trata Garrincha como um homem, mas sem tentar destruir seu caráter simbólico enquanto mito. Joaquim Pedro de Andrade trabalha o diálogo entre todas essas percepções da única maneira possível: pela encenação.
Podemos tratar essas diferentes percepções como parte do que compõe os diferentes “Brasis”. E o que Garrincha, Alegria do Povo faz é amarrar essas diferenças a partir da encenação. Os espaços, que vão desde as cenas filmadas às imagens congeladas que surgem no decorrer da obra, são intensos, mas passageiros. O que Alegria do Povo sabe fazer com grande êxito é capturar esses espaços com um certo lirismo, mas sem fixá-los. É uma construção cênica marcada por gerar expectativas. A câmera nos transforma nos jogadores no vestiário, nos cinegrafistas na beira do campo, nos repórteres esperando para dar entrevista, nos torcedores. Todos aguardam a mesma coisa, com altas expectativas: o início da partida de futebol e, mais especificamente, o jogo de Garrincha, que aqui serve como uma espécie de doador de sentido. A virtuosidade de Garrincha no jogo de futebol é filmada de maneira interativa com o todo (torcedores, jornalistas, adversários) justamente por isso. Garrincha e o futebol são aqui não só um jogador e um esporte, mas elementos que reconfiguram a nossa percepção, contribuindo, assim, para a construção de um imaginário coletivo em torno deles. Vivemos pela promessa do gol, mas, até que ele aconteça, conectamo-nos também com seus anúncios prévios, representados aqui por cada drible de Garrincha. Inclusive, no erro. Quando Garrincha erra seguidamente, as reações não são amistosas. Entre vaias, sorrisos, gritos, êxtase e temor das diferentes figuras no estádio em relação a Garrincha, o filme consegue colocar o futebol nesse espaço de interação ora harmoniosa, ora conflituosa. O estádio aqui é uma estrutura material, mas que ganha, a partir da mise-en-scène, um caráter simbólico e lúdico pelas diferentes maneiras como é mostrado e pelos diversos momentos nos quais serve de palco. É o espaço da celebração de títulos e vitórias, mas também de conflitos violentos nas derrotas. É onde o ídolo é alçado ao papel de super-herói, mas também tratado como inimigo número um quando falha. É o local de sorrisos, beijos e abraços, mas também de lágrimas e expressões de desespero.
Então, é a partir dessa ideia do futebol como um espaço de transformação que vai se reconfigurando, onde, a depender de vários fatores contextuais, os sentimentos e a percepção da multidão ali presente (na arquibancada, no gramado, na beira do campo) se alternam, que o convite ao inesperado e à possibilidade é feito. E o filme, através da montagem e das escolhas angulares e rítmicas, consegue captar isso pelos elementos mais caros ao cinema: linguagem e estética. O futebol não é o todo, mas uma lente para observar determinadas dinâmicas sociais.