INTRODUÇÃO
“O futebol e a NFL podem aprender um com o outro” – Julian Nagelsmann
Em entrevista para o site da Bundesliga em 2021, Julian Nagelsmann, treinador do RB Leipzig naquele momento, revelou seu profundo interesse pelo futebol americano e a NFL. Entre os elogios, destacou a disciplina dos jogadores para compreender o plano tático de suas equipes, entendendo que os “futebóis” poderiam aprender um com o outro. Três anos depois, o agora comandante da seleção alemã provou que sua declaração não se tratava de meras palavras.
Num amistoso contra a França em março, a seleção alemã marcou o gol mais rápido de sua história. Após a saída de jogo, Toni Kroos (de cabeça baixa) encontrou Florian Wirtz por dentro, que disparou um balaço na meta de Brice Samba enquanto o relógio marcava apenas oito segundos. O apito do juiz marca o snap, cobrado por Kai Havertz para o quarterback Toni Kroos, enquanto os recebedores começavam a correr suas rotas pré-estabelecidas.
Essa jogada é a melhor representação possível da ideia por trás das táticas de Nagelsmann, já que a saída é um dos poucos momentos do jogo em que, como no futebol americano, se estabelece o time que atacará e o time que defenderá a partir de um ponto pré-determinado. Olhando para os lances abaixo, se torna explícita a inspiração no esporte da bola oval. Tanto Wirtz quanto os recebedores executam uma rota “slant”, essa que vem bem fechada de fora para dentro, e aproveitam os espaços gerados pelas corridas de seus companheiros. Havertz, Musiala e os demais alternam entre rotas “go”, “post” e “corner”, alargando o centro do campo.
De antemão, já deixo claro que estou longe de ser um analista da tática no futebol americano. Acompanho a NFL há muitos anos, mas nunca me debrucei em seus detalhes profundos. Li realmente pouco, e meu conhecimento paira no suficiente para conseguir entender uma partida sem me perder. Dito isso, fiz algumas pesquisas no ótimo site Profootball para conseguir traçar melhor esse paralelo.
No final da década de 70, os San Diego Chargers contrataram um técnico chamado Don Coryell. Esse sujeito não conquistou nada, mas revolucionou o futebol americano, sendo praticamente o pai do sistema ofensivo que hoje domina a NFL, chamado de “spread offense”. Conhecido como “Air Coryell”, seu ataque era, resumidamente, baseado em um jogo aéreo de rotas longas e curtas executadas de forma simultânea, procurando espaçar o campo defensivo adversário.
Se olharmos para aquele gol contra a França, fica realmente muito fácil de perceber. Os alemães espalham os franceses no campo e criam o espaço para que a jogada ensaiada seja executada com êxito. Mas sabemos que aquilo é um momento esporádico, e que, na prática, o futebol americano não é tão emulável assim com a bola redonda.
No futebol, não há limite de passes para frente e muito menos de tempo com bola. Como vimos, a Alemanha passou a maior parte de seus jogos ocupando o campo rival em organização ofensiva. E por mais que o objetivo seja parecido, isto é, levar a bola até o fundo do campo adversário, a lógica de tempo e espaço é muito mais ampla, exigindo maior interpretação e improviso por parte jogadores. E talvez seja por isso que Nagelsmann viu na figura de Kroos a oportunidade de brincar de NFL nessa Eurocopa.
QB KROOS
Tenho convicção de que a volta do camisa 8 à seleção foi o que motivou Nageslmann a projetar seu sistema ofensivo de tal forma. Afinal, se pensarmos na função de um quarterback, poucos na história transportaram isso para o futebol como Toni Kroos. A lenda do Real Madrid (e agora temos que colocar todos os verbos no passado, infelizmente) parecia colocar a bola onde queria com as mãos. Como Tom Brady, sem muita mobilidade, mas com leitura e precisão inacreditáveis.
Em todas as partidas da Euro, Toni Kroos passou dos 100 toques na bola. É indiscutível que a organização ofensiva alemã foi desenhada ao redor dele, que chegou ao torneio após sua melhor (e última) temporada da carreira. E para que isso fosse sustentável, a estrutura tática alemã precisava protegê-lo, criando uma espécie de “pocket” para criar espaço durante a construção e, caso o time perdesse a bola, não dependesse de sua corrida para trás na transição defensiva.
No 3-1-5-1 costumeiro de Nagelsmann, Kroos se alinhava aos zagueiros pela esquerda ou por dentro, baixando para buscar a bola de frente pro jogo e com espaço, enquanto Andrich ficava à frente do trio. Abraçando a própria desimportância, a função do volante do Bayer Leverkusen era basicamente 1) atrair a pressão adversária, dando tempo ao quarterback 2) cobrir o centro em transição, enquanto Tah cobria Kroos.
Um segundo ponto importante é a altura dos laterais. Pensando também em proteger Kroos, Nagelsmann abdicou da amplitude total na última linha adversária em diversos momentos. Ao longo do torneio, via-se Kimmich e principalmente Mittelstädt mais próximos do centro do campo e às vezes até em diagonal para resguardar a transição defensiva. Digo “principalmente” o lateral esquerdo pois, como de praxe, Kroos executou diversas inversões ao lateral do Bayern ao longo do torneio. E quando isso acontecia, eram nítidos os movimentos (rotas) do meia direita e do centroavante para criar espaço a Kimmich.
Contra a Espanha, em especial, essa noção de proteção a Kroos ficou evidente. Jogando contra o jovem e craque do campeonato Lamine Yamal, que caía justamente pelo lado esquerdo da defesa alemã, Nagelsmann alterou o posicionamento de seu quarterback para afastá-lo desse possível embate. Ao invés de baixar lateralmente, Kroos recuava entre os zagueiros alemães. Assim, caso a equipe perdesse a bola e a Espanha conectasse um contragolpe pela ponta, seria Jonathan Tah o responsável por parar o garoto de 16 anos.
CORPO DE RECEBEDORES
As relações entre um quarterback e seus recebedores (wide-recievers, thight-ends e running-backs) partem do movimento em um curto período de tempo. Largado o cronômetro, todos saem da “linha de scrimmage” e se desmarcam. A equipe adversária espera o apito para se defender do ataque vindo ao seu encontro. Há início e fim.
No futebol, os limites de uma posse são delimitados apenas pelas ações dos jogadores. Não há imposição externa de tempo, espaço ou número de chances. Sendo assim, a Alemanha poderia ficar com a bola até quando bem entendesse, ou quando o rival permitisse. Isto é, não teria que arriscar um passe do seu quarterback a cada 40 segundos (regra chamada “delay of game”, que na prática permite muito menos tempo). Dessa forma, os movimentos dos “recebedores” não têm início nem fim. Tal continuidade, logo de cara, elimina o fator “ir de encontro”. Um mesmo jogador, já em meio à defesa adversária, pode executar uma, duas, três, quatro rotas durante uma mesma posse.
Tendo isso em vista, Nagelsmann armou seu ataque unindo as qualidades individuais de maior mobilidade. Além das sensações da Bundesliga, Musiala e Florian Wirtz, escalou Kai Havertz, meia de origem, como centroavante e Gundogan, jogador de enorme vocação para atacar a área, como meia central. Preenchendo o centro do campo com esse quarteto, a Alemanha buscava criar linhas de passe para Kroos a partir do movimento constante desses jogadores.
“Meu papel mudou. Agora jogamos com três camisas 10 na frente. Temos um impulso semelhante para o gol, fazemos corridas parecidas, queremos driblar. Portanto é ainda mais importante que eu preste atenção no que Flo (Wirtz) e Jamal (Musiala) estão fazendo, Como posso ajustar minha movimentação para que tenhamos o balanço correto?”
– Gundogan
O jogador do Barcelona assumiu um papel de “compensador” dos garotos, entendendo a própria responsabilidade enquanto veterano. Para gerar espaço a Musiala, executava diversos movimentos em direção à saida de bola. Entre eles, apoios curtos para atrair um volante adversário e esvaziar a zona entrelinhas; além de balançar para o centro do jogo quando pela direita, sabendo que a circulação aconteceria e que, quando a bola chegasse na esquerda, a linha de passe para o 10 estaria clara.
Por parte do camisa 10, desmarques de fora para dentro arrastando o lateral adversário eram constantes, com o objetivo de esvaziar o corredor para a chegada de um lateral. Como visto no vídeo, devido à sua capacidade de giro e arraste em conduções, também era o alvo preferido dos passes por dentro. Enquanto isso, Kai Havertz na função de 9 rompia constantemente contra a última linha, geralmente no sentido contrário do passe quando a intensão era gerar espaço. E quando apoiava ou rompia para fora, buscando o contato com a bola, Gundogan outra vez assumia o papel de compensador, fixando os zagueiros.
Enfim, é possível escrever dezenas de páginas apenas destrinchando as movimentações dos meia-atacantes alemães, exemplificando jogo a jogo e elaborando um verdadeiro “playbook” de futebol americano. Mas a questão não é cada rota em específico, e sim o que elas nos dizem sobre o futebol atual.
CONCLUSÃO
Ao traçar essa comparação com um sistema ofensivo de futebol americano, dadas todas as diferenças ontológicas entre cada esporte apontadas ao longo do texto, se torna quase que inevitável refletir sobre o papel do treinador no futebol atual. O fato é: hoje um técnico de seleção, ou seja, com curto tempo de treino, é capaz de pré-estabelecer um enorme leque de rotas a seus jogadores.
Não há para onde correr. Por mais interpretativo ou dependente do talento que seja, o controle do jogo perpassa cada vez mais pelas mãos do treinador. E não é que no passado não houvesse tática, ou que o jogo fosse “menos tático”, mas que a ascensão da ciência de dados, da fisiologia e dos recursos de vídeo empoderou ainda mais aqueles que não entram em campo. E se a atuação destes é, em tese, limitada ao antes e ao depois da partida, a única saída encontrada por quem busca o controle é ampliar a influência nos verdadeiros protagonistas. Para que, assim, desenhando rotas ou qualquer coisa do tipo, o jogo se aproxime daquilo que é imaginado, e que, portanto, pareça estar sob controle. Acho que é isso o que Nagelsmann tanto admira no outro futebol.
“Os jogadores têm uma disciplina incrível para conhecer o playbook por inteiro e as corridas que devem fazer precisamente.”
– Nagelsmann sobre a NFL