Renato Gaúcho (Foto: JC PEREIRA/ AGNEWS)
27 de novembro de 2021
Flamengo x Palmeiras, final da Copa Libertadores da América. Nos 90 minutos, 1×1. Na prorrogação, em um domínio errado de Andreas Pereira, Deyverson saía na cara do gol e ganhava a Libertadores para os comandados de Abel Ferreira. Na tentativa de explicar o acaso, o que mais se ouvia nas redações jornalísticas, no Twitter e entre os exaltados influenciadores de torcida era:
“Renato Gaúcho não passa de um entregador de coletes. Todo mundo sabe: é um ultrapassado. Não dá treinos, não tem ideia e ataca sem organização e estrutura. O Flamengo precisa é de um treinador europeu.”
Gilvan de Souza/CRF
9 de dezembro de 2021
Duas semanas depois, o Grêmio, que havia demitido o mesmo Renato Gaúcho no início do ano, era rebaixado a despeito da vitória por 4×3 contra o campeão Atlético Mineiro. Feitos um para o outro, ambos Renato e Grêmio terminavam o ano desmoralizados.
Foto: Fabiano do Amaral
Ninguém imaginaria que menos de dois anos depois, Portaluppi estaria de volta ao Grêmio e seria vice-líder do Brasileirão ao mesmo tempo que semifinalista da Copa do Brasil. Tudo isso apresentando um futebol encantador e único.
Renato Gaúcho: ultrapassado e sem ideias?
Existe hoje em dia, na busca por encontrar valor em indivíduos, uma necessidade quase que patológica em atribuir a eles tempo como um adjetivo. Seguindo uma lógica comercial de que as melhores coisas são as mais novas, na análise futebolística um treinador bom é antes moderno do que bom; é bom porque é moderno, porque trabalha com os métodos mais novos, porque é mais novo. O tempo “correto”, como se isso existisse, é o agora. O de hoje sempre vai ser melhor do que o de ontem, assim como o Iphone 14 é melhor que o Iphone 13 e o 15 será melhor que o 14. O treinador que perde é antes ultrapassado e obsoleto do que qualquer outra coisa.
Mais além, no pós-2014 certos setores da crônica esportiva inauguraram uma caça às bruxas contra os treinadores brasileiros. Já que o resultado não veio (e o resultado condiciona tudo que se analisa no futebol), era necessário destruir tudo que restava do futebol brasileiro e adotar tudo que vinha de fora. Os treinadores que não adotavam os métodos que os recém nascidos fóruns de análise tática e setores do jornalismo esportivo julgavam corretos eram ultrapassados e sem ideias, e portanto precisavam ser eliminados.
É claro que o ultrapassado só era ultrapassado quando perdia; se ganhava não era mais ultrapassado, mas os elogios vinham em forma de crítica disfarçada. Nunca existem méritos táticos na vitória do velho treinador brasileiro; o elogio é sempre em cima de aspectos anímicos, como se dominar esses aspectos fizesse o treinador de alguma maneira menos sofisticado. Nunca se elogiam as “boas ideias” do treinador brasileiro.
E nem é preciso dizer o quão esdrúxulo é o discurso das ideias, como se o futebol estivesse nesse mundo e não no mundo sensível. Não existe treinador sem ideia – dizer ao jogador que pode se movimentar por onde quiser do campo também é uma ideia. Os analistas, em maioria, só conseguem ver “ideia” naquilo que batem o olho e enxergam estrutura e intenções rígidas, claras, bem desenhadas. Estruturas mais flexíveis — que continuam sendo estruturas – não são tratadas como uma.
Dessa forma, criou-se na crônica esportiva e nos setores de análise tática um tipo ideal de treinador: estrangeiro (se não estrangeiro, um jovem brasileiro), obcecado por trabalho, com um profundo conhecimento declarativo sobre tática, adepto de estruturas mais rígidas e de métodos modernos (leia-se, europeus). Renato Gaúcho, Dorival, Luxemburgo, Felipão e outros foram os principais alvos.
Mas, como um treinador que não se encaixa em absolutamente nada do que se idealizou como o técnico-modelo faz o que Renato Gaúcho está fazendo no Grêmio? Por quê? Porque Renato Gaúcho não precisa de outros adjetivos além de bom. Porque Renato Gaúcho tem o que os ultrapassados treinadores brasileiros têm de melhor: a capacidade de se adaptar às adversidades e trabalhar com aquilo que se tem em mãos.
Assumindo um elenco limitado, em 2023 primeiramente tentou um 4-2-3-1 sem pontas. Cinco meias extremamente móveis por dentro, os laterais abertos e Suárez na frente. Deu certo no estadual, mas devido a falta de capacidade dos zagueiros de construírem desde trás (e, há de se admitir, a falta de vontade de Renato Gaúcho de construir saídas diante pressões altas, dando preferência às bolas longas), o sistema corroeu. Para ter um time mais preparado para transições defensivas e com mais capacidade de atacar pelos lados, Portaluppi adotou os três zagueiros, pouco convencional considerando sua carreira e a forma que prefere atacar. Taticamente, então, como funciona?
O GRÊMIO DE RENATO GAÚCHO
Os times de Renato são muito característicos e não-ortodoxos. Se Renato não dá preferência por sair jogando desde trás, sobretudo quando é pressionado, uma vez que se instalam no campo de ataque – ou ganhando segundas bolas ou recuperando em zonas mais altas/médias –, seus times têm muitos argumentos contra blocos baixos. Portaluppi dá preferência a jogadores dinâmicos e que saibam se movimentar bem. A lógica não é a de ocupar o espaço, com apenas os laterais fixando sua posição, já que jogam sempre abertos. Por dentro, todos se movimentam e criam relações socioafetivas ao redor da bola.
Também não são uma equipe que precisa atacar em quantidade. Pouco cruzam e não pressionam tanto para atacar em volume como tanto se valoriza hoje; quando entram em construção média, jogam com calma, tentam entrar por dentro e não passam o jogo invertendo de um lado ao outro para cruzar em vantagem. O Grêmio dá preferência por atacar em qualidade, e o fazem muito bem.
A princípio, o time se dispõe em um 3-4-2-1: três zagueiros, dois alas, dois volantes, dois meias e um centroavante. Mais ou menos assim:
Mas, para Renato, a estrutura do time pouco importa. É mais importante antes oferecer diferentes tipos de desmarque para o portador da bola, combinando apoio e ruptura, do que respeitar a posição em campo. Reparem nessa longa posse contra o Botafogo como o espaço é flexível e maleável e a estrutura rapidamente se configura: os dois meias caem para o mesmo lado, Villasanti, primeiro volante, ataca a última linha e Suárez busca nos pés dos volantes. O lado oposto fica apenas para o ala: o resto se localiza através da bola.
Reparem neste próximo vídeo como dentro da ideia é importante combinar apoio e ruptura, para que o portador sempre tenha opções de passe. Como o time não se espaça horizontalmente e não busca inverter jogadas, é importante que o portador nunca “morra” com ela. Bitello vai buscar a bola no pé? O volante rompe. Do meio pra frente, ninguém fica parado.
Aqui, outra posse muito ilustrativa. Alas com liberdade para carregar para dentro (e ultrapassar por dentro) com a bola em seu lado, meias caindo para o mesmo lado, volantes ultrapassando a linha da bola, apenas o ala no lado oposto e jogada sendo resolvida no lado forte, ou seja, sem precisar inverter.
Muitas vezes a equipe, a depender de onde a bola estiver, vai parecer isso: uma junção de atletas em um lado do campo, com ambos os meias caindo para o mesmo lado, os volantes ultrapassando a linha da bola e o ala isolado, servindo como um eventual desafogo ou como alguém que ataca as costas do lateral oposto.
Seguindo, neste lance, outro princípio muito importante, talvez o mais característico das equipes de Renato: se movimentar após o passe. Não à toa, Renato dá preferência aos meias que antes de tudo são dinâmicos: Arthur, Maicon, Carballo, Bitello… todos tocam e já se movimentam. Quem se desloca recebe. Tocar e ultrapassar, tocar e ultrapassar…. Pouquíssimos no mundo fazem isso tão bem quanto este Grêmio.
Este gol contra o SPFC é simplesmente espetacular. A partir de três jogadores o Grêmio, em inferioridade numérica, consegue penetrar o bloco do São Paulo por dentro sem dificuldade alguma, unicamente pela qualidade dos movimentos e das interações dos gremistas. Pouco importa a quantidade de são paulinos a frente do gol. Toco y me voy.
Reparem também como quem não tem a bola se movimenta a fim de oferecer uma tabela antes de qualquer outra coisa. Quem aparece em apoio aparece rente ao opositor mais próximo do portador e busca receber em diagonal, nas laterais do adversário. Quem toca ultrapassa, e quem recebe devolve.
Foto: Marluci Martins
É este, então, o Grêmio de Renato Gaúcho. Peladeiro, ultrapassado e entregador de coletes, segue contrariando toda lógica criada pela análise futebolística nos últimos anos. Portaluppi mais uma vez mostra que o campo nunca está errado e a bola não mente. Se é nas derrotas obsoleto e nas vitórias bom motivador, minhas forças aos que estão roucos de tanto falar de suas capacidades motivacionais.