O futebol é filho de seu lugar, de seu tempo e de seus indivíduos. O nosso jogo, o jogo brasileiro, é reflexo da nossa alma, espelho das nossas ruas, cadência da nossa história. É a soma de todos os gestos improvisados desde um tempo inenarrável. Moldado por esse mesmo tempo, pelo riso e pelo suor, ele carrega em cada ato a essência de um povo que transforma futebol em arte e arte em vida.
Também no nosso jogo, mudanças de paradigmas, apesar da vã tentativa de alguns, frequentemente ocorrem de forma orgânica, ausentes de um evidente ponto inicial. Hoje, falaremos sobre o esquema que ajudou a nos definir enquanto país, que nos colocou no topo do mundo e que também, até hoje, recebe donos e criadores infundados por grande parte da imprensa esportiva brasileira: o 4-2-4. Para isso, porém, é necessário contextualizar o panorama tático do nosso futebol nos anos 40 e no começo dos anos 50.
1. Introdução: Diagonal, a primeira grande variação tática brasileira (1941-1950)
A Diagonal, como carinhosamente fora cunhada, predominava no futebol de elite do país na década de 1940. Após acachapantes derrotas numa excursão a Buenos Aires em 1941, Flávio Costa e Ondino Vieira, treinadores de Flamengo e Fluminense, respectivamente, decidiram em uníssono adotar uma estratégia mais defensiva do que a empregada por times brasileiros à época: o recuo de um médio aberto para a primeira linha de defesa. Como assim? Explico melhor.
Considerando que os clubes daqui praticavam o bom e velho 2-3-5 inglês, com dois defensores, três médios (um médio-centro e dois médios abertos) e cinco atacantes (dois pontas, dois meias avançados e um centroavante), a mudança promovida por Flávio e Ondino foi, até certo ponto, simples. Recuando um dos médios abertos, a defesa, agora constituída por três “zagueiros” na retaguarda e dois meio-campistas à frente, poderia marcar individualmente, por encaixes, o quinteto de ataque adversário. De que forma? o médio aberto recuado, que fora criativamente alcunhado de médio-recuado, marcava um dos pontas da oposição, ao passo que o zagueiro central marcava o centro-avante e o outro zagueiro, agora empurrado para a outra lateral, marcava o ponteiro restante; por fim, os dois médios marcavam os meias avançados.
Caso ainda não tenha ficado claro, a Manchete Esportiva, em 1956, pode nos ajudar com uma explicação visual da transição do 2-3-5 para a diagonal, que mais se parece com um 3-2-5:
Para fins didáticos, consideremos o time mais dominante do país em meados dos anos 40: o São Paulo de Leônidas da Silva, apelidado de “Rolo Compressor”. Apesar do fantástico trio Ruy, Bauer e Noronha normalmente ser descrito em conjunto, como uma linha média, o que se observava era distinto. Noronha, pela esquerda, fazia a função de médio-recuado, marcando o ponta direito da outra equipe. Jogando assim, tornou-se não apenas destaque de sua posição, mas também titular da Seleção Brasileira. Vemos a disposição daquela equipe são-paulina abaixo:
O nome “diagonal” não era por acaso. Tanto na explanação da Manchete Esportiva quanto na escalação do São Paulo acima, vemos que se forma uma diagonal entre o médio-recuado, os outros médios e o ponta do lado oposto.
Apesar de ter sido criada com fins de contenção em 1941, a diagonal não era uma tática defensiva. Tendo um dos médios retraídos para a primeira linha de retaguarda, outro, mais avançado, poderia ser liberado para ser uma espécie de sexto homem de ataque. Jayme, meio-campista do Flamengo em meados dos anos 40, atuava dessa forma, como descrito pelo periódico Mundo Esportivo em 1946:
Comparação entre as funções de Noronha (SPFC) e Jayme (FLA) pelo Mundo Esportivo.
Tomemos a outra grande equipe brasileira dos anos 40 como exemplo, também a fim de esclarecer confusões: o Vasco do Expresso da Vitória. Uma rápida pesquisa no Google pode indicar que a equipe de Flávio Costa jogava num 4-2-4, sendo a pioneira do sistema no país. Porém, as evidências que supostamente sustentam essa afirmação são excessivamente escassas. O mais provável é que o Vasco de Ademir, Danilo, Chico, Friaça e Cia também utilizasse a diagonal, especialmente ao considerar que seu criador tinha extremo orgulho de sua criatura, levando-a até uma Copa do Mundo. No Sul-Americano de 1948, um dos grandes títulos da linda história vascaína, o cruz-maltino foi escalado da seguinte maneira:
Convém a nós observar a função de Ademir, o grande craque da equipe. O Queixada é amplamente considerado o precursor da função chamada de “ponta de lança” no Brasil. Trata-se do camisa 10 tipicamente brasileiro, semelhante a Pelé e Zico: um atacante mais recuado, dotado também de atribuições na criação na equipe. Um jogador ofensivo completo, que leva a equipe consigo do meio-círculo à área adversária. Ademir e o Vasco do fim dos anos 40 são, talvez, a grande expressão da diagonal do futebol de clubes no país.
Assim, o esquema criado por Flávio e Ondino Vieira não poderia ter sido mais bem-sucedido. Tomou conta de praticamente todas as equipes de elite nacional, além de ter sido utilizado pelo próprio Flávio na Copa de 50. Foi uma resposta brasileira ao WM, sistema absorvido por todas as outras potências futebolísticas mundiais. Aqui, Gentil Cardoso e Dori Kruschner tentaram implementar o WM nos anos 30, mas sem sucesso suficiente para eternizá-lo. O que ficou foi o sucesso estrondoso de um sistema 100% nacional, um simbólico desprendimento das táticas inglesas (o que não significa que já não jogássemos de forma distinta dos britânicos) e a base de boa parte da variabilidade tática brasileira de décadas seguintes. A mais imediata delas foi, sem dúvidas, o 4-2-4.
O incontornável sucesso da diagonal (2). Globo Sportivo, 1948.
Com todos os preâmbulos devidamente sedimentados, podemos voltar ao rumo da nossa história. O 4-2-4, como já dito, não possui um único fundador. Em vez disso, observou-se uma mudança gradual partida da própria diagonal. É possível observar na Seleção de 50 como Bauer tinha tendência a recuar, tornar-se o “quarto zagueiro”, e como Zizinho também baixava para se posicionar um camisa 10 organizador, à frente do volante:
2. As primeiras aplicações do 4-2-4 no Brasil (1951-1955)
Essa é a base teórica do 4-2-4 brasileiro. Mas a pergunta continua: se não é possível determinar o inventor magno do sistema, quem foram os primeiros responsáveis por sua popularização? Isso é possível responder. Primeiro, alguns esclarecimentos são necessários. Quando é citada a criação do sistema no Brasil, comumente se fala de Béla Guttmann, o nômade húngaro campeão europeu com o Benfica e campeão paulista com o São Paulo em 1957. É fato que aquele esquadrão são-paulino jogava num 4-2-4; Zizinho atuava como um camisa 10, com Vitor, Riberto, Mauro e De Sordi formando a retaguarda paulista. Mostraremos a seguir, porém, que porção considerável dos clubes de ponta do futebol nacional já atuavam nesse esquema quando Béla chegou ao Brasil.
A primeira menção que se observa sobre um técnico conscientemente empregando o 4-2-4 em suas equipes se trata de Martim Francisco, no Villa Nova campeão mineiro de 1951. Martim, apelidado de “cientista do futebol”, recuou o médio-esquerdo Lito para jogar como zagueiro, ou seja, quarto zagueiro. A escalação, portanto, era a seguinte: Arizona; Madeira, Anizio, Lito e Tão; Vicente e Foguete; Osório, Vaduca, Chumbinho e Escurinho. A principal inspiração por trás da escolha de Martim foi a utilização de um ponta de lança (Carlyle) por parte de seu rival, o Atlético-MG, fazendo com que o treinador “empurrasse” Lito para a primeira linha de defesa. Isso, sem bola. Com ela, a equipe mineira se portava num 3-3-4, o que não seria tão incomum em anos seguintes (Botafogo de Pirillo, em 1952, também utilizou tal disposição).
O treinador do interior de Minas Gerais conseguiu sucesso tão acima do esperado com o Villa Nova que, pouco tempo depois, trabalhou na elite do país, em equipes como Vasco da Gama e Corinthians. Sendo assim, você pode estar se perguntando: “mas isso não quer dizer que Martim Francisco criou o 4-2-4 no Brasil?”. Não é tão simples. Como já mostrado através da escalação do Brasil na Copa de 50, muitos times já flertavam com a ideia de atuar com quatro defensores e dois meio-campistas antes disso; tratá-lo como um novo esquema era meramente uma formalidade. Martim foi, no máximo, o primeiro a assumir que jogava dessa maneira. E, mesmo assim, é incerta a influência daquele Villa Nova em equipes do Rio de Janeiro e de São Paulo. O que é certo, no entanto, é que o trem do 4-2-4 veio a todo vapor nos anos seguintes.
São Paulo, 1952. A primeira menção explícita por mim encontrada de uma equipe paulista utilizando o 4-2-4 foi o Palmeiras de Abel Picabéa. Abel, estrategista argentino que começou sua carreira como treinador nos subúrbios cariocas, sempre esteve apurado quanto às atualizações táticas do futebol brasileiro. Podemos compará-lo, até certo ponto, com Marcelo Bielsa: pouco vencedor, mas muito influente. Picabéa mal conquistou títulos em sua carreira, mas sempre se colocou na vanguarda do nosso futebol e tem papel fundamental na história aqui contada.
O Palmeiras, que vinha de uma ótima temporada em 1951, estava entre os grandes esquadrões do futebol nacional à época, liderados por Waldemar Fiúme, Jair e outros craques. Fiúme, inclusive, fora cobaia de quase todos os esquemas possíveis desde o início de sua carreira, exatamente por também atuar como médio-aberto. No presente caso, não foi diferente. Durante o Torneio Quadrangular Paulista, em julho de 1952, o médio direito foi recuado para quarto zagueiro, atuando num quarteto defensivo com Ruben, Juvenal e Dema. Vila e Jair compuseram o meio-campo, ao passo que Liminha, Odair, Ponce de León (ponta de lança) e Rodrigues formaram o ataque palestrino. Da seguinte forma se portou o alviverde:
O Mundo Esportivo, dois dias depois, realizou uma cobertura completa sobre a disposição tática da equipe naquele dia:
A experimentação deu certo e o Palmeiras venceu a partida por um a zero, gol de Rodrigues. No Rio, as tentativas de implementação do 4-2-4 em 52 observaram um fôlego incrível. Sylvio Pirillo, em retrospectiva, não apenas admitiu o uso do esquema naquele ano, como também algo ainda mais vanguardista: o 4-3-3. Adiantando Nilton Santos para o meio-campo, além de usar o quarteto de retaguarda, Sylvio planejava aproveitar toda a qualidade com bola no pé do grande ídolo alvinegro, como demonstra sua entrevista para a Manchete Esportiva de 1956:
O boom do esquema foi tão intenso que, no fim de 1952, já era dito por veículos de imprensa que “é a fórmula 1-4-2-4 que usam atualmente quase todos os quadros brasileiros de primeiro plano” (Última Hora (RJ)). Novamente, é improvável que Martim Francisco, Pirillo ou Picabéa tenham sido o ponto inicial desse sistema no Brasil, tratando-se mais de uma variabilidade tática obtida a partir da diagonal. Apesar de quase todos os clubes da elite nacional utilizarem o 4-2-4 como base, talvez o seu executor assumido mais bem-sucedido na primeira metade da década tenha sido o Flamengo de Fleitas Solich. El Brujo, como fora apelidado o treinador, desde a primeira menção de seu uso do 4-2-4 no rubro-negro, foi tricampeão carioca consecutivo (1953, 1954 e 1955) e campeão do Torneio de Campeões Estaduais Rio-São Paulo (1955).
A “primeira menção” supracitada ocorreu em setembro de 1953. O Esporte Ilustrado, cobrindo jogo do esquadrão de Solich contra o Bangu, explicita, primeiramente, a qualidade daquele Flamengo: “A equipe rubro-negra, que é sem favor aquela que pratica neste momento do futebol carioca o mais bonito padrão de jogo, passeou pela cancha do Maracanã, realizando atuação verdadeiramente notável, com todas suas peças entrosadas, no mais puro sentido do futebol association”. Naquela partida em específico, com a lesão de Jadir, Servílio entrou em seu lugar. Solich, então, recuou Marinho para ser “zagueiro extremo”; na verdade, tornou-se lateral direito. Assim, a retaguarda ficou formada por Marinho, Pavão, Servílio (Jadir) e Jordan. Segue o excerto do jornal:
O Flamengo, agora com um “novo” esquema tático em mãos, rumou ao título carioca naquele ano de forma incontestável. O desenho base daquela equipe, que não mudaria muito para as conquistas seguintes já citadas, era o seguinte:
Assim, o que era moda se tornou onda, e o que era onda se tornou incontestável. Da mesma forma que a diagonal tomou conta de todas as equipes de elite do futebol brasileiro, o 4-2-4 havia se infiltrado definitivamente no desporto-rei por estas terras. A partir de meados dos anos 50, equipes começaram a experimentar e brincar com o sistema, buscando soluções que melhor satisfaziam as características de seus respectivos elencos. O 4-2-4 chegou em seu ápice, tendo sua máxima consagração através da mais dominante e vitoriosa geração de seleções em todos os tempos.
3. Consagração: O falso-ponta, Guttmann e o Mundo
Com a consolidação do dos quatro defensores, dois meio-campistas e quatro avançados, cada treinador à dobrou e envergou com bem queria, com base nas particularidades de seus atletas. Mais precisamente, um personagem é central nesse contexto: Telê Santana. O Mestre é o fio que liga o 4-2-4 ao 4-3-3, o fio de esperança do futebol brasileiro. Pelo Fluminense, Telê foi provavelmente o primeiro executor da função que seria, mais tarde, chamada de “falso ponta”. O nome é sugestivo. Trata-se de um ponta de origem que, na realidade, atua mais próximo da faixa central do campo, tendendo a abrir pelo seu respectivo lado. A Revista Placar, em sua edição de 07 de dezembro de 1979, expõe claramente que “no início dos anos 50, jogando no Fluminense, [Telê] inventou o falso ponta-direita”. O falso ponta era o elo entre o meio e ataque junto ao camisa 10, além de promover maior aproximação entre meio-campistas. Tipicamente brasileiro. O Jornal da República (SP), também em dezembro de 79, reforçou as características de Telê:
O Fluminense de seu mestre, Zezé Moreira (tido como o inventor da marcação por zona no Brasil!), quanto à escalação do falso ponta, é inspiração de porção considerável dos times que o sucederam cronologicamente. Zezé escalava aquele esquadrão (1955) da seguinte forma:
O falso ponta como conceito não foi exclusividade de Telê e do Fluminense. Muito longe disso, inclusive. A fim de realizar um balanço defensivo mais eficiente e ocupar melhor o meio-campo, recuar o ponteiro tornou-se uma solução relativamente comum à época. O Santos campeão paulista de 1956, ainda sem Pelé na equipe titular, não foi exceção. Tite, polivalente ponta santista, já atuou nas duas ponteiras dessa forma. Como diz o próprio site oficial do Santos, “sua forma de jogar encantou os torcedores santistas, por ser um jogador também colaborativo, ajudando na armação das jogadas como um dos primeiros pontas falsos do futebol brasileiro”. Além da versatilidade de Tite, o técnico santista da época teve grande parcela de responsabilidade na funcionalidade daquela equipe.
Lula, o maior treinador da história do alvinegro praiano, tinha extrema sensibilidade com seus jogadores. Atletas de “mesma posição”, com ele, poderiam atuar juntos, caso seus talentos fossem indispensáveis. Tal característica já era comum no primeiro bicampeonato paulista do técnico pelo clube. Especialmente no que tange o estadual de 1956, Lula conseguiu encaixar Jair (o craque aparece aqui pela terceira vez!), Pepe, Pagão, Del Vecchio e Tite, com o menino Edson Arantes do Nascimento como peça para a segunda etapa. O Santástico levantou o troféu do Campeonato Paulista em decisiva partida contra o São Paulo com a seguinte escalação base:
O São Paulo, por sua vez, ferido por ver a conquista escapar pelos dedos, optou por um caminho drástico: contratar um treinador europeu para a temporada seguinte. O nome dele? Béla Guttmann. Manoel Raymundo Paes de Almeida, dirigente imortal da instituição são-paulina, tratou de buscar na Hungria um treinador de alto calibre, com trabalhos respeitáveis no futebol europeu e com contribuição notável para o desenvolvimento tático do incomparável futebol húngaro do início dos anos 50. Béla, um desbravador por natureza, já havia treinado, entre outras, equipes húngaras, italianas, austríacas e neerlandesas antes de desembarcar na Pauliceia.
Apesar de não ter criado o 4-2-4 no Brasil, como já mostramos, Guttmann foi, sim, um dos primeiros a utilizar o sistema no Velho Continente, possuindo influência considerável na formação da mais avassaladora seleção de todos os tempos, que jogava no referido esquema: a Hungria de Puskás. Por aqui, o excêntrico mestre já havia dado suas cartas em pouco tempo de trabalho. O jornal O Cruzeiro já citava uma “revolução húngara no futebol paulista”. Além disso, como noticiado na Gazeta Esportiva em julho de 1957, Béla recuou Dino Sani, até então meia avançado, para se tornar o volante da equipe. De fato, uma feliz alteração. Dino viria a se adaptar perfeitamente à nova posição, a ponto de iniciar a Copa do Mundo de 1958 como médio-volante titular, ao lado de Didi.
Com isso, a equipe tricolor evoluiu. Não o suficiente, porém; afinal, o Corinthians ainda liderava de forma invicta e incontestável o campeonato. Apenas um craque, um gênio, poderia fazer o São Paulo superar essa distância aparentemente insondável entre as equipes. Guttmann exigiu apenas um nome: Zizinho. O Mestre Ziza, como era chamado, já estava na curva descendente de sua carreira e tinha planos de aposentadoria. A diretoria são-paulina fez o certo, ouviu seu treinador e ofereceu um curto – mas robusto – contrato para ele. Zizinho aceitou e o São Paulo, que não conheceu a derrota até o fim do torneio, mudou definitivamente de patamar. La pelota siempre al diez.
A equipe do Morumbi – de estádio ainda em construção à época – enfrentou o Corinthians na partida decisiva do torneio. Quem vencesse, sagraria-se campeão. Para a alegria dos tricolores, o esquadrão liderado por Béla Guttmann levantou o troféu estadual, tendo o seguinte XI titular:
O sucesso do esquadrão são-paulino foi incontestável: seus jogadores passaram a ser selecionáveis, Zizinho decidiu estender a carreira por mais um ano e, talvez o mais importante de tudo, Vicente Feola foi escolhido para assumir a Seleção Brasileira. Feola, que já tinha vitoriosa – mas inconstante – carreira como treinador, trabalhava na direção de futebol do São Paulo quando recebeu o convite da CDB. Um convite desses não se recusa. O treinador, conhecido pela boa gestão de grupo e postura despreocupada à beira do campo, esteve sempre inteirado quanto às atualizações táticas do futebol brasileiro, apesar de críticas da imprensa. O título recém-conquistado pelo seu clube de coração, cuja equipe havia sido engenhosamente montada pelo nômade magiar, assim como o conceito do falso ponta, característico de Fluminense, Santos, Vasco e outros, foram influências fundamentais para Vicente Feola na Seleção. O esquema daquele time, claro, seria o 4-2-4 (em campo, quase um 4-3-3 torto).
A concorrência para a convocatória da Copa do Mundo de 1958 foi uma das mais pesadas de todos os tempos. Para a ponta-esquerda, por exemplo, a dúvida permaneceu até o fim entre três nomes: Canhoteiro, Pepe e Zagallo. O primeiro era talvez o mais talentoso do trio, mas também o mais descompromissado. Feola decidiu pelos dois últimos. Craques como Zizinho, Evaristo, Julinho (por opção), Luizinho e Belangero ficaram de fora. Mesmo com todas as ausências, a geração brasileira era tão fora de série que o esquadrão titular no Mundial ainda é um dos melhores – senão o melhor – da história.
O jogo brasileiro na Copa abdicava totalmente de geometrizações, posicionalismos rígidos e simetrias. Com cada jogador atuando em uma altura do campo, tendo liberdade para se aproximar e romper espaços com tabelas, a fluidez canarinho encantou o planeta, conquistando-o pela primeira vez. Um jogo tipicamente danubiano, o nosso jogo. Pelé, Garrincha, Didi e Cia mostraram ao mundo, com êxito, a soma de todos os nossos gestos, acidentes, invenções e transformações que tiveram curso desde a chegada de Charles Miller em solo nacional com um livro de regras. Do 2-3-5 inglês, passando pela diagonal e chegando ao 4-2-4 assimétrico, os esquemas e as pranchetas à beira das canchas pelo Brasil foram meramente espelhos da formação de seu povo.
O 5 a 2 contra a Suécia de Liedholm coroou décadas de metamorfoses do futebol brasileiro, representada pela equipe abaixo:
Além de ser a primeira consagração máxima do Brasil perante ao cenário mundial do futebol, a conquista do Mundial foi, também, a culminação de todos os conceitos táticos e estratégicos por aqui desenvolvidos. O ponta de lança, o falso ponta, o 4-2-4, a fluidez de movimentação e muitos outros conceitos que vimos ao longo do texto mostram um desprendimento definitivo ao pragmático futebol inglês do final do século XIX, do kick and run e das transições vertiginosas. O futebol brasileiro finalmente tem sua identidade sedimentada não apenas para si, mas para o mundo.
4.Consequências, repercussão e influências do nosso 4-2-4
Com o mesmo 4-2-4, o Brasil se sagrou bicampeão mundial em 1962, com Aymoré Moreira no banco e Garrincha se imortalizando através de uma das maiores atuações da história da Copa do Mundo. Em solo brasileiro, o esquema se transformou em muitos outros: 4-4-2, 4-3-3, 4-2-3-1 e assim por diante. Uma dessas evoluções, abdicando de sua amplitude característica, gerou a lendária Seleção de 1970. A influência em países estrangeiros também não poderia ter sido maior.
Na Inglaterra, toma-se como fato que Alf Ramsey, treinador do país no título da Copa do Mundo de 1966, tenha inventado o 4-4-2 (debatível, o soviético Viktor Maslov, à época, provavelmente chegou antes no referido esquema). Porém, o que comumente não se fala é a clara inspiração do Brasil bicampeão mundial em Ramsey. Chamado de Wingless Wonders (“maravilha sem pontas”), o sistema inglês de 66 é a versão extrema do nosso 4-2-4 de falso ponta, recuando os dois ponteiros como meio-campistas abertos. Apesar disso, estilisticamente as duas equipes eram diametralmente distintas: a Inglaterra de Ramsey, Bobby Charlton e Bobby Moore valorizava o jogo vertical, de poucos passes e avesso ao risco. O excessivo pragmatismo do treinador, no entanto, desgastou tal tendência com o passar dos anos.
Quando falamos da influência da Seleção de 58-62 no futebol europeu, talvez em nenhuma equipe tenha desencadeado um efeito dominó maior que no Ajax de Rinus Michels. No ótimo livro Brilliant Orange, David Winner explora a história e a evolução do Ajax, da seleção neerlandesa e do futebol nos Países Baixos, destacando como Michels adotou o 4-2-4 brasileiro a partir de sua segunda temporada à frente do maior clube do país. Seu meio de campo era formado por Bennie Muller e Klaas Nuninga, enquanto o quarteto de ataque dispunha de Piet Keizer, Sjaak Swart, Henk Groot e um tal de Johan Cruyff. Por consequência, o Brasil possui papel importante como efeito fundador no desenvolvimento do Carrossel Holandês e no posicionalismo que progressivamente tomou conta do futebol europeu e mundial em décadas posteriores. O jogo verdadeiramente brasileiro inspirou tantos clubes e nações que se entrelaça até mesmo com um estilo que, atualmente, é visto em oposição a ele. Ironias do esporte-rei.

5. Conclusão
Se o futebol é filho de seu lugar, seus subprodutos também são. As táticas, estratégias, soluções e variações por nós encontradas desde a aurora do futebol no país nada mais são que um reflexo da nossa gente, que sempre encontra seu jeito para conseguir aquilo que necessita. O 4-2-4 à brasileira não é diferente. Partindo da rigidez inglesa, a criação de uma identidade indubitável e inquestionável de jogo representa melhor que qualquer conceito ou definição o que é o nosso jogo. Quando afirmei que se tratava de um sistema sem dono no título do texto, estava plenamente enganado. O 4-2-4 tem um único e soberano mestre: o indomável espírito criativo e insurgente do povo brasileiro.
Obrigado pela leitura e até mais!