
Grande valor histórico e comunicacional aqui. Por que Pelé se autodeclara meia, com todos os jornais de sua época confirmando, e com os olhos de hoje nós provavelmente o chamaríamos de atacante? O que seria exatamente o ponta-de-lança?
O futebol que Pelé cresceu vendo nos anos 40 e 50 era o futebol dos atacantes, o paradigma era atacar com muito mais homens do que seria normal no fim de sua carreira. Até aí, nenhuma novidade, mas já era um futebol com muitas respostas formuladas à revolução de 1925 e ao 2-3-5. A que se fez mais famosa é o sistema WM de Chapman (que surge em um processo duradouro, não do nada, mas é um assunto para outro dia), mas também outras na Hungria, na Itália, na Suíça, no Uruguai, na Argentina… Como fica o Brasil, que profissionalizou seu jogo na década de 30?
Embora grande parte dessa história tenha sido perdida e a ausência da televisão não ajude, ficou muito conhecida a história de Dori Kürschner, o húngaro que, fugindo do antissemitismo, treinou o Flamengo e o Botafogo entre 1937 e 1940.

Sua relevância, em pouco tempo, é extensa: Foi quem sugeriu o primeiro ‘segundo uniforme’ de um time brasileiro, foi um dos pioneiros na exigência de treinamentos tidos como mais intensos e, mais importante para a discussão aqui, introduziu o WM ao futebol brasileiro. Responsável por assessorar a Seleção na Copa de 1938, influente na Seleção de 1950 (Flávio Costa, que trabalhou com Dori como assistente no Flamengo, era o treinador na ocasião) e nas principais tendências que floresciam, começava a história do dedo danubiano no futebol nacional.

Sucedendo Dori no comando do Flamengo, Flávio Costa foi do WM para “A Diagonal”: Um 3-3-4 que mantinha tendência similares, mas que sofreu menos resistência. Nessa equipe jogava Carlos Volante, sim, o famoso que cunhou a posição que chamamos hoje!

https://mwfutebol.wordpress.com/2020/06/09/do-wm-a-diagonal-a-tatica-brasileira/
Como na América do Sul a tradição era defender em zona e a figura do volante, nosso querido camisa 5, tornou-se cada vez mais popular nos anos 40, cada vez mais mutações vinham: A distinção entre o volante e um meia (recuado) mais livre, as linhas de 4 e, ele, o ponta de lança.
E como falar do ponta de lança, da ida do WM ao 4-2-4, sem falar de Ademir de Menezes? Quando o Vasco de Flávio Costa (!) tornou-se o primeiro time brasileiro a ser campeão continental, foi com Ademir de ponta-de-lança.
“Oh, suprema humilhação para os inventores do futebol!”




Fazendo um salto temporal do fim da década de 40 para o fim da década de 50, ou seja, o salto que permitiu que o 4-2-4 brasileiro se tornasse o paradigma nacional, foi por acaso que Pelé, convocado para a Copa de 58 ainda menor de idade, virou ’10’. Clássico da CBF (ops, CBD).

A inclusão de Pelé, que pós-recuperação viria a ser titular desde a esquerda, já expressava a mudança de paradigma que o Brasil passou: Jogaríamos com uma linha de 4 atrás, com 2 meias e 4 atacantes, sendo dois deles mais para os lados, um mais avançado e um… Ponta de lança. Tamanha mudança tática não aconteceu sem a influência da escola danubiana, mais uma vez, agora com o sr. Béla Guttmann, o mesmo que lançou a maldição europeia no Benfica, trabalhando no SPFC e fomentando a dupla Dino Sani e Zizinho no meio-campo.

Como Zizinho já estava em uma etapa terminal da sua carreira (também é verdade que parece ser um desses nomes que o Maracanazo enterrou de vez na Seleção), foi Didi, um maestro de mente ofensiva, o convocado para ser o segundo homem daquela equipe de 58, e o fez brilhantemente.
As mudanças táticas são mais rápidas que as comunicativas, daí que o Manchete Esportiva alinhe o 4-2-4 mais famoso de todos como 3-2-5. Didi interpretado como atacante, o que pode ser desmentido por quem checar seu duelo no meio com Raymond Kopa nas semis: https://www.youtube.com/watch?v=bUu72xdSyHk




O tempo passava enquanto o Brasil colocava seu nome na história do jogo para nunca mais sair, o 4-2-4 popularizado no mundo todo já sofria suas mutações com o 4-3-3, como a própria Seleção mostraria já em 62 a partir da função de compensação de Zagallo.

E Pelé dominava a década de 1960 como surgiu: Um ponta-de-lança, um atacante (e, perceba, não anula o que o próprio diz sobre “vir do meio campo”), um homem de frente que recua para driblar, tabelar e golear. O mito do camisa 10 clássico, que é tudo isso citado, se consolida. E quando diz “eu sempre fazia o terceiro homem”, de onde isso vem? Meu palpite é que aí Edson se refere não ao movimento que fazia com Didi e Zagallo quando surgiu, mas a sua readequação na etapa tardia de sua carreira, que também não significa que virou Zidane ou Riquelme.
Para 1970, com dúvidas pairando na cabeça de Saldanha sobre Pelé não ser mais o mesmo, Zagallo o substitui como treinador na Seleção Brasileira e inventa a famosa equipe dos “cinco camisas 10*”. Mas… isso aí não é o bom e velho 4-2-4? No olhar da época, provavelmente sim.


Se pararmos para pensar, Pelé, Jairzinho e Tostão eram pontas de lança de origem, Rivellino e Gérson eram meias (o asterisco). As adaptações foram aproveitar a velocidade de Jairizinho na direita, mandar Riva à ponta e Tostão, com o pulmão mais jovem deles, virou o mais avançado.
Então, se pensarmos em situações frequentes de jogo, e fica mais claro se fingirmos que aquele sistema era um 4-2-3-1 (um revisionismo histórico de mal gosto, mas que serve para fins educativos), Pelé podia muito bem ser o terceiro homem pelas atribuições criativas que tinha. Mas, como disse, nada de 10 moderno, nada de Zidane, Rui, Riquelme. É como se a linguagem brasileira rejeitasse a noção de engancha e ao contrário dos portugueses, se recuasse a chamar o 9 de ponta-de-lança. Tínhamos toda a ofensividade precisa em um só: https://www.youtube.com/watch?v=RztKngAarzE
Seja influenciada pelos húngaros ou na transição comandada pelos modernistas Saldanha e Zagallo, nossa história é a do ponta de lança. E, claro, retornamos à melhor explicação possível: “O ponta-de-lança era mais atacante do que armador e costumava ser o artilheiro da equipe.”

