Os voos de Ícaro e Petraglia: sobre a ascensão e a queda do Athletico

À rara leitora e ao raro leitor dos quatro corners do Brasil, apresento com prazer este ilustre desconhecido que os assombrou nos últimos 5 anos: o Clube Atlético Paranaense. Ou, para os menos íntimos, o Athletico.

O time nasceu assim mesmo, com H, em 1924, há pouco mais de 100 anos, de uma fusão entre o América (de onde veio o rubro) e o Internacional (de onde veio o negro), prática muito corriqueira no futebol paranaense. A alcunha Furacão apareceu em 1949, dada pela imprensa após uma sequência invicta de onze vitórias e um empate, com incríveis 49 gols marcados. Já em fim de carreira, o lendário goleiro Alfredo Gottardi, o Caju, maior ídolo da história do clube, participou dessa campanha.

Além disso, no Século XX, os únicos momentos dignos de nota do Atlético foram dois. O primeiro foi o fim da década de 60 e início de 70, quando se reuniram no clube o maior craque de sua história, Barcímio Sicupira, e os campeões mundiais Bellini e Djalma Santos. O segundo foi o Campeonato Brasileiro de 1983, no qual a equipe liderada por Washington e Assis, o Casal 20 (aquele mesmo do Fluminense), chegou até as semifinais, parando apenas no Flamengo de Zico. Naquela ocasião, o CAP fez história ao estabelecer o até hoje imbatível recorde de público do Couto Pereira, estádio do arquirrival Coritiba. De resto, o rubro-negro paranaense resignou-se ao papel de mero coadjuvante. Como disse uma vez um ilustre torcedor, tratava-se de um clube de bairro – mais especificamente, veja só a ironia, de uma vizinhança conhecida como Água Verde.

Esse ilustre torcedor é ninguém mais, ninguém menos que Mario Celso Petraglia, o responsável por transformar aquele modesto time em um intruso no grupo dos maiores clubes do Brasil. Sua revolução começou no dia 16 de abril de 1995, data do fatídico Atletiba da Páscoa. Os alviverdes venceram tal partida por humilhantes 5 gols a 1 – chocolate que motivou Petraglia a tomar providências drásticas para mudar os rumos de sua equipe. À época, o Atlético vivia atolado em dívidas e convivia com uma estrutura precária, simbolizada pelos tijolinhos que alicerçavam o seu antigo estádio. Além disso, a agremiação frequentava com alguma assiduidade a Série B, divisão em que se encontrava naquele ano.

A goleada coxa-branca levou à renúncia do presidente atleticano da ocasião, a quem o então diretor Petraglia sucedeu. O novo mandatário, logo de início, organizou as finanças do clube e pôs de pé os dois maiores trunfos do CAP: a Arena da Baixada e o CT do Caju, ambos inaugurados em 1999. Enquanto o local de treino foi desenvolvido para ser, tal qual continua sendo, um dos melhores e mais modernos da América Latina, o campo de jogo ficou conhecido como “a primeira arena” de um Brasil hoje tomado por estádios desse tipo.

Essas medidas dão mostras do pioneirismo do dirigente, cuja aguçada visão não parava por aí. No mesmo período, ele chegou a propor uma fusão ao Coritiba e ao recém-criado Paraná Clube (fruto de um processo similar que unira Colorado e Pinheiros), com o objetivo de formar um único superclube paranaense capaz de bater de frente com os times do eixo Rio-São Paulo. Sua tese, até hoje nunca desmentida, de que uma cidade do tamanho de Curitiba não comportaria três grandes equipes em alto nível, não conseguiu convencer os cartolas rivais. Descartada tal alternativa, não havia nada o que fazer senão derrubar a hegemonia local que o Coxa exercera nos 80 anos anteriores e que o Tricolor da Vila ameaçava sequestrar naquele momento.

Para isso, o Atlético precisava de um título de primeiro escalão, objetivo igualmente almejado pelos paranistas e que apenas os coritibanos haviam conquistado no estado. Dito e feito: em 2001, sob o comando do técnico Geninho, do artilheiro Alex Mineiro e do futuro pentacampeão mundial Kleberson, os rubro-negros pareavam os verde-e-brancos e se sagravam campeões brasileiros, após uma final contra o também emergente São Caetano. A partir daí, o Furacão, sempre sob o comando de Petraglia – ora expresso, ora tácito –, passou a acumular boas campanhas e a se tornar um clube à frente de seu tempo. Em 2004, foi vice-campeão brasileiro, com direito à artilharia recorde de Washington Coração Valente. No ano seguinte, mais um vice-campeonato: dessa vez da Libertadores, perdida para o São Paulo, em meio à polêmica de ser obrigado a mandar o jogo de ida em Porto Alegre, pois a Arena da Baixada não tinha a capacidade exigida pela Conmebol. Inclusive, na ocasião, o estádio atendia pelo nome de Kyocera Arena, em face da primeira venda de naming rights na história do futebol brasileiro. Para 2006, a novidade foi a rara contratação de um técnico estrangeiro, o alemão Lothar Matthäus, cuja passagem pelo Brasil durou apenas 2 meses. E assim por diante.

A evolução constante do Atlético foi freada em 2009, quando Petraglia rompeu com a gestão do momento e se afastou do clube até 2011, ano em que a equipe foi rebaixada pela primeira vez desde 1994. O fracasso retumbante ensejou a volta do velho cartola para o seu quarto mandato como presidente – sem contar os períodos nos quais liderou o clube a partir de outros cargos diretivos. Logo em 2013, ano de retorno à primeira divisão, o CAP terminou a Série A surpreendentemente em terceiro lugar. Além da extraordinária campanha, aquela temporada marcou o início de uma nova fase de reestruturação interna. Contratado no período, o diretor técnico William Thomas, hoje no Coritiba, tirou do papel os ambiciosos planos de seu chefe para modernizar o Furacão à semelhança dos grandes clubes europeus. Para isso, o profissional montou o Departamento de Inteligência do Futebol, o DIF, uma espécie de centro de informações responsável, entre outras coisas, por gerir as contratações de atletas e treinadores, por implantar uma filosofia de jogo no clube, por uniformizar o comportamento tático do time profissional em todas as categorias de base e por embasar as decisões cotidianas tomadas nos treinos e nas partidas. Nesse último caso, destaca-se a pioneira parceria firmada com o sistema Exos, por meio do qual a condição física dos jogadores era periodicamente avaliada, a fim de definir se estariam aptos ou não para entrar em campo.

Tudo isso colocava o Atlético passos à frente das chamadas grandes equipes brasileiras, a despeito das receitas televisivas e de patrocínio consideravelmente menores. A fim de compensar essa disparidade, Petraglia se certificou de zerar quase todas as dívidas do clube. O único passivo que preocupava a agremiação era o da reforma da Arena da Baixada para a Copa do Mundo de 2014. As obras, bancadas por um acordo tripartite entre o clube, a prefeitura de Curitiba e o estado do Paraná, custaram mais do que o previsto, de modo que os entes municipal e estadual se recusaram a pagar pelo superfaturamento. O problema, então, foi empurrado em uma longa batalha judicial, na qual se alegou que o prejuízo deveria ser arcado igualmente entre as três partes, honrando o acordo de início firmado. Enquanto a Justiça não se pronunciava, o CAP ganhava tempo para tocar o seu ousado projeto.

Como forma de montar uma equipe mais competitiva sem gastar muito, Petraglia e DIF apostaram fortemente na formação de atletas. O Campeonato Paranaense passou a ser disputado com um time de aspirantes, essencialmente composto por jogadores sub-23, enquanto o plantel profissional fazia uma pré-temporada mais longa, frequentando torneios amistosos no exterior muito antes de a Florida Cup se tornar moda. À beira do campo, já antevendo o deserto de ideias no qual os treinadores brasileiros se afundariam, o Atlético passou a apostar em técnicos em início de carreira – como Doriva, Claudinei Oliveira, Eduardo Baptista, Enderson Moreira e Cristóvão Borges – ou vindos do exterior, vide o luso-brasileiro Milton Mendes, o hispano-brasileiro Fabiano Soares e o espanhol Miguel Ángel Portugal. A equipe se consolidou na Série A, mas faltava dar o próximo passo.

Sem conseguir encontrar um treinador pronto, a solução foi tentar formá-lo. Eis que, para isso, o sempre antenado Petraglia apostou no advento do manager, o técnico-gerente, à lá Sir Alex Ferguson, que escalava o time ao mesmo tempo em que assumia atribuições diretivas mais amplas, de tal sorte que as tarefas do dia-a-dia nos treinamentos fossem descentralizadas e delegadas a outros profissionais. Para assumir tal função, contratou-se Paulo Autuori, nome experiente escolhido a dedo para instruir seus sucessores à medida em que ganhasse cada vez mais espaço como dirigente. A partir disso, o time alternativo que disputava o estadual não apenas mais servia para revelar talentos dentro das quatro linhas, mas também fora delas. Por essa escola, passaram nomes como Rafael Guanaes, treinador do Mirassol, Bernado Franco, que recentemente treinou o Cuiabá, James Freitas e Bruno Lazaroni, auxiliares de Grêmio e Vasco, respectivamente. Dentre os que foram aproveitados no time de cima do Furacão, estão Eduardo Barros, (braço-direito de Fernando Diniz por anos e atual técnico do Amazonas), Wesley Carvalho (membro permanente da comissão técnica do Cruzeiro), António Oliveira (ex-Corinthians) e Tiago Nunes, o mais bem-sucedido de todos, que hoje se aventura na Universidad Católica, do Chile.

Entre uma passagem de Autuori e outra, Petraglia procurou ser criativo. Em busca de um novo manager, tentou Clarence Seedorf e acabou contratando Fernando Diniz, tirado do Guarani antes mesmo de sua estreia por lá. Muitíssimo autoral, o treinador tentou modificar a filosofia de jogo do Atlético, implementando a sua posse bola por aproximação no lugar do estilo vertical de pressão alta adotado pelo DIF e consolidado por seus antecessores. Porém, uma outra mudança – a passagem do 4-2-3-1, há anos utilizado, para o 3-4-3 importado dos tempos de Audax-SP – bagunçou o time e não foi bem assimilado pelo elenco, provocando a demissão de Diniz, sob protestos de quem o mandou embora. Ainda que longa, vale a leitura integral da nota de Petraglia sobre o episódio, que sintetiza a sua forma disruptiva e vanguardista de pensar o futebol:

“É fora do comum que em um terreno de extremo conservadorismo como é o futebol, o Atlético Paranaense tenha conseguido inovar tanto. Se tivéssemos tido medo de dar a cara à tapa lá no início, há 23 anos atrás, talvez ainda estivéssemos paralisados, presos à rivalidades locais que hoje são tão pouco significativas que não precisamos mais do que um time de aspirantes para prevalecer. Não houve nesse tempo todo uma só tentativa de trazer a modernidade que não tenha enfrentado fervorosa oposição, interna e externa. Mas conseguimos, fomos provando pouco a pouco que a inovação é o único caminho que temos para seguir, a única forma de fazer a diferença. Para se avançar tanto e em um tempo histórico tão pequeno, a desconfiança é o preço.

Vendo o que conseguimos, valeu a pena pagar para ver. O que temos hoje é a melhor infraestrutura para treinamento, para formação, o melhor e mais barato estádio do Brasil e um clube que deixou de ser a terceira força de um estado nulo representativamente para figurar hoje em 9º lugar no ranking de clubes nacionais, mesmo sendo apenas o 13º quando falamos de faturamento. Os oito clubes à frente de nós faturam três, quatro, cinco vezes mais.

É quase impossível subverter o status quo, a não ser surpreendendo. Sem orçamento que nos permita contratar os melhores jogadores e treinadores, temos que criar algo novo. Pois está claro que as condições são desiguais e que a ordem do futebol tende a perpetuar o que está estabelecido desde o século passado. A vinda do Fernando Diniz foi uma tentativa de fazer o diferente, de buscar um modo de atuar que fosse novo e próprio. Que nos fizesse depender menos dos mais caros profissionais do mercado e que colocasse a criatividade à serviço dos resultados. Assim poderíamos diminuir e ajustar essa lacuna.

Depois de inovar tanto na estrutura, inovar também na bola. Mas foi aí que enfrentamos as piores barreiras para pôr em prática esta iniciativa: o fanatismo e a paixão que cega até os atleticanos mais racionais. A pressão veio de todos os lados, todos com os últimos resultados debaixo do braço como a cristalina verdade que anunciava o fracasso do projeto. Análises da parte, não do todo, baseadas em medo, temor e vaidade, que vieram de torcedores, sócios, conselheiros e até de parte da diretoria administrativa, que numa reunião interna à revelia resolveu, por unanimidade, que seria a hora de mudar o planejamento inovador e partir para as velhas fórmulas e saídas conservadoras, com menores riscos.

Após conversa pessoal com o Fernando Diniz, em comum acordo, decidimos que seria o momento de descontinuarmos o planejado. O clima negativo tomou conta do cenário, a pressão tomou proporções insuportáveis, o desafio se tornou gigantesco e nenhum de nós estava disposto a enfrentar essa guerra passional e fomentada por uma mídia sem visão de futuro que não tem capacidade de ver muito além do último jogo.

O medo da mudança, o medo da vergonha, o medo do que os adversários vão falar, medo do que a mídia vai dizer, medo dos comentários em grupos fechados de whatsapp, medo, medo, medo. Não há nada que se possa fazer quando o medo domina a maioria, estabelece suas “verdades”, absorve até os cérebros que pensávamos ser imunes à auto depreciação. No futebol, vence o de sempre. Com pesar, abandonamos este projeto de criar um jeito próprio de jogar, que não foi implantado sem base científica, estudos e respaldo técnico. Não era a hora de declinar desta proposta. Sabemos que iniciativas como esta levam um pouco mais de tempo para darem o retorno que esperamos. Há a necessidade da compreensão de várias partes envolvidas.

Se poderia dar certo? Não tenho dúvida que sim. Vimos este time, com esta mesma proposta, chegar a ter momentos brilhantes no início. Jogos que fomos muito bem, que nos fez ser tema de debates e que despertaram a curiosidade pelo simples fato de termos surpreendido a todos. Quem garante que com ajustes não poderíamos manter o planejado? Se chegamos a jogar tão bem por que não poderíamos corrigir e voltar à rota?

Mas tudo isso não foi em vão. Plantamos a semente, apresentamos um caminho e preparamos o terreno para a mudança que em breve vai varrer o “de sempre” do mapa. Como o meteoro para os dinossauros. O perfil dos novos torcedores mudou, o modelo de torcidas organizadas como exércitos beligerantes também não tem mais lugar, e o formato dos campeonatos vai mudar radicalmente com o novo Mundial de Clubes, com 24 times. O futebol se tornou uma atração global, campeonatos locais já não têm o menor apelo. Temos dito isso desde a primeira vez que jogamos o campeonato estadual com um time alternativo, já ha alguns anos. Qual foi a reação? Conflito, oposição e falta de compreensão do que está por vir. Se não inovarmos, vamos ficar de fora dos grandes eventos, que hoje com a tecnologia se tornaram dominantes e em escala global.

O trem bala está passando mais uma vez e não tivemos o apoio para subir à bordo. Espero que o Atlético Paranaense siga fazendo a transformação que esperamos também no futebol, se antecipando e sendo protagonista das mudanças. Temos que nos antecipar ao meteoro. Quem se negar a entender, vai virar fóssil.

Estou saindo das quatro linhas, mas ninguém pode dizer que me faltou coragem para propor o novo. Meu sentimento no momento é de tristeza, mas minha consciência nunca esteve tão tranquila, ciente de que fiz o que pude antes que sejamos engolidos pela mudança.

Espero, de coração, que o amor incondicional ao clube se torne maior do que a paixão cega e fanática. Assim, poderemos continuar evoluindo.

‘É muito melhor arriscar coisas grandiosas, alcançar triunfos e glórias, mesmo expondo-se a derrota, do que formar fila com os pobres de espírito, que nem gozam muito nem sofrem muito, porque vivem nessa penumbra cinzenta que não conhece vitória nem derrota’ – Theodore Roosevelt.

Mario Celso Petraglia

Presidente do Conselho Deliberativo”

Petraglia encontrou em Diniz um meio perfeito de transpor o arrojo de sua administração para dentro de campo. A decepção com a saída forçada do profissional foi tamanha que o cartola chegou a ameaçar o afastamento das atribuições desportivas do Atlético, medida jamais concretizada de fato.  O histórico dirigente nunca escondeu que considera os torcedores um grande atraso para o futebol. Em inúmeros conflitos com os aficionados, já os chamou de “interesseiros”, “ingratos” e “egoístas”; já proibiu a entrada de instrumentos na Arena; já implantou a torcida única, batizada de “torcida humana”, para proibir os adversários de entrarem trajados com suas próprias cores; já aumentou drasticamente o preço do ingresso, para gentrificar o público das arquibancadas; já declarou que trabalha para que as organizadas desapareçam; e assim por diante. Todavia, muitas vezes taxado de autoritário, ou mesmo acusado de ter transformado o CAP na “Coreia do Norte” do mundo da bola, ele nunca deteve, como sempre sonhou, controle absoluto sobre o clube. E, se fosse mesmo um comunista, ele estaria mais para Lenin do que para Kim Jong Un, pois adotou a política de “um passo para trás e dois para frente” em sua revolução atleticana, a fim de vencer a resistência às mudanças de uma torcida considerada lúmpen.

Tal movimento explicitou-se na troca de Diniz por Tiago Nunes, o promissor treinador que conquistara o Campeonato Paranaense com o time de aspirantes naquele mesmo ano de 2018. O passo para trás era a volta do time ao tradicional 4-2-3-1, prezando menos pela posse de bola e mais pelas transições rápidas em busca do gol. Os dois passos para a frente vieram com o título da Copa Sul-Americana, que coroava duas das grandes iniciativas de Petraglia: o DIF e a aposta de transformar o Atlético em clube formador, por meio dos aspirantes. Assim como Nunes, pinçado no modesto Veranópolis e formado na base atleticana, boa parte do elenco campeão era formado por pratas da casa e contratações baratas. Bruno Guimarães, vindo do Audax-SP; Rony, trazido do Japão por um valor bem abaixo do mercado; Raphael Veiga, emprestado pelo Palmeiras; Nikão, cuja carreira se resumia a rodar por clubes médios e pequenos, e Thiago Heleno, com o mesmo perfil, juntaram-se a atletas vitoriosos em fim de carreira – como Paulo André, Lucho González e Jonathan (lateral ex-Internazionale) – e a egressos dos times de aspirantes, vide Marcelo Cirino, Renan Lodi, Léo Pereira, Santos e Pablo, para a conquista do primeiro título internacional do rubro-negro paranaense.

Para além de uma mera taça, aquele momento tornou-se paradigmático na história do clube. Enfim, Petraglia tinha diante de si a oportunidade perfeita para continuar caminhando à frente, dessa vez sem recuos. Sua primeira medida foi renomear a agremiação e modificar seu escudo, uniforme e demais símbolos: nascia ali o Athletico. Com ares minimalistas tipicamente europeus, a nova identidade visual do Furacão serviu de recado para o universo futebolístico: o Athletico não era mais aquele time de bairro, a terceira força do futebol paranaense, o colecionador de fracassos; trata-se agora de um gigante em ascensão, de uma nova força do ludopédio sul-americano – que, portanto, não deve ser confundida com o Atlético do passado e nem com os demais Atléticos do presente, seja o Mineiro, o Goianiense ou qualquer outro.

A despeito de tudo isso, a política de transferências continuou inalterada. Petraglia sabia que precisava acumular mais dinheiro antes de investir em um elenco mais caro de forma sustentável. Exímio negociador, ele soube valorizar seus ativos como ninguém e conseguiu façanhas como a venda de Pablo, à época com 26 anos, para o São Paulo, por inacreditáveis 6 milhões de euros, repondo-a com o empréstimo do ótimo centroavante argentino Marco Rúben, junto ao Rosario Central. De resto mantida a base do ano anterior, o Athletico teve uma das melhores temporadas de sua história, com direito à vitória por 3×0 sobre o Boca Juniors na Libertadores e o título da Copa do Brasil de 2019, eliminando o Flamengo de Jorge Jesus nas quartas-de-final. Mesmo quando, logo depois de levantar sua segunda taça de grande importância, Tiago Nunes abandonou o barco rumo ao Corinthians, a equipe não se abateu. Sob o comando interino de Eduardo Barros, o Furacão terminou o Campeonato Brasileiro em uma sequência invicta de 8 jogos, que o conduziu ao quinto lugar.

Sabendo que não seria fácil substituir Nunes, com quem se magoou profundamente, Petraglia apostou no retorno de Paulo Autuori, dessa vez para assumir uma função exclusivamente diretiva. O cargo de treinador, por sua vez, foi assumido por Dorival Jr. A pandemia da covid-19, no entanto, atrapalhou o agora ex-comandante da seleção brasileira, que sofreu muitos desfalques pelo vírus, inclusive o dele próprio. Mesmo afastado dos treinos e das partidas depois de contrair o coronavírus, Dorival foi demitido ainda no início do Brasileirão. Barros, que vinha treinando os aspirantes para ganhar mais experiência, conquistou uma nova chance no profissional, dessa vez malsucedida. Após uma série de maus resultados e o início de um flerte com o rebaixamento, Autuori teve de despendurar a prancheta, apagar o incêndio e preparar o terreno para um novo começo em 2021.

Depois de muito procurar e não encontrar um nome ideal no mercado, o Athletico retomou os planos de formar novos treinadores. Dessa vez, o escolhido foi António Oliveira, descoberto em sua passagem pelo Santos como auxiliar de Jesualdo Ferreira. O português até conseguiu um bom aproveitamento geral, de 58%, e levou o clube às semifinais da Copa do Brasil e da Copa Sul-Americana, mas entregou o cargo depois de – veja só – uma eliminação contra o FC Cascavel na semifinal do Campeonato Paranaense, naquele ano estendido até o fim da temporada por conta da covid-19. A solução encontrada surpreendeu por seu pragmatismo: Alberto Valentim, cuja carreira de treinador começava a entrar em baixa. Sem embargo, Petraglia o escolheu porque se tratava de um profissional que conhecia o clube – em especial suas estruturas e a forma com que era gerido por seu presidente –, visto que ali se aposentara como jogador e iniciara logo em seguida sua trajetória à beira dos gramados. Com Valentim, o Furacão eliminou outra vez da Copa do Brasil o Flamengo, em um 3×0 antológico no Maracanã, mas perdeu as duas pernas da final para o Atlético-MG, uma delas por 4 tentos a nenhum. Na Sula, por outro lado, veio o bicampeonato. E no Brasileirão, o flerte com o rebaixamento quedou-se mais sério do que no ano anterior: um mísero 14º lugar, esquecido por conta da vaga na Libertadores conquistada em Montevidéu, na decisão continental contra o Red Bull Bragantino.

Com mais um título na prateleira, apesar das más campanhas nos pontos corridos, o ano de 2022 poria à prova o novo status do Athletico no futebol sul-americano. Depois das gordas premiações por duas finais de Copa do Brasil em três anos e das vendas de Pablo, Bruno Guimarães, Renan Lodi, Santos, Léo Pereira, Rony, Marcelo Cirino, Khellven, Vitinho e outros destaques, a equipe finalmente estava pronta para ir ao mercado. Alexandre Mattos e Ricardo Gomes se juntaram a Paulo Autuori na direção do clube, mas uma disputa interna fez os dois últimos pedirem demissão ainda em abril. Fortalecido, Mattos investiu mais de 80 milhões de reais em nomes como Tomás Cuello, Augustín Canobbio, Alex Santana e Vitor Roque. De quebra, ainda sacramentou o retorno de Fernandinho, vencendo o interesse de Guardiola por mais uma extensão de contrato de seu homem de confiança no Manchester City. Para comandar essa turma, apostou-se de início em Fábio Carille, em um claro sinal de abandono à filosofia de jogo athleticana construída ao longo de muitos anos. Como era de se esperar, Petraglia enfezou-se rápido com o pobre futebol do atual treinador do Vasco e o mandou embora em apenas 21 dias.

Luiz Felipe Scolari foi o substituto, ao mesmo tempo com dois objetivos: preencher a lacuna de figura experiente deixada por Gomes e Autuori e colocar o CAP para competir por taças maiores. Deu certo. O clube voltou à parte de cima da tabela, concluindo o Brasileirão em sexto, e chegou à segunda final de Libertadores de sua história, a qual perdeu em mais um conflito com o Flamengo. A recorrente presença em decisões e em disputas contra adversários considerados gigantes levaram Petraglia a dar a seguinte declaração no programa Bola Da Vez: “A nossa rivalidade é com Flamengo, Corinthians. A nossa rivalidade hoje é com Real Madrid, quer dizer, com River Plate. Com o Boca Juniors. Rivalizar o Coritiba? Com todo o respeito né…”. E não parou por aí. O cartola aproveitou também para afirmar que “o Athletico passou o Santos de trator” e que, sobre o preço das SAFs de Cruzeiro, Botafogo e Vasco, “o Athletico vende isso em jogador”.

Como se pode notar, Petraglia se assemelha sobremaneira a Fernando Collor de Mello – sobretudo pela postura altiva e pela retórica afiada, mas não só. Ambos também guardam apreço pela extrema-direita (vale lembrar que o Athletico distribuiu máscaras de Sergio Moro aos seus torcedores em 2016 e fez campanha para Jair Bolsonaro em 2018), iniciaram suas trajetórias como azarões vindos de fora do eixo das cidades mais relevantes do país e compartilham da mesma frase de efeito: “o tempo é o senhor da razão”. E, pudera, o tempo de fato dava razão ao cartola: depois de quase 30 anos superando resistências e desafetos, o seu ousado projeto de transformar aquele mísero time de bairro em um dos grandes clubes brasileiros finalmente parecia se concretizar – ou estar muito próximo disso.

Três títulos importantes em quatro anos – além de, no mesmo período, um vice-campeonato de Copa do Brasil e outro de Libertadores –, cofres cheios, dívidas zeradas, estádio e CT de última geração: a confiança esbanjada por Petraglia não era à toa. As pequenas turbulências em 2020 e 2021, ocasionadas pelas diversas trocas no corpo diretivo e na comissão técnica, estabilizaram-se com as chegadas de Felipão e Alexandre Mattos. A promessa, feita ainda em 2015, de que o Furacão conquistaria o Mundial de Clubes até o ano de seu centenário, parecia cada vez mais crível. Após quase carimbar o seu passaporte para o Marrocos em 2022, a equipe teria mais dois anos para alcançar o objetivo, mais rica e calejada em grandes decisões do que nunca, sem o obstáculo derradeiro para o seu crescimento: o passivo do estádio. A batalha na Justiça chegava ao fim, com vitória do Athletico sobre a prefeitura de Curitiba e governo do Paraná. O sobrecusto da obra seria, enfim, custeado igualmente entre as três partes, reduzindo o impacto sobre os cofres do rubro-negro.

Para 2023, o único problema residia na área técnica. Aposentado do ofício de treinador, Scolari tornou-se dirigente e indicou Paulo Turra, o sucessor espiritual de Murtosa em sua comissão técnica, para alçar voo solo no vestiário da agora rebatizada (por 200 milhões de reais diluídos em 15 anos) Ligga Arena. Em poucos meses de trabalho, o estilo de jogo de Turra se provava mais pragmático, modorrento e instável que o de seu mestre, embora tão bem-sucedido quanto. O time ganhava jogos, mas quase sempre de virada, na base do sofrimento, o que deixava impaciente a Fanática Torcida. A pressão pelo mau desempenho passou a ser insustentável quando Felipão resolveu aceitar uma proposta para se desaposentar como técnico no Atlético-MG. Mesmo com mais de 73% de aproveitamento, campeão invicto do Paranaense, classificado às oitavas da Libertadores e em sétimo no Brasileirão, Turra foi demitido por um comitê gestor que assumira interinamente o lugar de Petraglia, hospitalizado.

Com a saúde fragilizada, o histórico cartola começava a se afastar do clube, ainda que não rompesse por completo sua ingerência nas decisões mais importantes. Não à toa, sua linha de raciocínio manteve-se hígida: sem boas opções no mercado, o clube apostou no interino Wesley Carvalho, que com esse status comandou a equipe por 6 meses, até o fim daquele ano. A aposta não logrou êxito: em oitavo lugar, o Furacão não garantiu vaga para a Libertadores do ano seguinte, de seu centenário, data-limite para que a promessa do Mundial se concretizasse. Ademais, a decepção se justificava também pelo costume que o Athletico adquirira em disputar a competição: entre 2017 e 2023, foram 5 participações de 7 possíveis; e, nas duas vezes em que não se classificou, sagrou-se campeão da Copa Sul-Americana.

O centenário, portanto, já não começava bem. Petraglia tentou compensar a ausência na Libertadores com um escrete competitivo, saindo mais uma vez às compras no mercado latino-americano. A exemplo do que fizera nos anos anteriores, quando trouxe Canobbio e Bruno Zapelli, joias das seleções de base uruguaia e argentina, respectivamente, o Athletico adquiriu a dupla paraguaia Mateo Gamarra e Romeo Benitez (emprestado logo em seguida para o Tigre-ARG); Leo Godoy, melhor lateral do futebol argentino; Lucas Di Yorio, bom atacante do León-MÉX; Gonzalo Mastriani, artilheiro do América-MG; e Felipinho, jovem volante de destaque da Ponte Preta. No total, quase 80 milhões de reais foram gastos, embora ninguém ocupasse o cargo de diretor de futebol, com saída de Alexandre Mattos. Para o comando técnico, Juan Carlos Osorio (aquele, ex-São Paulo) foi o escolhido, com a nítida intenção de tirar a equipe da retranca vivida com Carille, Scolari, Turra e Carvalho. O trabalho durou apenas 14 jogos, interrompido depois de apenas uma derrota, mais por conta do fraco desempenho e do mau comportamento de Osorio do que pelos resultados.

O escolhido para substituí-lo foi Alex Stival, o Cuca, athleticano assumido, que viu ali uma oportunidade de reiniciar a própria carreira “em casa” após a anulação de seu julgamento por estupro coletivo na Suíça. De início, o plano funcionou. Campeão paranaense, o Athletico entrou muito bem no Campeonato Brasileiro, liderando-o por algumas rodadas depois de derrotar o Palmeiras fora de casa. A crise, todavia, começava a se vislumbrar na Sul-Americana: duas derrotas seguidas, para os modestos Danubio-URU e Sportivo Ameliano-PAR, tiraram o Furacão da liderança do grupo E e o obrigaram a jogar a fase de playoffs. A isso, somaram-se três empates consecutivos no certame nacional, todos ocasionados por gols sofridos nos acréscimos do segundo tempo.

 No último deles, contra o Corinthians, na Baixada, Stival perdeu as estribeiras: distribuiu ironias aos repórteres durante a entrevista coletiva, discutiu com torcedores na zona mista e entrou em rota de colisão com dirigentes e jogadores no vestiário, momento no qual anunciou o seu pedido de demissão. Tal qual Jânio Quadros, o histórico técnico de Atlético-MG, Fluminense e Palmeiras pensou que os jogadores rubro-negros perceberiam o blefe e implorariam a sua permanência. Não aconteceu. Sob rumores de que estaria de malas prontas para o Cruzeiro, Cuca endossou no dia seguinte o seu desejo de desligamento. Petraglia, furioso, divulgou em suas redes sociais outra icônica nota:

Nestes anos todos de futebol já vivi muitas decepções, existem decepções e decepções, esta do Cuca foi a maior delas. Botamos a cara a tapa para amenizar seu desgaste havido com a torcida do Corinthians, que lavou a roupa suja do seu passado não resolvido! Prometo que não seremos doravante mais usados e abusados pelo mau caráter de pessoas que pela nossa resiliência aceitamos ajudá-las! Foi o que ocorreu com o Cuca, o qual nos usou e depois nos traiu! Jamais esperava um comportamento descontrolado que teve nos vestiários após o empate com o Corinthians!

Não entrarei nos detalhes porque nossos jogadores por mais que não tivessem garantido os 3 pontos nas últimas partidas não mereciam ouvir o que ouviram! Já definido perante os atletas que não ficaria e para nossa Diretoria foi para a entrevista coletiva se justificar e transferir a responsabilidade para a terceiros! Falou em números da folha de pagamento do clube sem nenhuma melhor informação! Não sabemos de onde tirou esses números!

Lamentável que um homem que se diz torcedor do Furacão, com 61 anos, tendo treinado grandes clubes não tenha o controle suficiente para esfriar a cabeça e não ter o “piti” como se comportou ontem! Que siga seu caminho, que encontre outro clube que tenha a boa vontade que o Furacão teve e que a torcida o acolha como a nossa mesmo contrariada o fez!

Instaurava-se ali uma crise sem precedentes, justo no ano de maior importância simbólica da história do clube. A primeira tentativa de contorná-la foi a aposta em Martín Varini, treinador uruguaio de apenas 33 anos, então no comando do Defensor Sporting, de seu país. Ex-auxiliar de Paulo Pezzolano no Cruzeiro, o jovem profissional teve um bom começo de trajetória, mas perdeu o vestiário assim que afastou Nikão, com quem não tinha um bom relacionamento desde a passagem de ambos pela Raposa, e foi demitido depois de alcançar um aproveitamento de 47% em 19 jogos. Àquela altura nas quartas-de-final da Sul-Americana e em 13º no Brasileirão, o Athletico pensava apenas em salvar o seu centésimo aniversário.

A fim de encarar o restante do mata-mata internacional e dos pontos corridos nacionais, Petraglia apostou novamente na fórmula dos velhos conhecidos: trouxe de volta Paulo Autuori, para sua terceira passagem como dirigente, e Lucho González, ídolo como jogador, que agora retornava como treinador. Assim como Valentim em 2021, os dois acumulavam insucessos recentes em suas carreiras, mas conheciam a casa. No caso mais recente, contudo, a trajetória vitoriosa no CAP não servia como justificativa suficiente para as contratações, visto que Autuori acabava de ser escorraçado do rival Coritiba, diante de um péssimo trabalho na montagem da equipe para a Série B, e Lucho tinha como única experiência na área técnica uma passagem malsucedida pelo Ceará, com 2 vitórias em 11 jogos.

A previsão óbvia de fracasso não demorou a se concretizar. Foram 7 derrotas nos 8 primeiros jogos, incluindo na estreia um 4×1 aplicado pelo Racing na Sula, em contraste com a vitória por 1×0 conquistada na ida sob comando de Varini. A despeito do passado inglório de Lucho à beira do campo e da pressão da torcida diante do acúmulo inicial de reveses, Petraglia apostou que a manutenção do ídolo argentino surtiria efeito. De fato, as quatro partidas seguintes lhe deram razão: foram dois triunfos, contra os xarás mineiro e goiano, e dois empates, frente a Bahia e Fluminense. Somado aos três pontos conquistados contra o Cruzeiro em meio ao período de desastres anterior, o saldo da sequência de invencibilidade levou o Athletico a depender apenas de si próprio para permanecer na elite do futebol brasileiro.

Como explicar uma virada tão súbita no desempenho rubro-negro? Ora, só poderia ser O Pacto. No dia 24 de outubro de 2024, a rede brasileira de computadores externou choque e perplexidade com vídeo, publicado nos perfis athleticanos, insinuando que o clube teria celebrado um acordo com o diabo para se manter na Série A. Repleta de mensagens subliminares e referências históricas, a peça publicitária exortava à torcida para que lotasse a Baixada e apoiasse o time durante os 90 minutos, com direito ao slogan “desligue o modo Arena e ligue o modo Caldeirão”. Diferentemente de outras torcidas, os rivais locais não se surpreenderam: para além de ditador, mafioso, coronel e outras qualidades, Petraglia sempre foi acusado por coxas-brancas e paranistas de mancomunar-se com o capeta em nome do sucesso de sua agremiação.

 Certas ocasiões, de fato, ensejavam a suspeita de que o sisudo mandatário possuía algum acordo macabro com forças ocultas de outro plano. A título de exemplo, na final da Sul-Americana de 2018, ainda na época dos dois jogos, o Junior Barranquilla desperdiçou um pênalti na partida de ida e outro na partida de volta. A ida e a volta terminaram em 1×1 e, na derradeira disputa por penais, os colombianos perderam outras duas cobranças. Na de 2021, por sua vez, a vitória por 1×0 sobre o Red Bull Bragantino sacramentou-se com um voleio espetacular de Nikão. O mais impressionante, no entanto, aconteceu na Copa do Brasil de 2019. O gol que selou o título contra o Internacional, em pleno Beira-Rio, gera incredulidade até hoje em quem o vê: Marcelo Cirino, considerado por muitos um “bagre” (na falta de melhor termo), recebe a bola na ponta esquerda e, pressionado de costas junto à linha lateral por dois marcadores, gira o corpo e toca a bola de calcanhar por debaixo das pernas de um (Edenilson), que simplesmente desiste do lance tanto quanto o outro (Rafael Sóbis). Cirino ainda adentra a grande área em câmera lenta, procede com um corte em Rodrigo Lindoso e rola a bola para Rony, quase na marca da cal, pregar o caixão do Colorado.

Nessas ocasiões – e em muitas outras – quem torcia contra o Athletico e conhecia bem a figura de seu presidente não teve dúvidas: aqueles jogadores estavam sob efeito de alguma força sobrenatural encomendada por quem os chefiava. Valendo-se da polissemia do termo Pacto, o Furacão aproveitou para, de uma só vez, assumir a fama de time do coisa-ruim e firmar um acordo de não-agressão com a torcida, com o objetivo de evitar um vexaminoso rebaixamento em pleno ano de centenário. O marketing ousado surtiu efeito, a despeito das críticas de religiosos e detratores habituais: a média de público subiu de 26 mil presentes, nos 13 primeiros jogos em casa, para 40 mil, nos últimos seis. Ademais, as cinco últimas partidas com mando do CAP no Brasileirão de 2024 propiciaram os cinco maiores públicos da história da Arena da Baixada. Inusitadamente, o certame recordista se deu no triunfo por 2×0 contra o modesto Atlético-GO, em uma 34ª rodada de campeonato, que contou com 42.177 presentes.

Tudo caminhava para um desfecho feliz. Nem os dois empates seguidos, nas 35ª e 36ª rodadas, tiravam a confiança athleticana na permanência por mais um ano na elite do futebol brasileiro. Bastava um novo duelo sem vencedores, em casa contra o Red Bull Bragantino – equipe que estava há três meses sem vencer – para evitar o descenso com um jogo de antecedência. Dadas as circunstâncias, seguir na Série A valia tanto quanto um dos vários troféus conquistados em tempos recentes. Os prognósticos, quase unânimes, indicavam que Petraglia escaparia do fracasso outra vez, triunfando epicamente sobre as crises e solavancos daquela temporada e se consolidando com um ente futebolístico infalível, de propriedades metafísicas indubitáveis. Eduardo Sasha, contudo, provou que o mandachuva rubro-negro é feito de carne e osso.

Diante de 41.626 testemunhas, segundo maior público da história da Baixada, Sasha, aquele, abriu o marcador logo aos 13 minutos da primeira etapa. O Caldeirão agonizou até os 28 minutos do segundo tempo, quando o bom volante Erick, hoje no Bahia, empatou a peleja – aquele resultado parcial rebaixava o time do energético e assegurava a equipe mandante na edição de 2025 do Brasileirão. A alegria durou pouco. O Massa Bruta reassumiu a liderança do placar apenas 8 minutos mais tarde, em mais um tento do seu artilheiro, veterano atacante apelidado com nome de filha de apresentadora infantil e com passagem por grandes clubes do cenário nacional. Findo em 1×2, o duelo representava a quebra de um jejum de 12 jogos sem vencer do Bragantino – além de ter sido a primeira vitória do técnico Fernando Seabra no comando daquele plantel. Irascíveis e desesperados, rubro-negros depredaram o próprio estádio e tentaram invadir o campo. Um deles, inadvertidamente, achou por bem exibir as próprias nádegas despidas em sinal de protesto. O gesto, flagrado pelas câmeras da transmissão, tomou conta da internet e transformou-se até em bandeirão da torcida coxa-branca, que o estendera no mais recente Atletiba. A épica remontada athleticana começava ali a virar tragédia.

Quis o destino que a última rodada opusesse dois xarás assombrados pela degola. Atlético-MG e Athletico se enfrentaram em Belo Horizonte na bacia das almas. Para depender só de si, o escrete paranaense precisava de uma vitória simples. Aos mineiros, bastaria o empate. O clima na Fanática Torcida era de derrota. Se, antes, permanecer era o mais provável, naquele momento parecia uma missão impossível. Ninguém mais confiava naquele elenco psicologicamente abalado e tecnicamente frágil, sobretudo atuando na casa do atual vice-campeão da Copa Libertadores. O status de contendedor da taça continental, todavia, escamoteava os sérios defeitos do Galo, que corria risco sério de queda e, não à toa, demitira o técnico Gabriel Milito dias antes da Batalha dos Atléticos.

Por conta dos outros resultados (vitórias de Fluminense e RB Bragantino contra Palmeiras e Criciúma, respectivamente), os mandantes ficaram por um fio: bastava o Paranaense marcar um gol para despachar o Mineiro à Série B. Tal cenário, aliás, esteve muito próximo de se concretizar. Em diversos momentos de um jogo bastante feio, o Athletico correu mais, brigou mais e se dedicou mais para vencer. No entanto, como é de praxe no futebol, ganhou o Atlético, depois de muito se esforçar para perder, com gol de Rubens no rebote de mais um pênalti decisivo perdido por Hulk. Depois de 12 temporadas consecutivas na Série A, o Furacão estava oficialmente rebaixado para a Série B do Campeonato Brasileiro.

Na mitologia grega, o jovem Ícaro, ao se encontrar preso no Labirinto da Ilha de Creta, recebeu do seu pai Dédalo um par de asas, coladas com cera de abelha, a fim de que dali fugisse pelos ares. Antes de decolar, entretanto, o rapaz foi alertado por seu genitor para que evitasse tanto a complacência quanto a arrogância. Desse modo, ele não poderia relaxar a ponto de voar muito perto da água, onde a umidade destruiria suas asas, tampouco poderia ele se ufanar a ponto de voar muito perto do sol, onde o calor derreteria a cera que as unia. Ícaro não se conteve e alçou-se a uma distância ínfima da luz, de modo que as penas que o sustentavam no ar se desagregaram e ele caiu, morrendo afogado no mar.

No futebol brasileiro, Mario Celso Petraglia incorpora, a um só tempo, as figuras do pai e do filho. Enquanto Dédalo, construiu as asas para o Athletico voasse de sua pequenez e tentasse se transformar em um dos grandes clubes do país; enquanto Ícaro, deixou que sua arrogância tomasse conta do trabalho sério que fazia – e, por isso mesmo, acabou punido com a queda. Por um lado, o histórico cartola forneceu as melhores condições econômicas e infraestruturais possíveis para seu clube: ergueu estádio e CT moderníssimos, zerou suas dívidas e engordou seus cofres, dando à agremiação uma das melhores saúdes financeiras do país, ao mesmo tempo em que conquistava troféus importantes. Por outro, a colheita dos primeiros frutos de seu árduo trabalho fê-lo sair do prumo: o desprezo diuturno ao torcedor e a grandes clubes brasileiros, a tentativa de emplacar rivalidades fictícias contra equipes de maior expressão internacional e a promessa de vencer o Mundial de Clubes até o ano do centenário sugerem que Petraglia elevou-se a si próprio a uma espécie de patamar messiânico, quase espiritual, acima de tudo e de todos.

Prova cabal disso foi a sub-reptícia mudança do nome oficial da Arena da Baixada, no início do ano passado, poucos meses após a venda dos naming rights. Enquanto ainda adota, por contrato, o nome de Ligga Arena, o empreendimento deixou de se chamar oficialmente Estádio Joaquim Américo Guimarães e passou a ser o Estádio Mario Celso Petraglia. A auto-homenagem, celebrada pelo séquito de apoiadores do presidente athleticano, é simplesmente patética. A soberba, emanada em gestos como esse, contaminou a gestão do futebol e cobrou o seu preço. Centralizador ao máximo, Petraglia não consegue emplacar um planejamento contínuo e duradouro no CAP desde a primeira saída de William Thomas do clube, em 2018. De lá para cá, o clube troca de treinadores e dirigentes como se trocando de cuecas estivesse. Boa parte das vezes, o profissional demitido não caiu por conta de sua incompetência, mas sim por causa da incompatibilidade com o gênio difícil de seu chefe.

O rebaixamento, em partes, explica-se por isso. Cuca e Martín Varini são treinadores muito mais capacitados que Lucho González. No entanto, Lucho ganhou preferência para terminar o ano comandando o elenco porque “já conhecia a casa”. A mesma justificativa foi utilizada, por exemplo, para a contratação de Alberto Valentim, outro treinador que acumula péssimos trabalhos em seu currículo, em 2021. Naquele ano, a estratégia funcionou e a Copa Sul-Americana foi conquistada. Ainda assim, o clube terminou próximo da degola, em 14º. Em 2024, a equipe acabou dentro da ZR e de mãos vazias. Da mesma forma, os dirigentes Alexandre Leitão, ex-CEO do Orlando City, e André Mazzuco, responsável por montar a base do atual Botafogo, duraram poucos meses no Furacão. Paulo Autuori, que vinha de um trabalho desastroso à frente do rival Coritiba na Série B, foi o escolhido para gerir o rubro-negro no fim da temporada, sob a similar justificativa de que estava familiarizado ao modo com que Petraglia comanda o cotidiano rubro-negro.

Para 2025, o Athletico contratou Rodrigo Possebon, ex-atleta com passagens por Santos e Manchester United, como diretor de futebol, e Mauricio Barbieri como técnico. O elenco passou por substancial reformulação. Os medalhões Pablo, Nikão, Thiago Heleno e Fernandinho foram dispensados. Para muitos – incluindo Petraglia – eles foram os verdadeiros responsáveis pela instabilidade dos treinadores e dirigentes ao longo do ano passado, visto que teriam formado uma “panela” no vestiário e prejudicado o ambiente interno do clube. Vários estrangeiros, contratados a peso de ouro, foram negociados: são os casos de Gamarra, Cuello, Mastriani, Di Yorio e Leo Godoy. Um dos poucos remanescentes, o jovem e habilidoso meia argentino Bruno Zapelli juntou-se a jogadores tarimbados na Segunda Divisão, como Luiz Fernando e Dudu (ambos ex-Atlético-GO); a bons valores de Série A, vide Léo Pelé (ex-Vasco) e Raul (ex-Bragantino); a jovens promessas, a exemplo de Isaac (ex-Fluminense), Felipinho (ex-Ponte Preta), Belezi e João Cruz; e a veteranos, tais quais Giuliano (ex-Santos, Corinthians, Grêmio e Internacional), Patrick (ex-Santos, São Paulo, Internacional e Atlético-MG) e Alan Kardec (ex-Vasco, Santos, Benfica, Palmeiras, São Paulo e Atlético-MG).

Bom no papel, o elenco começou o ano patinando. Caiu na semifinal do Campeonato Paranaense, diante de uma paulada de 3×0 desferida pelo Maringá em plena Arena da Baixada. Durante a competição, o desempenho irregular ensejou críticas de uma torcida já bastante machucada pela traumática queda para a Segunda Divisão. No jogo Athletico 1×1 Cianorte, ao avistarem Petraglia no camarote, aficionados o xingaram com intensidade. Em resposta, o presidente ostentou despudoradamente os seus dois dedos médios aos revoltosos – de quebra, ainda fez um gesto circular com o indicador frisando que a recíproca era verdadeira para o estádio inteiro.

O Athletico está classificado para a terceira fase da Copa do Brasil, depois de eliminar Pouso Alegre-MG e Guarany de Bagé-RS, e venceu o Paysandu fora de casa na primeira rodada da Série B. Com o maior orçamento da competição, é favorito ao acesso, tendo como principais concorrentes o rival histórico Coritiba, outras equipes acostumadas a frequentar a Série A – Goiás, Atlético-GO, América-MG, Cuiabá e Avaí – e pequenos clubes interioranos, com trabalhos interessantes de longo prazo – Novorizontino e Operário-PR, atual campeão paranaense.

Se o tempo é o senhor da razão, por muitos anos o relógio correu a favor de Petraglia. Agora, todavia, os ponteiros se inclinam na direção dos poucos corajosos atleticanos (sem H) que criticaram os desmandos do mandatário mesmo em seus momentos mais exitosos. Seja pela idade avançada, por motivos de saúde ou pelo desgaste com a torcida, esse deve ser o último mandato de Mario Celso, com previsão de fim em 2027. Inegavelmente, ele provocou transformações profundas no Athletico, muitas das quais melhoraram e engrandeceram a equipe. O rebaixamento justo no ano de centenário, no entanto, macula seu legado vitorioso. Pode ter sido apenas um acidente de percurso. Pode, por outro lado, ser um sinal de que o futuro em alto nível do Furacão esteja em xeque. Nos últimos 30 anos, é inegável que o controverso cartola fez muito mais bem do que mal ao seu clube. Se, não obstante, os seus feitos pregressos foram verdadeiramente capazes de consolidar um futuro estável, duradouro e vitorioso ao rubro-negro paranaense nos próximos 30, só o tempo dirá.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Rolar para cima