O QUE É O RELACIONISMO?

Capa O que é o Relacionismo?

O QUE O RELACIONISMO?

3 de março de 2023, O New York Times publica um artigo do correspondente-chefe de futebol Rory Smith. O texto, intitulado “Liverpool, Napoli e o Problema dos Sistemas”, faz referência ao treinador brasileiro Fernando Diniz e seu estilo de jogo ‘aposicional’.

14 de março. O analista tático e assistente técnico da Seleção italiana vencedora da Euro 2020, Antonio Gagliardi, escreve um artigo para o L’Ultimo Uomo perguntando “Está chegando ao fim a era do Jogo de Posição?”.

20 de março. O podcast espanhol, Play Futbol, lança um episódio analisando o jogo funcional e o “la pizarra” (quadro tático) de Fernando Diniz.

22 de março. A consultoria de dados, Analytics FC, questiona “O Juego de Posicion foi resolvido?”.

23 de março. O jornal sueco, Dagens Nyheter, entrevista o professor de treinadores da Norwegian School of Sport Sciences e acadêmico publicado, Mark O’Sullivan. O’Sullivan observa como a Argentina não jogou “um jogo posicional que outras equipes usavam. Eles voltaram a uma tradição própria chamada La Nuestra”.

25 de março. Escrevendo em sua página pessoal do Medium, Jon Mackenzie, do Tifo/The Athletic, lança “Adotando uma Posição sobre Relação no Futebol”.

O que está acontecendo no mundo da tática para que esses textos e publicações, cada um vindo de um canto diferente do mundo, tenham algum tipo de conexão? Cada vez mais termos como “aposicional”, “ataque funcional” e “relacionismo” vêm aparecendo no debate.

TRADUÇÕES

O Relacionismo (um termo que introduzi pela primeira vez em novembro de 2022) é um paradigma do futebol; é uma tradução adaptada no que Jozsef ‘Hungaro’ Bozsik chamou pela primeira vez de Jogo Funcional em 2018. O Relacionismo é uma lente através da qual o jogo pode ser teorizado, praticado e desenvolvido.

O Posicionismo também é um paradigma do futebol, embora fundamentalmente diferente.

Como foi explicado em O Positionista (o artigo de 21 de janeiro de 2023 que publiquei em colaboração com Gorka Melchor e Rene Maric), o paradigma Posicionista – e os estilos dentro desse paradigma, como o jogo de posição – usam o espaço abstrato e plano – uma perspectiva 2D do campo – como uma referência primária para a organização dos jogadores. O Relacionismo não.

Então, se não principalmente através de uma compreensão do espaço plano – e de onde estar e não estar nesse espaço – como os jogadores podem alcançar os níveis suficientes de organização necessários para jogar futebol de alto nível?

O Relacionismo não se resume apenas a jogadores ficando próximos uns dos outros, nem pode ser reduzido a jogadores “sendo amigos” uns dos outros.

Sob o paradigma relacionista, os jogadores se movem juntos enquanto se comunicam por meio de sinais e pistas muitas vezes indetectáveis por aqueles instruídos em várias outras correntes de pensamento futebolístico.

Imagine alguém que nunca tenha dançado sendo pedido para julgar uma performance de Tango, Capoeira ou Valsa. Seus olhos verão os corpos se moverem, mas eles não vão entender nem apreciar a complexidade dos movimentos.

Qualquer idioma desconhecido parece ser um absurdo no início, os sons e gestos podem não fazer sentido, mas com o tempo, os padrões se revelam.

Esse artigo irá demonstrar e explicar 7 padrões e conceitos comumente encontrados no Relacionismo:

  • toco y me voy
  • tabela
  • escadinha
  • corta luz
  • inclinação
  • diagonal defensiva
  • o yo-yo

Alguns desses termos estão sendo introduzidos aqui pela primeira vez, enquanto outros já estão bem estabelecidos no universo do Jogo Funcional.

Essa lista se trata de uma introdução ao tema, e não tem pretensão de exaurir o tema.

PARTE 1

O TANGO SE DANÇA EM DUPLA: TOCO Y ME VOY E TABELA

El Encuentro (O Encontro) por Raquel Forner (1975)

Toco y me voy

Já conhecido no inglês como “pass and move”, e no Brasil pelo próprio termo, sem tradução, esse simples conceito é vital para o entendimento do paradigma Relacionista. Popularizado no Brasil pelas narrações de Galvão Bueno, o “toco y me voy” é o movimento que o jogador faz adiante imediatamente após o passe.

No jogo posicional, esse movimento ocorre com muito menos frequência, com os jogadores sendo incentivados a fazer pequenos movimentos dentro de suas zonas para abrir linhas de passe no momento apropriado. Este ataque zonal leva às redes de passe simétricas e repetíveis amplamente compartilhadas pelos analistas. As conexões possibilitadas pelo toco y me voy não são nem simétricas nem repetíveis.

No Relacionismo, os jogadores têm liberdade para se mover em espaços muito maiores, podendo realizar esses movimentos à frente. Pense nas longas e elegantes passadas de Yaya Touré ou de Pogba arrancando pelo centro do campo.

O princípio pode ser mais ou menos rígido. Talvez apenas certos jogadores sejam incentivados a realizá-lo, ou em determinadas áreas do campo. Mas em seu estado mais potente, todo o estilo de ataque de uma equipe pode ser baseado na ideia do “toco y me voy”, de mudar constantemente a imagem, de chegar ao invés de estar.

Figura 1.1 – via Gorka Melchor

Na Alemanha Ocidental dos anos 1960, a Escola Bávara Relacionista foi construída em torno de um jogo extremamente proativo, onde o “toco y me voy” era a norma.

Em uma partida da fase de grupos da Copa do Mundo de 1966, a Figura 1.1 mostra como vários jogadores da Alemanha Ocidental — incluindo o lateral-esquerdo — não hesitam em avançar para a zona da bola assim que o passe foi feito.

Essa dinâmica sacrifica uma estrutura zonal geral da equipe em troca de estruturas mutáveis que se formam sem pré-determinação.

Figure 1.2


A Figura 1.2 mostra Riquelme executando um toco y me voy. Assim que o passe para frente é feito, ele acelera em direção ao espaço para chegar no momento apropriado.

O Relacionismo trata-se de movimento e mudança. É um processo de tornar-se e não de ser.

Figure 1.3

Com craques como Zico e Júnior, o time do Flamengo do início dos anos 80 (Figura 1.3) personificava o toco y me voy. Independentemente da posição ou zona do campo, os jogadores faziam movimentos para a frente assim que passavam a bola.

Em seu melhor momento, times como o Flamengo avançavam no campo com uma espontaneidade quase perdida no futebol atual, onde grande parte dos jogos se assemelha a um jogo de xadrez, estático e desgastante.

O free-jazz do Relacionismo difere em natureza das partituras clássicas dos estilos mais Posicionais.

Figure 1.4

Assim como o Jogo Funcional de seus vizinhos brasileiros, o estilo autóctone da Argentina, La Nuestra (Figura 1.4), é baseado na ideia do “toco y me voy” por todo o campo .

Quando os jogadores se harmonizam — como nessa jogada finalizada por Pablo “El Payaso” Aimar —, sequências deslumbrantes de movimentos para frente são possíveis.

Figure 1.5


Presenciamos os movimentos de La Nuestra, impulsionado pela fome dos jogadores em executar o toco y me voy, mesmo nos últimos momentos da Final da Copa do Mundo no Catar (Figura 1.5).

Figure 1.6


Hoje podemos ver esse estilo em times como o River Plate de Demichelis (Figura 1.6).

Podemos observar os jogadores executando o toco y me voy com intensidade, desorganizando as defesas adversárias.

Figure 1.7

Mesmo desde o apito inicial, equipes Relacionistas como o River utilizam o “toco y me voy” para bagunçar a organização defensiva do adversário (Figura 1.7).

É muito importante notar a diferença entre jogadores se movendo para receber o passe e a ideia mais posicional, como a de Guardiola, de esperar nas zonas para receber.

Muitas vezes, há muitas rotações e movimento em estilos mais posicionais, como o jogo de posição, mas a ênfase está em fazer a bola chegar aos jogadores em suas zonas e não no contrário, com os jogadores se aproximando da bola.

Tabelas

Se o toco y me voy é um princípio fundamental do Relacionismo, então sua alma gêmea é a tabela.

A tabela é encontrada onde quer que o futebol Relacionista seja jogado. Para o jogador que deseja toco y me voy, deve sempre haver um companheiro de equipe disponível para tabelar. Juntos, os dois jogadores se aproximam com a proposta de fazer uma tabela.

É claro que tabelas ocorrem em paradigmas como o Posicionista também — tabelas sempre acontecerão no futebol. Mas no Relacionismo, essas trocas são vistas como uma vantagem sistematizada. Assim como o “terceiro homem”, que é um conceito sistematizado no Posicionismo, também surgirá situacionalmente no Relacionismo.

Também é relevante notar que o termo “tabela” é mais comumente usado no Brasil. Na Argentina, a jogada é conhecida como “tirar paredes”, significando “levantar paredes”.

Figure 1.8


As grandes equipes alemãs dos anos 60 e 70 combinavam os avanços agressivos do toco y me voy com o entendimento recíproco da tabela.

Na Figura 1.8, o atacante Müller se apresenta para tabelar com Beckenbauer

No relacionismo, talvez o atributo mais importante de um número nove seja a capacidade de tabelar.

Figure 1.9


Na Figura 1.9, o atacante argentino Figueroa se posiciona em antecipação ao toco y me voy de seu compatriota Riquelme enquanto joga pelo Villarreal de Manuel Pellegrini.

Figueroa segura o defensor para abrir a linha de passe e tabelar com Riquelme. Um quarto argentino, Sorin, também se move para apoiar o ataque.

É importante notar que uma tabela não precisa ser feita em um toque (isso se perde na tradução para o inglês).

A tabela trata-se de timing e entendimento do próximo.

Figure 1.10


Na Figura 1.10, Soler tenta a tabela para conectar com um toco y me voy característico de Neymar.

Mas aqui vemos o problema de uma tabela fora de tempo. Soler tenta um passe de primeira, quando a melhor opção seria segurar um pouco para depois passar a bola.

Figure 1.11


Em um dos momentos mais icônicos do toco y me voy e da tabela, Sócrates joga para Zico e embarca em uma corrida heroica para conquistar o espaço atrás da defesa italiana (Figura 1.11).

Zico sabe que deve esperar seu companheiro chegar. Ele segura dois defensores antes de devolver o passe para o Sócrates, capitão da equipe.

Poesia em movimento.

Figure 1.12

Um dos melhores atacantes Relacionistas no futebol moderno é o Benzema. Sua habilidade de se aproximar de companheiros de equipe como Vinicius Jr e oferecer tabelas é vital para o estilo ofensivo do Real Madrid (Figura 1.12).

Benzema está feliz em se deslocar para os lados e recuar em direção ao portador da bola se isso significa que ele pode encontrar oportunidades para encontrar companheiros de equipe com uma tabela.

Enquanto equipes mais posicionais usam estruturas regimentadas e passes entre zonas para facilitar a progressão da bola, o Real de Carlo Ancelotti depende muito dessas trocas relacionais para avançar e criar chances de gol.

Figure 1.13

Nesta temporada, a equipe do Napoli de Luciano Spalletti está demonstrando um estilo animado por jogadores como Kvaratskhelia, que desejam vagar livremente em busca de oportunidades para se relacionar com os companheiros de equipe.

A Figura 1.13 mostra Kvaratskhelia movendo-se para dentro vindo da esquerda para tabelar com o meio-campista Zielinski, que se havia se aproximado da zona da bola.

Observe como os três meio-campistas do Napoli estão próximos à zona da bola. Em uma organização posicional, seria mais comum ver os números 8 (interiores) ocupando os meios-espaço(a janela entre laterais e zagueiros), no espaço entrelinhas do adversário

Figure 1.14

O gol de Jack Wilshere contra o Norwich em 2013 (Figura 1.14) sintetiza o futebol Relacionista do Arsenal de Arsene Wenger.

Wilshere tabela com Cazorla, tabela mais uma vez com Giroud e se move para infiltrar na defesa adversária e finalizar a jogada com um belo gol.

Figure 1.15

Na Copa do Mundo de 2022 no Catar, o técnico brasileiro Tite implantou um sistema posicional com os jogadores de lado instruídos a esperar nas laterais para fixar os laterais adversários.

Mas nas quartas de final contra a Croácia, os atacantes brasileiros convergiram para o centro e criaram as condições para um jogo mais Relacionista (Figura 1.15).

Neymar (que havia sofrido com a falta de oportunidades de tabela durante o torneio) finalmente encontrou camaradas com mentalidade semelhante suficientemente próximos para dançar juntos. Como com Wilshere, foram duas tabelas sucessivas na entrada da área, primeiro com Rodrygo e depois com Paquetá, que deixaram a defesa croata perseguindo sombras.

Toco y me voy e a tabela são os parceiros de dança perfeitos. Foram feitos um para o outro. A “mesa” é a metáfora no Brasil, “derrubando paredes” na Argentina. Talvez cada cultura do futebol possa desenvolver sua própria gramática e linguagem futebolística em relação a esses motivos emergentes.

Esses “conceitos táticos” não foram inventados por treinadores. Surgiram dos próprios jogadores. As conexões e padrões são auto-organizados.

PARTE 2

STAIRWAYS TO HEAVEN: ESCADINHAS E O CORTA LUZ

‘Relatividade” por M.C. Escher (1953)

“Escadinhas”

Nosso mundo é dado significado por metáforas, não por números. E as metáforas de orientação vertical são algumas das mais significativas de todas. Dizemos que nos sentimos “para cima” quando estamos felizes e “para baixo” quando estamos tristes.

Por algum estranho acidente da história, foi decidido que o jogo formalizado de futebol deveria ser jogado em um retângulo com os gols em cada um dos lados mais estreitos.

Com essa decisão, o futebol se tornou um jogo de se mover “para cima” ou “para baixo” no campo. Uma equipe em posse deve encontrar maneiras de subir em direção ao gol enquanto mantém a bola longe do adversário.

É claro, nossa ferramenta mais comum para subir são as “escadas”. No Relacionismo, o conceito de uma estrutura diagonal de altura crescente se manifesta através dos jogadores trabalhando juntos, formando linhas diagonais para facilitar o movimento da bola de uma altura para a próxima. Essas linhas diagonais são conhecidas como escadinhas.

O conceito de escadinhas vem das orientações diagonais que começaram a surgir dentro das formações das equipes brasileiras do início ao meio do século 20.

Mais do que títulos, Flávio Costa criou um estilo que se tornou modelo de vitória e brasilidade a partir da década de 1940. Todos queriam imitá-lo. O técnico carioca aprendeu as lições do Danúbio com Dori [Kurschner], e criou um estilo que não dependia de numerações táticas com suas simetrias. Costa elaborou um sistema onde o time se posicionava a partir das diagonais e criava assimetrias por todo o campo. Essas assimetrias formavam “escadinhas” para progressão de cada jogada.

József Bozsik

Brasil 1950 (via József Bozsik)
Brasil 1958 como Pele encontrando conexões no ângulo entre duas diagonais (via József Bozsik)

Ao longo do tempo, parece que esse conceito de arranjo diagonal se tornou um ponto de referência compartilhado para jogadores que cresceram em uma cultura onde as escadinhas são comuns.

Não demorou muito para que essas estruturas começassem a surgir e desaparecer quase aleatoriamente. Surgindo em todo o campo — uma hora você as vê, outra hora não.

A capacidade de identificar escadinhas revela portas onde antes só havia paredes, passagens secretas através de blocos defensivos firmemente bloqueados.

Figure 2.1

A Figura 2.1 mostra como os jogadores do Grêmio de Renato Gaúcho se organizaram em uma estrutura diagonal de escadinha.

Observe como o arranjo carece do que seria chamado de “superioridade posicional”. A vantagem surge através de interações próximas na zona da bola.

Figure 2.1


Na Figura 2.1, podemos ver como a escadinha pode facilitar a penetração numa defesa fechada.

Neste exemplo, os atacantes do Grêmio usam toco y me voy e tabelas para “subir a escada” da estrutura diagonal de escadinha.

A velocidade, fluidez e coesão da jogada destroem a organização defensiva do Internacional.

Corta Luz

Antes de continuarmos nossa jornada, devemos nos familiarizar com um conceito que está intimamente relacionado com a escadinha.

O movimento em si é semelhante a uma “finta” ou “simulação”. Um balanço do corpo para enganar o defensor. Um ato de astúcia e desorientação meticulosamente cronometrado.

Mas a metáfora de “apagar as luzes” sobre o defensor é mais potente do que seus equivalentes em inglês. Afundar o defensor em uma escuridão repentina captura perfeitamente a estética de enganar um adversário desprevenido.

Já é ruim o suficiente para um defensor ser pego em uma escadinha. É ainda pior quando as luzes são apagadas.

Figure 2.2

Zico se aproxima do portador da bola, Junior, movendo-se entre ele e o atacante Serginho durante a partida da Copa do Mundo de 1982 contra a União Soviética para formar a escadinha (Figura 2.2).

Zico realiza um corta luz e se move para fazer a tabela com Serginho.

Figure 2.3

Um ano antes, em 1981, vemos Zico novamente executando o corta luz como o passo intermediário de uma escadinha de três jogadores (Figura 2.3).

Nesta ocasião, isso faz parte da grande vitória por 3 a 0 do Flamengo sobre os campeões europeus Liverpool na Copa Intercontinental.

Aqui, vemos a escadinha sendo usada como um meio de progredir de forma profunda pelo centro do campo.

Figure 2.4

A Figura 2.4 mostra uma escada mais vertical do São Paulo de Tele Santana em 1992 (Um jovem Cafu faz o passe horizontal para configurar a escadinha central).

Müller engana dois defensores com um belo corta luz antes de fazer um movimento para a tabela, que é recusada em favor de uma virada e finalização.

Figure 2.5

Na Copa do Mundo de 1998, vemos a Argentina implantando uma escadinha contra a Inglaterra (Figura 2.5).

Ortega faz o passe e Verón lança seu feitiço em Batty com um corta luz. Verón se move para a tabela para ir em direção ao gol, mas, desta vez, Batistuta falha em completar a jogada.

Figure 2.6


O Manchester United de Sir Alex Ferguson favorecia um estilo de jogo direto, físico e acelerado, que muitas vezes apresentava interpretações Relacionistas em vez de aderir a princípios estritamente posicionais.

Um dos melhores exemplos é este gol clássico de escadinha-corta luz-tabela marcado por Keane, Yorke e Cole contra o Barcelona no Camp Nou em 1998 (Figura 2.6).

Figure 2.7

Yokohama, 2002. A final da Copa do Mundo no Japão. O Brasil executa uma escadinha-corta luz ao longo de um eixo ligeiramente mais horizontal (Figura 22).

Rivaldo faz o passo intermediário da escada com o corta luz e Ronaldo finaliza a jogada.

Figure 2.8

Neste ponto, o Fluminense de Fernando Diniz se tornou o exemplo paradigmático do jogo Relacionista. O método de Diniz é visto por alguns como a próxima evolução do “jogo funcional” brasileiro.

As aproximações radicais do Fluminense levam a uma imensa variedade de escadinhas.

Na Figura 2.8, o corta-luz é feito por Ganso.

Figure 2.9

A Figura 2.9 mostra um corta luz despretensioso de Ganso, que mal se move enquanto observa a bola passar entre suas pernas com destino à Arias

Figure 2.10

Os jogadores do Fluminense frequentemente estão próximos uns dos outros, o que muitas vezes leva a combinações em espaços curtíssimos.

Arias resolve o problema com um toque elevado para Ganso, que faz o corta luz. Tanto Ganso quanto Arias fazem corridas para frente para receber novamente.

Enquanto Arias espera com a bola, você pode ver Ganso olhando por cima do ombro enquanto Cano chega para se posicionar para a escadinha. Uma vez que os três passos da escada estão no lugar, Arias inicia a jogada.

A Figura 2.10 é um exemplo perfeito de três jogadores interpretando a situação do jogo juntos em relação às metáforas da escadinha e corta luz.

Figure 2.11


Na Figura 2.11, somos presenteados com todos os quatro de nossos conceitos juntos.

Ganso inicia a jogada de forma profunda com um toco y me voy e tabela com o Andre que se aproxima. Em seguida, é formada uma escadinha dinâmica de três jogadores, com Cano realizando o corta luz.

Toco y me voy — tabela — escadinha — corta luz.

Figure 2.12

E, na Figura 2.12, a equipe de Diniz nos lembra do famoso desenho de Escher ao inverter a escadinha para facilitar o gol de corte de Ganso com um lindo calcanhar.



A escadinha é um método Relacionista de progressão da bola. Quando essas estruturas elegantes surgem do caos do jogo, elas proporcionam um momento de oportunidade para a equipe atacante progredir.

Os meios de progressão da bola são redistribuídos para a inteligência coletiva dos jogadores. A estrutura de posse é reconceituada como um processo de transformação, em vez de algum esquema pré-planejado fixo elaborado pelo treinador.

Se o xadrez é uma metáfora apropriada para o jogo posicional de posse, então talvez o Relacionismo seja mais como um jogo caótico de “Cobras & Escadas”.

Não importa o quanto eles se esforcem, não importa o quanto de imagens eles dissecam, o exército de analistas táticos adversários nunca saberá onde ou quando uma escadinha aparecerá em seguida. E mesmo se o defensor perceber de repente que está no meio de uma escada em movimento, eles têm pouca chance de manter o equilíbrio uma vez que as luzes se apagam.

PARTE 3:

O Eterno Retorno: Inclinação, A Diagonal Defensiva e o Iô-Iô.

“Criança geopolítica observando o nascimento do homem novo” por Salvador Dali (1943)

Inclinação


Até agora, está bem estabelecido que um traço comum das equipes mais Relacionais (especialmente na América do Sul) é os jogadores se reunirem em torno do portador da bola. Isso muitas vezes acontece no lado do campo.

Os motivos ofensivos que foram discutidos são melhor facilitados pela aproximação dos jogadores, pois se as distâncias entre os jogadores forem muito grandes, jogadas como toco y me voy, tabelas e escadinhas se tornam mais difíceis de serem realizadas.

Figure 3.1

Figure 3.2

Na Figura 3.1/3.2, podemos ver os jogadores do Fluminense se aproximando em torno da bola no lado esquerdo. Essa orientação lateral pode ser referida como inclinação. A aglomeração na zona da bola cria as condições para interações progressivas e passagens emergirem.

As organizações assimétricas inerentes à inclinação são emblemáticas da suspeita do Relacionismo Sul-Americano em relação à uniformidade e estrutura linear.

Um dos benefícios menos considerados da inclinação é que ela permite que a equipe em posse sobrecarregue a bola enquanto minimiza o risco de sofrer contra-ataques na transição defensiva.

A maioria das equipes Posicionais teme comprometer muitos jogadores na zona da bola devido ao risco percebido de deixar muito espaço aberto para o oponente atacar no caso de uma perda de posse. As equipes Posicionais geralmente preferem deixar quatro/cinco jogadores atrás da bola em uma estrutura central (geralmente uma disposição 2-3 ou 3-2). Isso é conhecido como ‘atacar defendendo’.

Figure 3.3 Tite’s 3–2–5 positional structure with 3–2 rest defence — via Mauricio Saldana


As equipes Relacionais colocam muito menos ênfase em uma defesa em repouso estruturada. Elas estão mais interessadas em permitir que mais jogadores tenham acesso à zona da bola. Mas e quanto ao risco de contra-ataques? É aí que a inclinação é benéfica.

É comum ouvir treinadores falarem sobre a lateral sendo o ‘melhor defensor’ – nenhum jogador jamais conseguiu driblá-la. É por isso que frequentemente vemos armadilhas de pressão armadas no lado do campo. A lateral atua como um defensor extra.

Mas também é verdade que a lateral pode ser um defensor extra em repouso. Ao atacar com uma inclinação, equipes Relacionais como o Fluminense de Diniz têm um mecanismo de defesa em repouso incorporado. Se a posse for perdida, é mais fácil para os jogadores de contra-pressão acessarem a bola, já que o adversário tem menos ângulos de escape.

Figure 3.4
Figure 3.5
Figure 3.6

Nas Figuras 3.4/3.5/3.6, o Fluminense está atacando inclinando-se para a direita. Sempre que a bola é perdida, a orientação lateral dos jogadores próximos oferece ao Fluminense a oportunidade de contra-pressionar agressivamente com numerosos jogadores em conjunto com a linha lateral como uma barreira rígida.

Os jogadores do Fluminense também já estão atentos à jogada em relação próxima à bola. Eles estão ‘se movendo com a bola’ na zona da bola. E devido a esse aspecto sutil de percepção, eles estão perfeitamente preparados para continuar esse engajamento com a bola sempre que o momento de transição chegar.

Diagonal defensiva

Outro aspecto importante em uma defesa em repouso Relacionista – e outro subproduto da inclinação – é a diagonal defensiva. Simplificando, a diagonal defensiva é um movimento para dentro realizado pelo lateral oposto para marcar o ponta adversário que está longe da bola ou simplesmente fechar o espaço interno.

Figure 3.7
Figure 3.8 — via Mauricio Saldaña

As Figuras 3.7/3.8 mostram como, durante a inclinação no ataque, o lateral do lado oposto se move diagonalmente para dentro para marcar o ponta adversário ou fechar o espaço central. Isso é a diagonal defensiva.

É claro que o lateral que realiza a diagonal defensiva pode rapidamente se transformar em uma ameaça de ataque com uma troca de jogo bem cronometrada. A inclinação do ataque atrai o bloqueio defensivo do adversário para se deslocar de acordo, muitas vezes deixando espaço aberto no lado oposto para o lateral atacar.

Foi essa dinâmica que possibilitou a marcação talvez do gol mais famoso da história do Relacionismo/Funcional.

Figure 3.9 — via József Bozsik

Na imagem abaixo, Carlos Alberto, que estava encarregado da diagonal defensiva, vê uma oportunidade de atacar o espaço na defesa italiana, atraída pela inclinação à esquerda do ataque brasileiro, e avança. O resto é história.

Figure 3.10
Figure 3.11

A Figura 3.11 mostra a influência da Escola Bávara no Relacionismo do Liverpool de Jürgen Klopp.

Os sul-americanos, Diaz e Fabinho, compartilham a bola com Thiago em uma inclinação para o lado esquerdo. O ponta direita Salah chega centralmente para deixar o lado direito do campo completamente vazio, exceto por Trent.

Uma vez que o bloqueio do Villarreal tenha sido desequilibrado, a bola é agressivamente transferida para Trent no corredor direito.

O Liverpool marca com as mesmas dinâmicas usadas pelo Brasil de 1970. Mas essa interpretação mais alemã acelera a virada para o lado aberto.

O Iô-Iô

O conceito tático final neste guia para o Relacionismo é o necessário para retornar ao início. O iô-iô (nomeado por Gorka Melchor) é uma jogada sutil, mas crucial.

Na maioria das interpretações do futebol, é prática padrão para o treinador pedir aos jogadores para “virar o jogo” caso a zona da bola esteja lotada de defensores. Os treinadores gritam para que seus jogadores “se abram” e “mudem de lado” para evitar a pressão intensificada do oponente na zona da bola.

Como vimos na Figura 3.10, há momentos em que as trocas são apropriadas para penetrar no lado oposto. Mas, no Relacionismo, as trocas não devem ser feitas apenas por fazer. Muitas trocas destroem a capacidade de manter uma inclinação coerente e todos os benefícios que dela advêm.

Então, como mantemos uma inclinação enquanto aliviamos a pressão na zona da bola?

A solução é o iô-iô.

Figure 3.12
Figure 3.13

Nas Figuras 3.12/3.13, o Fluminense está inclinando-se para a direita. Durante a inclinação, às vezes é necessário jogar para o centro do campo, longe da zona da bola lotada.

Mas, quando o jogador interno recebe a bola, em vez de abrir o corpo para encontrar uma virada de jogo, ele volta para onde a bola veio e devolve a bola para o lado da inclinação original.

Como se estivesse convocando o espírito de um capoeirista oscilando hipnoticamente de um lado para o outro, esse recuo, ou ‘retorno’, é um iô-iô.

Figure 3.14

Na Figura 3.14, Cano passa de volta para o defensor Manoel para aliviar a pressão da zona da bola na inclinação do lado direito.

Mas Manoel não está interessado em mudar de lado. Mesmo que estivesse, o lateral esquerdo Calegari se aproximou para realizar a diagonal defensiva.

Manoel joga o iô-iô de volta para a inclinação do lado direito, de onde as aproximações próximas do Fluminense proporcionam ao lateral direito, Xavier, e ao meio-campista, Martinelli, as oportunidades de toco y me voy e progredir.

Os movimentos para a frente criam as condições para um padrão de escadinha-corta luz entre Arias, Xavier e Martinelli.

Figure 3.15


Na Figura 3.15, o Fluminense está inclinado para a esquerda. A bola é passada para dentro para o zagueiro central, Nino, para aliviar a pressão da zona da bola lotada.

Mas, em vez de abrir o jogo para o lateral direito Xavier (que se abriu da diagonal defensiva estreita), Nino joga curto para André, que devolve a bola para a inclinação do lado esquerdo com um iô-iô.

Mais uma vez, vemos o Fluminense se aproximando para encontrar uma escadinha-corta luz (desta vez duas em rápida sucessão) após o iô-iô.

Também observe como a escadinha final inclui o ponta direita Arias, que abandonou seu posto para vir jogar com seus companheiros de equipe na inclinação do lado esquerdo.

Enquanto a Inclinação – e seus subprodutos, a diagonal defensiva e o iô-iô – são motivos clássicos dos estilos Relacionais sul-americanos, interpretações europeias como as escolas Bávara e Danubiana estão mais inclinadas a apresentar sobrecargas centrais e combinações verticais mais rápidas.

A Inclinação incorpora a assimetria que é fundamental para a abordagem Relacional. Trata-se de desequilibrar o oponente. A Inclinação resiste à inércia estagnante da rigidez simétrica e cria dissonância e ambiguidade para a estrutura defensiva do oponente.

Quando um capoeirista se inclina para trás em um pé e se move para o lado, é exatamente nesse momento – quando o oponente muda o equilíbrio de um pé para o outro – que um golpe decisivo pode ser desferido.

METÁFORAS DE ORGANIZAÇÃO

“‘O Filho do Homem” por Rene Magritte (1964)

Então, de que forma os jogadores encontram sentido em um sistema de jogo relacional? Como ilhas de ordem emergem no meio de um mar revolto?

O Relacionismo resolve esse problema através do uso de metáforas de organização alternativas às do hoje hegemônico Posicionismo. Metáforas essas que são construídas através de um amplo repertório de conceitos e ideias táticas.

Ao contrário da orientação espacial pré-determinada característica do Posicionismo, no Relacionismo os jogadores constroem suas metáforas a partir das condições momentâneas de seus companheiros e adversários.

Enquanto o Posicionismo racionaliza previamente o espaço para calcular os riscos e controlá-los, o Relacionismo flerta livremente com o caos e com as probabilidades.

Todos percebemos o mundo através do prisma de nossa própria percepção,organizando a realidade em diálogo com os objetos e padrões que nos são mais familiares. A questão é: quais metáforas você está utilizando?

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