O beijo da trave

“O lateral-esquerdo Benedetti recebeu dentro da área e disparou cruzado. A bola foi e ‘smack!’ deu um beijinho na trave esquerda do Cássio, que apenas olhou!”.

O constrangimento pelo recurso onomatopeico empregado pelo repórter, embora tão batida fosse a metáfora de “beijar a trave”, esteve perceptível na voz de Oscar Ulisses. O locutor decano, no entanto, fez de transigente, garantindo a intimidade entre equipe de transmissão e ouvinte. Faz parte do simbólico do rádio, a conexão psíquica – o carisma do “meio quente”, em oposição à frieza mecânica da tevê.

Smack – a segunda bola na trave do Estudiantes de La Plata. Desta vez, Rollheiser, uma espécie de Roger Guedes platense, partiu da ponta-direita e soltou a canhota, no mesmo poste esquerdo. O microfone à beira do campo mandou mais um beijo.

O beijo da sorte corintiana.

Naquela mesma Buenos Aires, em 1976, dois homens, Valentín Arregui, militante de esquerda e preso político do regime de Videla, e Luis Molina, homossexual velado e acusado de abusar de um menor, dividiram a cela e tornaram-se cúmplices. Molina narrava histórias de filmes que havia assistido, as quais eram um grande entretenimento a Arregui, que recriava os enredos usando a força da imaginação. Dois prisioneiros, físicos e psicológicos, diante de um exercício de estesia.

Essa é a história de O Beijo da Mulher Aranha, que veio ao mundo como romance do argentino Manuel Puig, e se tornou um enorme sucesso no Brasil, onde o escritor se radicou e concedeu os direitos artísticos para o diretor Héctor Babenco transformá-la em um clássico instantâneo do cinema.

Não há beijos e nem alguma mulher-aranha na obra, apenas faculdades simbólicas, criações mentais, rabiscos da psique. O poder da oralidade e do imaginário. Igual ao rádio.

No segundo tempo, a televisão já estava desligada. Estava uns 30 segundos à frente da transmissão radiofônica, o que era basicamente jogar o rádio fora.

O Corinthians não atacava, e tentava se defender como podia. Sempre vai bem nos pênaltis, mas para levar a decisão para a marca da cal, podia sofrer no máximo um gol, que já havia saído com um minuto de bola rolando.

A esperança eram duas: Cássio e os três postes que o protegem. Quando não dava arqueiro, dava poste – mais duas vezes nos 45 finais. Rollheiser novamente e Ascascíbar. Smack! (e Ulisses já não dizia nada). Os argentinos pressionavam, mas a sorte continuava sorrindo ao lado timoneiro. Sem a imagem é mais fácil sonhar, mas a preocupação pode ser ainda maior.

Pênaltis!

Os 30 milhões fecharam os olhos. São Jorge, que é o protetor corintiano, invadiu a noite portenha em formato de três traves. Cássio defendeu a batida de Rollheiser, enquanto Lollo e Ascascíbar pararam nos postes, indo morar nos sonhos de Valentín Arregui.

Então, era hora de pensar na crônica do jogo. O título vem antes de tudo, pois serve para guiar o restante da ideia.

“Salvos pela trave”, ou “santa trave”, as duas opções primárias. Certamente os veículos grandes as disputariam a tapas. Quais chegarão primeiro?

“A trave espírita”? Clichê em demasia, não acham?

“Estudiantes-de-La-Trave”? jocoso, pra não exatamente alcançar a poética que a crônica demanda;

Não dava outra: o beijo da trave.

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