“Pep costumava a dizer que ele é o técnico mais defensivo do mundo”
-Mikel Arteta, técnico do Arsenal
Na temporada passada do futebol europeu, ou melhor especificando, inglês (2022/2023), vimos uma nova tendência tática surgir nas duas equipes que disputaram o título da Premier League. Arsenal e, principalmente, Manchester City foram a campo com quatro zagueiros no XI titular diversas vezes ao longo dos campeonatos que disputaram. Sim, quatro zagueiros. Uma linha defensiva completa de beques. E isso vem se intensificando na temporada atual.
O texto a seguir tenta não só explicar o funcionamento desse sistema recheado de torres de 1,90m, mas compreender as motivações por trás do caminho escolhido pelo técnico mais influente do mundo, Pep Guardiola, e analisá-las criticamente. Vamos ponto a ponto.
1- Questionamento
Além de ficar impressionado(a) com o fato de Guardiola conseguir fazer um time com um zagueiro de volante jogar um futebol vistoso e eficiente, você já se perguntou qual a real vantagem obtida através dessa escolha? Qual a intenção por trás? O que o treinador idealizou em seu plano e qual o impacto material disso no jogo?
É realmente intrigante e encantador ver o sistema funcionando plenamente com Akanji armando as jogadas tão próximo da área adversária. Para nós, acredito, que nos interessamos pela tática e consumimos em doses não tão saudáveis os campeonatos ao redor do mundo, gastando horas da semana com os olhos fixados numa tela (ou até duas) assistindo partidas atrás de partidas, sempre na esperança de ver algo que nos surpreenda e renove o ímpeto e a curiosidade de ver a seguinte, é prazeroso deparar com algo tão inusitado. “Meu Deus, ele fez de novo. O gênio inovou mais uma vez.” Então corremos para o grupo de bola do Whatsapp e para a timeline do Twitter para exaltar o novo mecanismo tático que vai revolucionar o futebol.
Porém não consigo ficar sem me perguntar. O que o Manchester City ganha com Akanji como meio-campista num 2-3-5? Como se beneficia o Arsenal tendo Tomiyasu e Ben White armando as jogadas por dentro no mesmíssimo 2-3-5? E, por fim, como isso se sustenta num modelo que, no nível tão alto que é executado, deveria exigir os jogadores com maior qualidade técnica e habilidade? Zagueiros, e é claro que são os melhores do mundo e de capacidade ímpar com a bola nos pés, são capazes de cumprir as funções…Enfim, vamos à análise.
O 433/235 do Arsenal nessa partida contra o Liverpool em outubro de 2022 contou com Tomiyasu, Gabriel, Saliba e White. As distâncias longas, principalmente em primeiro momento de construção, como mostram as fotos, faziam com que os “zagueiros-laterais” ficassem mais abertos. Todavia, a armação segue sendo responsabilidade de 4 zagueiros e 1 volante, Partey.
2- O marco: Manchester City campeão da UCL com 4 zagueiros
A partir da volta contra o Leipzig, nas oitavas de final, vencida pelo City por 7×0, Guardiola escalou 4 zagueiros em todas as partidas disputadas no mata-mata da Champions League 22/23. Como a figura de Kyle Walker pode levantar debate, já antecipo meu contra-argumento. Nas semifinais contra o Real Madrid, Aké foi desfalque por lesão. Em seu lugar atuou o inglês, indiscutivelmente lateral de origem, compondo a linha de 3 do 3-2-5 como zagueiro pela direita. Devido à velocidade, acredito que Walker seria a opção para frear Vinicius Junior independentemente da lesão do holandês. Pouco importa o “se”. Como dito anteriormente, essa é a principal função que Walker vem desempenhando no Manchester City e na seleção inglesa há algumas temporadas. Sendo assim, o considero zagueiro.
De qualquer forma, na final quem jogou foi Nathan Aké, ao lado de Rúben Dias, Manuel Akanji e John Stones. O último com imenso destaque, por ter atuado como um verdadeiro meio campista no 3-4-3 diamante do clube inglês. A partida passou muito por ele por ser o homem-livre no sistema de encaixes da Inter, é será esse o foco da análise a seguir.
Os campinhos resumem como funcionava o sistema defensivo nerazzurri em relação ao esquema ofensivo cityzen. Lautaro saltava em Akanji, Dzeko em Dias, Barella, por ser mais físico que Çalhanoglu, ia até Aké e completava a linha de zagueiros. As alas se encaixavam, com Dimarco marcando Bernardo, e Dumfries, Grealish. Essa é a parte mais simples do modelo, enquanto a zaga e o meio sofriam mais adaptações.
A priori, Brozovic, com seu fôlego interminável, saltava longo em Rodri, e o turco encaixava em Gundogan. Porém, quando o alemão trocava de posição com De Bruyne ou o bloco se abaixava, Brozovic passava a ser responsável pela ponta alta do diamante, e Çalhanoglu pelo espanhol. Dessa forma, restava a Darmian perseguir o meia esquerda no losango; mas o mesmo não acontecia no lado direito. Isso porque a ideia de Simone Inzaghi era ter Acerbi como sobra e, assim, deixar Haaland sempre em 2×1, com o veloz Bastoni sempre em sua cola. Ou seja, Stones era o homem-livre. Não era prioridade de nenhum homem da Inter marcá-lo, o tornando opção de passe constante. O que parece o mais lógico, já que era um zagueiro recebendo de costas. Cabia a Bastoni dividir a referência. Se percebesse que o passe era definitivamente direcionado ao inglês, saltaria e Acerbi o cobriria. Do contrário, continuaria marcando o cometa.
Nesse lance, Stones começa como lateral direito na saída mais embrionária. A posse se desenvolve, o losango se estrutura e Bastoni tentar saltar no inglês. Inteligente, simula um apoio, muda a rota e ganha as costas do italiano. Acerbi vence o duelo contra Haaland e trava o desenvolvimento da dinâmica de 4o homem.
Já aqui, Bastoni insinua um salto mas vê que o passe é difícil e a jogada irá se desenvolver pela esquerda. Assim, ele abandona a perseguição e volta para o 2×1 contra Haaland.
Por fim, enquanto a jogada se dá pela esquerda, Bastoni nem se preocupa com Stones. Porém, com o balanço, já inicia o salto. No lance em questão, empurra o zagueiro para trás e força a volta da bola à esquerda. Perdeu o duelo mas não a viagem.
Para finalizar a parte ofensiva, uma posse na qual Stones começa oferecendo apoio por dentro, joga de costas e mantém o controle da bola com o City, Em seguida, atravessa o campo com o balanço e termina a jogada assumindo a amplitude pela direita. Prestem atenção na confusão que isso causa nos encaixes da Internazionale. Acerbi, a sobra, salta num primeiro momento, recompõe a linha quando perde o duelo e dali em diante Stones fica livre por toda a jogada.
Falando bem sucintamente do sem bola, Stones era o lateral direito na linha de 4 do Manchester City, tanto em pressão (4-2-4) quanto em bloco médio/baixo (4-4-2).
Independente de quem seja o quarto zagueiro, Walker ou Aké, tanto faz, é extremamente marcante que o Manchester City tenha sido campeão da Champions League jogando dessa forma ao longo de todo o mata-mata. E a final se torna um marco ainda maior por Stones ter sido por muitos o melhor em campo (ainda que favorecido taticamente para tal, foi impressionante sua lucidez com a bola). A materialidade do fato torna incontestável a ascensão dos quatro zagueiros enquanto tendência do jogo de posição, e, portanto, é importante que busquemos entender o que isso representa pro futebol em si.
3- Simbólico: Community Shield com 8 zagueiros em campo
Passando para a temporada atual, o primeiro duelo entre Arsenal e City, principais forças do jogo de posição no momento, foi quase tão simbólico quanto a final da Champions. Oito zagueiros no Wembley disputando o Community Shield. No lado londrino, Timber, Gabriel, Saliba e White. No de Manchester, Akanji, Dias, Stones e, aqui o considero outra vez zagueiro, Walker. Na ocasião, ao menos as duas equipes tiveram estruturas e funcionamentos distintos, contrastando, dentro dos mesmos princípios posicionais, de forma interessante.
3.1 – Arsenal
Os Gunners foram a campo no seu tradicional 4-3-3 base, com Ben White na lateral direita e Jurrien Timber na lateral esquerda. No meio, o novo contratado Declan Rice pautou muito as dinâmicas da organização ofensiva, impactando diretamente no papel dos zagueiros. O ex-hammer é um primeiro volante, e, para resolver o desconforto inicial de atuar como interior pela esquerda, baixou muitas vezes para armar o jogo de frente. Para isso, trocava de posição com Timber, virando um lateral/zagueiro pela esquerda, entortando um pouco o esquema na saída. Como consequência, o holandês virava meio-campista ao lado de Odegaard, e o time procurava aproveitar de sua velocidade e imposição física, apenas procurando-o em movimento e explorando ultrapassagens com Martinelli.
Quando batiam a pressão e elaboravam a posse no campo do City, o 4-3-3 virava 2-3-5, com os mesmos laterais por dentro, encurtando as distâncias em relação a Partey. Preservava-se a dinâmica entre Rice e Timber, e acrescentava-se a famosa rotação de triângulos pelas laterais. Na segunda imagem. Ben White está onde seria a posição de Odegaard e vice-versa, associando com Saka e o norueguês.
3.2 – Manchester City
Do outro lado, os comandados de Guardiola se estruturaram no raro mas já conhecido 4-2-4, com Haaland e Alvárez como dupla de ataque, sendo o argentino muitas vezes a ponta alta do que podemos interpretar como 4-2-1-3 quando ele oferecia apoio e preenchia a zona entrelinhas. Na base, os 4 zagueiros.
Como em qualquer formação com laterais genuínos, há alteração estrutural entre a saída e a ocupação do campo de ataque. No caso do City, eles, e principalmente Walker, se projetavam e assumiam o papel da amplitude. O gif a seguir é um excelente exemplo da rigidez estrutural de Guardiola, ao mesmo tempo que permite os zagueiros se lançarem ao ataque. Conservando o 4-2-4, Rodri baixava como zagueiro à medida que Walker se lançava pra ponta e Stones se tornava o lateral direito. Em resposta, Bernardo se alinhou a Haaland e Julián baixou como meio-campista. Ao decorrer da posse, a bola balançou para a esquerda, Rúben Dias se projetou para ultrapassar no espaço zagueiro-lateral do Arsenal, e, assim, Kovacic recuou como zagueiro pela esquerda. Era indispensável para Pep que a base fosse mantida.
No segundo tempo, o Manchester City alterou para o 3-2-5, com Julián e Bernardo como meias e Walker na ponta-direita. Todavia, como no jogo de posição não importa necessariamente quem ocupe o espaço desde que ele esteja ocupado, foi possível ver Stones e Akanji assumindo o papel das bandas.
Passadas, finalmente, as análises focadas no campo, comecemos, agora, a discussão conceitual por trás dos quatro zagueiros.
4- A prerrogativa é absolutamente defensiva
“Eu diria que com 4 zagueiros nós defendemos direito nossa área…É o nosso maior passo adiante, agora nós gostamos de defender, e mesmo se cometemos erros eu tenho a sensação de que sabemos defender”.
Pep Guardiola após a final da Champions League
A decisão de Guardiola é totalmente fundamentada em se defender melhor. A evolução de seu sistema culminou em quatro zagueiros, especialistas em defesa, para sustentá-lo. Resultou em almejar o pós-perda mais eficiente, e natural para os jogadores, já que são defensores, e a mais segura defesa da área, como passaram a carreira toda por ali. Não há fator surpresa relevante na presença de Akanji e Stones no meio de campo ou abertos na ponta. O que interessa são suas qualidades defensivas e como elas podem proteger o time do que foge à organização ofensiva.
Atualmente, o detalhe mais importante no modelo de jogo do City é que seus jogadores vençam os duelos defensivos e garantam que a posse seja controlada pela maior parte do tempo. É preciso que o sistema de organização ofensiva de Guardiola esteja em funcionamento a todo momento, girando suas engrenagens e aproximando a equipe do resultado.
5- Redução de risco: Zagueiro arrisca menos
“Quando as pessoas dizem, ‘Pep quer controlar a bola por 90 minutos’, sim, é para isso que estou trabalhando todos os dias, para ter o controle do jogo por 90 minutos”
Guardiola em entrevista a Thierry Henry
Ter controle é reduzir o risco e o imprevisto. Dado que os zagueiros do Manchester City são todos técnicos e nenhum vai canelar a bola na hora de dominar, tê-los com a bola não é arriscado, pelo contrário. Seguem sendo zagueiros. Não irão tentar um drible improvável, um passe milimétrico. Zagueiro faz o feijão com arroz, não inventa. Escutaram isso a vida inteira e não esquecerão da noite pro dia, até porque tampouco serão estimulados para tal. Se há algo além das características defensivas de Akanji e Stones que interessa a Guardiola, é justamente o pé no chão. O catalão não quer um líbero surpreendente, mas sim um zagueiro como conhecemos, desde que seja técnico o suficiente para não rifar a bola, errar o domínio e pôr a posse em dúvida quando tem a bola no pé. O objetivo é a segurança de que a bola irá voltar rapidamente após a perda e que dificilmente será colocada em disputa após a recuperação.
Na Supercopa da Europa, contra o Sevilla, o City voltou ao 3-2-5 com zagueiro de volante. Dessa vez, Akanji ficou ao lado de Rodri, e o novo contratado Gvardiol foi o zagueiro pela esquerda, alinhado a Aké e Walker- aproveito para reafirmar minha tese de que Walker é um zagueiro: mesmo com Bernardo podendo atuar como volante, como tanto fez na temporada 21/22, e Palmer entrelinhas (ou Julian, que estava no banco), jogando camisa 2 para a ala direita, Pep optou por tê-lo na linha de zagueiros.
Como boa parte do jogo foi um verdadeiro ataque contra defesa, a estrutura dos cityzens se tornou constantemente um 3-1-6/1-3-6. O mais lógico a se pensar seria projetar Walker, acostumado a jogar na linha de fundo, e colocar Palmer por dentro. Guardiola, porém, manteve a base conservada (pensando na defesa) e colocou Akanji entrelinhas. Isso mesmo. E como isso beneficia a equipe ofensivamente? Pensando em criação e gol, absolutamente nada. Porém, pensando em controle, é tudo que Pep quer. O suiço recebia de costas e carimbava a bola para trás. Não tentava nada, abraçava sua limitação, e, assim, prolongava as posses do time inglês. Zagueiro arrisca menos.
6- Não é bem uma inovação, mas, na realidade, a descaracterização de um elemento antigo
Guardiola não inventou o zagueiro que ataca. Cansamos de ouvir histórias de Beckenbauer, lendário zagueiro alemão aclamado justamente por suas qualidades com a bola, driblando sei lá quantos adversários e levando o time ao ataque. Também já gastaram nossos ouvidos com aquele papo de líbero (usado muitas vezes de um jeito estranho para falar do goleiro), que na verdade era “a sobra” do catenaccio, mas que adquiriu esse caráter de zagueiro que se projeta ao ataque. Enfim, é uma conversa antiga que não surgiu do nada. Sempre houve, ainda que rara, a figura do beque técnico que contribui ofensivamente com a equipe.
Não me entendam mal, é claro que no futebol atual se exige mais da técnica do zagueiro. Contudo as causas são outras. Não tem ligação alguma com estar em zonas mais avançadas do campo e de importância maior na produção ofensiva, mas em elaborar saídas curtas e bater as cada vez mais frequentes pressões no campo do adversário. O fato de Akanji ser utilizado como volante ou meia parte de outras motivações, como explicado ao longo do texto. Portanto, a correlação entre aumento da técnica do zagueiro moderno é inverídica para além do argumento de que ela viabiliza, se pensarmos na quantidade de jogadores com essas características, o plano anti-risco de Guardiola.
Retomando, meu ponto é que o zagueiro enquanto peça fixa de meio no modelo posicional não traz vantagem ofensiva alguma. O que diferenciava e tornava realmente benéfica a participação do zagueiro ao sistema ofensivo das equipes que contavam com um jogador técnico no passado, como a Alemanha de Beckenbauer, era justamente o elemento surpresa. Ele não estava sempre lá, mas viria a estar. Chegaria. É isso que desestrutura as marcações. A condução prolongada inesperada gera saltos fora do plano e, consequentemente, novas linhas de passe. A tabela com um elemento inesperado é que confunde a marcação e embaralha as referências. É o valor “zagueiro no ataque”, esporádico, surpreendente, que te traz vantagens com a bola. O valor “zagueiro” no ataque, sempre ali, padrão do modelo, te traz vantagens sem ela.
7- O recado é claro e contraditório: O sistema ultrapassou o indivíduo em relevância
No final das contas, o que essa tendência significa, ao meu ver, é que pouca diferença faz se é um zagueiro, de inventividade indiscutivelmente inferior a um meia, quem desempenha o papel no sistema. O importante é que o espaço seja ocupado, determinado movimento seja executado e a estrutura aja. É como se o sistema se tornasse um organismo maior, vivo por si só, e conquistasse o campo no próprio agir automático, emancipado das qualidades essenciais do jogador. Um futebol que, aparentemente, foge de sua (cada vez menos) indissociável ontologia caótica e se aproxima do ideal planejado.
É verdade, porém, e aí entra o “contraditório”, que tudo isso se escora justamente na individualidade dos defensores. Soa, paradoxalmente, como uma rendição do sistema ao talento que não consegue alcançar por mecanismos. Guardiola, ao escalar quatro zagueiros, admite que foi incapaz de elaborar um modelo que abarcasse as organização e transição defensivas com a mesma eficácia das ofensivas, e que não há nada mais impactante no futebol concreto do que a vocação e o talento. Ao mesmo tempo que a queda de criatividade nos jogadores no sistema ofensivo passa praticamente despercebida (aos olhos de quem vê e não enxerga), visto que o mecanismo já se dissociou das qualidades do indivíduo, é exatamente o aumento da técnica individual no sistema defensivo que é visado, pois este não foi capaz de se tornar autossuficiente. Ou seja, o futebol hiper-sistematizado, ao tentar negar a relevância daquele que executa, o verdadeiro protagonista, acaba caindo justamente em sua dependência nele.
“Ser um bom defensor, eu considero o maior talento no futebol. E agora temos jogadores que gostam de defender.”
Pep Guardiola
Pep Guardiola e John Stones I CREDITOS: Reuters/Carl Recine
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