Como se não bastasse a dolorosa trajetória comum entre cada garoto que se arrisca no sonho, lutando contra a lógica e tendo o tempo como inimigo, o craque brasileiro do Real Madrid ainda é atormentado pelos mesmos obstáculos a todo momento, colocando a vitória em questionamento. Por mais que tenha chegado ao topo do futebol mundial, Vinicius Júnior segue sendo esculpido a machado dia após dia.
Passemos, então, ao som de Leall, por cada etapa da carreira de Vini até aqui, relembrando as adversidades que precisou vencer e como brutalmente foi se formando enquanto jogador.
Então imagine sua alma dentro do meu corpo
“Esculpido a Machado”, Leall
Não aguentaria nem metade dos copos que eu bebo
Imagine as maldades que eu vi
1- Previamente Condenado
Desde seus primeiros passos no Brasil, Vinicius precisou nadar contra a maré. E aqui já se abre uma brecha para o óbvio: sempre foi visto e falado como demandava seu talento. A “espetacularização” tão questionada e usada contra o garoto não surgiu do nada. Não direcionaram o holofote por livre e espontânea vontade, ou por suposta influência do clube de onde veio (fator que, sim, amplificou o burbúrio, mas que na realidade foi determinante para a aversão imediata de parte do público e da imprensa). Vinicius sempre requisitou involuntariamente essa atenção pois nunca foi um jogador qualquer.
E será que isso mais ajuda ou atrapalha? Emplacar um nome de 16 anos no imaginário de milhões favorece a quem? Pensando em narrativa, elemento que, na prática, é o que realmente diz respeito à imprensa e ao público, digamos que favorece muita gente. Isto é, não se pode descartar o entretenimento como pilar do futebol. Para além de ser uma força motriz, é indissociável, é o que faz do futebol o futebol. O espectador quer um novo herói, quer projetar seus sonhos naquele desconhecido menino que julgaram capaz de realizá-los. E para uma torcida que carecia de identificação no gramado e roía unhas pelo déjavù que tardava mais de 30 anos, Vinicius foi mais um ator da esperança.
Pensando nele, porém, acredito que lhe agradaria ficar só com o talento, e não com suas consequências para além do campo. Junto da fama vem a expectativa, e então, aos olhos alheios, é preciso corresponder. Vinicius (ou qualquer outro super talento) não pediu para que lhe comparassem com outros craques, para que lhe colocassem como o futuro. Acontece que, até certo ponto, o talento anda com as próprias pernas, e se é da vontade do sujeito continuar essa caminhada, haverá de arcar com o resto. Todavia, não podemos aceitar o caso de Vinicius como normal, porque não foi.
A descrença veio de forma desproporcional. Talvez essa nem seja a melhor palavra, pois não é como se desacreditassem do que Vinicius poderia ser, ou do que se esperava que viria a ser. Na verdade, acreditavam plenamente que não só não seria, como já não era. Da boca de muitos saia um ar de vitória, como se o fracasso (irreal, mas dado como certo) fosse a comprovação da razão. Nos programas esportivos, nas redes sociais e nas conversas de buteco, o insucesso de Vinicius, antes mesmo de sua estreia como profissional, já se construía como uma posição.
E isso continuou por muito, mas muito tempo. Vinicius estreou pelo Flamengo com tão somente 16 anos, no empate contra o Galo por 1 a 1 no Brasileirão de 2017, mas podemos considerar seu verdadeiro início nos 5 a 0 diante do Palestino, pela Sulamericana, quando marcou seu primeiro gol pelo profissional. E foi dali em diante que a comparação começou, a nova forma de se revelar a descrença, disfarçada de razoabilidade.
Quando Vinicius marcava um gol, era pior que Paulinho, do Vasco, ou que Rodrygo, do Santos. E nos momentos em que prevaleciam seu físico ainda muito esguio ou sua imaturidade na finalização, voltava a ser um retumbante fracasso premeditado. Poderia marcar um golaço e decidir seu primeiro clássico contra o Botafogo, ou reverter um complicado duelo contra o Emelec no Equador, saindo do banco e furando dois tentos como debutante na Libertadores. Pouco importava, estava condenado.
Eu tenho um sonho, eu nasci nessa terra onde nada crescia
“Onde Que Nós Taria?”, Leall
Quase um truque de magia
Lembro que tu debochou, eu era promissor e geral já sentia
Naturalmente, se firmou como titular do Flamengo em 2018, brilhando ao lado de Lucas Paquetá até a pausa para a Copa do Mundo, quando se transferiu para o Real Madrid. O crescimento era nítido, e só poderia empolgar. Foram 4 gols e 3 assistências em 11 jogos, marcando em mais um clássico, dessa vez contra o Vasco. Saindo da ponta esquerda no 4-1-4-1 de Maurício Barbieri, já demonstrava qualidade ímpar nos desmarques por dentro, como no golaço contra o Ceará, e, acima de tudo, uma personalidade rara. Felicidade estampava o semblante de Vinicius enquanto jogava futebol. Ainda que enfrentando uma tempestade de desrespeito, subjugamento e racismo, seguia alegre fazendo o que amava. Ali, deixava claro que não seria fácil abalá-lo.
2- Subindo a Cachoeira
Vinicius Jr. chega em Madrid num momento conturbado. Os merengues haviam acabado de vencer a Champions League, porém o técnico Zinedine Zidane e o craque Cristiano Ronaldo inesperadamente deixaram o clube no verão. E não parou por aí. Julen Lopetegui, treinador escolhido como substituto, foi demitido da seleção espanhola quando a federação soube do acordo firmado. Iria à Rússia e retornaria ao Santiago Bernabéu, mas teve a primeira viagem cancelada. Vini saiu da conhecida bagunça do clube mais popular do Brasil para um surpreendente caos no maior do planeta.
Durante a pré-temporada chegou a ser titular, estreando contra o Manchester United, mas essas oportunidades duraram pouco. Foi mandado ao Castilla, time reserva do Real Madrid, e só voltou a atuar pela equipe principal meses depois, entrando aos 87′ contra o Atlético de Madrid. Lopetegui nitidamente não gostava do futebol do garoto, ou pelo menos entendia que não estava pronto, e as críticas por aqui não tardaram em se aproveitar disso para continuar a condenação precoce. Pouco tempo após o empate naquele dérbi, Lopetegui foi demitido, e as coisas mudaram um pouco para Vinicius.
Santiago Solari foi promovido do Castilla ao time principal. Treinara Vinicius por 3 meses inteiros e agora teria o poder de colocá-lo para jogar onde merecia. Não fez diferente. O carinho do argentino com o brasileiro era evidente, confiava de verdade, e o impacto foi imediato. No primeiríssimo jogo em La Liga com Solari, contra o Valladolid, o então camisa 28 marcou seu primeiro gol vestindo branco. Passou a figurar no banco em todos os jogos, entrar com muito mais frequência e realmente ter a oportunidade de conquistar seu espaço. O ano virou, Vinicius se tornou titular, e em fevereiro veio sua primeira convocação para a seleção. Enfrentando Barcelona, Atlético e Ajax, a confiança para driblar não se perdia. Talvez fosse isso que diferenciava a relação entre ele e Solari, e futuramente com Ancelotti. Precisava de respaldo, de alguém que confiasse minimamente como ele na sua encarada. Iria arriscar, errar (muito, na altura) e tentar de novo, independente do técnico desgostar ou não. E teria de arcar com as consequências do talento, mais uma vez.
Solari cai em março, Zidane retorna ao Madrid e Vinicius imediatamente volta ao banco…e ao Castilla. Desde um primeiro momento era evidente: Vini não agradava Zizou. Termina a temporada perdendo a relevância que havia construído, e restava apenas uma opção: subir a ladeira outra vez.
A temporada 2019/2020 foi em si uma turbulência. Eden Hazard e Rodrygo chegaram no verão para somar como alternativas na busca de Zidane pelo time titular, que nunca foi concluída até o final de sua passagem. O craque belga chega a peso de ouro e com a expectativa de ser o substituto de Cristiano, o que, para Vinicius, significava a condição a princípio inabalável de reserva. Teria não só de se provar para o treinador, mas provar que era melhor que o craque da Copa do Mundo e os 115 milhões de euros pagos. Ao mesmo tempo, seu compatriota trazia consigo o fantasma da comparação. Qualquer feito de Rodrygo significava não só que o ex-Santos era um grande jogador, mas que era superior a Vinicius. E toda jogada de Vinicius não poderia ser apenas boa, mas deveria ser melhor que as de Rodrygo. Isso, claro, aos olhos do público e da imprensa.
E não foi fácil. Ainda que Hazard tenha se lesionado aos montes ao longo da temporada, Zidane por vezes preferia mudar a formação a escalar Vinicius. Eram frequentes os jogos em que jogava com 5 meio campistas, ou que voltava ao losango de outros tempos. Enquanto isso, Rodrygo alternava partidas pela direita com o semi-aposentado e declarado ao golfe Gareth Bale, marcando gols e, obviamente sem culpa alguma, intensificando a descrença mascarada pela comparação. Apesar da ladeira ficar cada vez mais íngreme, Vinicius seguia com a personalidade inabalável e amadurecendo seu jogo. No início de 2020, em meio a mais uma lesão do belga, assumiu a titularidade contra o Manchester City na Champions e marcou pela primeira vez no El Clasico, reafirmando seu lugar.
Mas de repente fecharam os portões do Bernabéu, e ninguém mais poderia jogar. Quando, enfim, Zidane parecia ceder, uma força maior entrou no meio do caminho. Era como se Vinicius subisse uma cachoeira nadando.
Onde que nós taria? (Onde), Onde que nós taria? (Onde)
“Onde Que Nós Taria?”, Leall
Se não fosse na raça, na garra, onde que nós ia tá? (Onde que)
Jogando agora sem público no centro de treinamento Alfredo Di Stefano, Zidane seguia tendo Benzema como a única certeza no ataque. As primeiras partidas tiveram Hazard como titular, no pendente jogo contra o City pela Champions, e ainda uma tentativa de losango, com Jovic figurando como dupla do centroavante francês. Vinicius precisava se provar mais uma vez. Então entrou contra o Valladolid e anotou o gol da vitória, foi titular contra o Levante e marcou mais uma vez, e, por fim, saiu do banco contra o Shakhtar para seu terceiro gol consecutivo. Assim, garantiu a titularidade para o El Clásico, vencido pelo Real Madrid, e para o complicado jogo na Alemanha contra o Borussia Mönchengladbach, capítulo fundamental da nossa história.
Medo de quase nada
“Medo de Quase Nada”, Leall
Apenas de perder meu filho
De me perder pelo caminho e não saber voltar pra casa
De não saber fechar o ciclo
E confiar em gente falsa
Não estou aqui para julgar o caráter de Karim Benzema. É verdade que muitos associam essa cena ao episódio de suborno com Mathieu Valbuena, enxergando o mesmo princípio de traição, o que, convenhamos, acaba dizendo bastante sobre a figura. Mas me atenho à perspectiva de Vinicius, nosso protagonista.
No túnel, enquanto o time se reunia para voltar ao gramado após um mau primeiro tempo, Benzema cochichou em francês no ouvido de seu compatriota Mendy. Pedia para que não tocasse a bola para Vini. “Ele joga contra nós”. Isso pode significar, como dito, uma traição, quer dizer, um tamanho desejo pela vitória que pouco importava se fosse feita como equipe, ou melhor, se fosse necessário sabotar um companheiro para alcançá-la. Também é possível ter um olhar menos crítico, e entender apenas como uma situação normal num dia ruim de um jogador. Eu, porém, prefiro uma terceira via, que traduz a jornada de Vinicius.
O pedido não foi feito enquanto a bola rolava, após um erro de domínio ou qualquer coisa do tipo. Ou seja, durante o ininterrupto recorte de tempo em que o imprevisto te força a recorrer ao improviso. Foi feito no intervalo. Todo o time ganharia uma segunda chance para recomeçar, colocar os pés no eixos. Menos Vinicius. Voltamos, então, ao ponto da descrença. Benzema naquele momento reproduzia o mesmo discurso que perseguira o brasileiro desde os seus primeiros passos. Vinicius retorna a campo previamente condenado, agora pelo próprio parceiro de ataque.
Quando falo que Vinicius precisou reverter o fluxo de uma cachoeira, é sobre isso que quero dizer. Como se não bastasse a opinião pública e os treinadores, teve de se provar para o cara com quem trocava passes. Até a bola chegava nele com desconfiança.
O Real Madrid terminou empatando com o Gladbach, marcando dois gols no finalzinho, e classificou-se como líder naquele grupo embolado. De forma resumida, a cada semana Hazard se afundava mais nas lesões, e Vinicius se afirmava como um jogador indispensável. Nas quartas de final, marcou dois gols contra o Liverpool, outra vez esbanjando no facão, e seu entrosamento com Benzema, surpreendentemente, evoluiu de maneira exponencial depois daquele episódio. O time acabou caindo para o campeão Chelsea nas semifinais, Zidane deixou o clube ao final da temporada, e chegamos, finalmente, ao ponto de virada na carreira de Vinicius.
3- Posso Mudar Meu Destino
A vida sorri para Vinicius Júnior e coloca Carlo Ancelotti em seu caminho. Para a temporada seguinte, o Real Madrid olhou para o passado e escolheu seu comandante, provavelmente a melhor pessoa que um jovem em desenvolvimento poderia querer como treinador. Isso porquê seu mirabolante plano de jogo se fundamenta exatamente na complexidade de cada jogador. O que torna as equipes de Ancelotti tão ricas quando têm a bola é justamente o fato de permitirem o aflorar de cada um. O italiano olhou para Vinicius e viu nele sua estratégia.
Percebendo o que surgia entre o brasileiro e o francês, investiu nessa parceria. Agora o jogo do Madrid se centrava na esquerda, por onde a dupla se conectava. A facilidade de Vinicius para encontrar Benzema crescia de maneira assustadora. Cruzamentos, tabelas, de fora pra dentro, de dentro pra fora, e cada vez mais por dentro, pouco importava como. Das 20 assistências dadas na temporada, 11 foram para Benzema. Além disso, passou a fazer uso de um recurso específico que vale algumas palavras.
Gosto de chamar essa trivela de herança técnica. Mas antes, digo que fui corrigido no Twitter por quem acompanha a base rubro-negra com mais afinco. Me disseram que Vinicius já realizava esse passe em seus primórdios. Eu prefiro ficar com a minha narrativa, mesmo que não seja de todo modo verdade. Para mim, aprendeu, ou desenvolveu, que é o mais provável, com Luka Modric. Marca registrada do croata, o uso da parte externa do pé deixou de ser apenas uma alternativa e se tornou parte de seu jogo. Foi numa partida contra o Getafe, no Bernabéu, que a herança se expressou da forma mais bonita. E não só porque o passe em si foi um espetáculo, mas porque no jogo seguinte, contra o Chelsea pela Champions League, seu professor deu uma assistência para Rodrygo da mesma maneira.
A temporada foi gloriosa do início ao fim. Vinicius se divertia nos finais de semana e encantava o mundo nas noites de quarta-feira. Na semifinal, decidiu o duelo contra o City com a emblemática caneta sem tocar na bola em Fernandinho, terminada em golaço. E como se não pudesse ficar melhor, foi o autor do gol do título. Contra aquele mesmo Liverpool de sua primeira noite como protagonista na Champions League. A história parecia premiar o garoto por tudo que aguentou passar, como se a vida tivesse que funcionar assim. Primeiro você sofre, depois você desfruta. Infelizmente é um retrato de como as coisas se dão. E não que a luta não mereça exaltação ou recompensa, mas não podemos perder o olhar crítico para a situação. De qualquer maneira, Vinicius mudou seu destino.
Posso mudar meu destino
“Posso Mudar Meu Destino”, Leall
E eu posso mudar meu destino
O que não quer dizer que Vinicius chegou ao topo da cachoeira, muito menos venceu a desconfiança. Nessa temporada o maior desafio de sua carreira começou a dar as caras de uma forma mais explícita. Contra o Barcelona no Camp Nou, sofreu sua primeira injúria racial em campo na Espanha. Coisa que dali em diante não pararia mais.
4- Lamentações 2:19
Tanta violência sem finalidade
“Lamentações 2:19”, Leall
Pai, juro que eu não ligo se eu morrer cedo
Eu percebi que um cara negro não tem liberdade
Esportivamente, a temporada 22/23 foi a melhor de sua carreira. Elevou seu nível de influência e principalmente sua finalização. Vinicius passou a chegar na cara do goleiro e verdadeiramente tomar conta do lance. Expressava que quem mandava no duelo era ele. Podia sentar o arqueiro rival no chão de forma humilhante, bater com firmeza sem chance alguma de defesa ou simplesmente colocar a bola para dentro da forma mais sutil e imponente possível. Cada vez mais atacante.
Mas toda a alegria dos gols marcados nas memoráveis atuações era roubada pela lamentação. A merda ficou escrachada. Em programas esportivos, Vinicius era explicitamente chamado de “mono”. Nos estádios, passou a ser impossível identificar o responsável pela injúria, pois o racismo liberado se disseminou como uma peste. Até seus colegas de profissão se sentiam confortáveis para publicar emojis de macaco em suas redes. Culparam sua dança nas comemorações, sua postura dentro de campo, qualquer justificativa para transformá-lo num alvo ainda mais fácil. Se um negro não se adequa ao que determinam como bons modos, é automaticamente dito como selvagem. Aconteceu em Valladolid, em Mallorca e em Valência, o auge da tragédia.
De uma hora para a outra já repensei a palavra tragédia. Nela existe um quê de acidente, de fatalidade. O que aconteceu com Vinicius não pode ser tratado assim. Se adequa mais à palavra “atentado”. Como figura pública num ambiente de massas, virou a presa fácil de um sentimento que ali já existia. Não quero me perder em referências, mas Ortega y Gasset já dizia que nas massas se insiste no desejo e se esquece do dever. Gumbrech em “Torcidas” passeia pelos diversos significados deste amplo conceito, mas mantém bem claro que ele se aplica ao estádio, e me permito dizer que também ao pós-estádio, tão numeroso quanto: as redes. O ecoar dos gritos de “Vinicius Mono” no Mestalla evidencia como, num corpo abstrato como a multidão, o indivíduo se sente livre para revelar seu mais perverso sentimento, e da mesma maneira os “tweets” racistas por trás de usuários sem nome e sem foto.
Choveu, e subir a cachoeira se tornou uma tarefa quase impossível. O ódio, que antes precisava se disfarçar, se tornou explícito. Ficou claro que aquela descrença, por parte de muitos, tinha outro princípio. Até que ponto a desconfiança e o racismo não são a mesma coisa? O deboche, o subjugamento…frutos podres de uma mesma árvore. Como jogador e figura, Vinicius cresceu, mas seus problemas também, e numa magnitude insustentável para qualquer ser humano.
Eu preciso viver, eu me sinto mais forte que antes
“Julho de 2001”, Leall
5- Eu Sou o Pino da Granada
E o que esperavam que Vinicius fizesse? Ficasse quieto, abaixasse a cabeça, mantivesse aquela mesma personalidade mais contida de outros tempos? Depois de tanto desaforo e desrespeito? É aquela velha história de Malcolm X. Como se fosse minimamente comparável, “não confunda a reação do oprimido com a violência do opressor”. O que vem acontecendo é uma inversão completa da ordem dos fatos, numa tentativa de justificar o injustificável. Jogadores, treinadores, espanhóis, argentinos, brasileiros, em entrevistas, nas redes sociais, existe um movimento de culpabilização (um ato de racismo em si) a Vinicius pela desumanização que sofre. Até a velha comparação, antes apenas esportiva, reaparece, usando Rodrygo e outros jogadores supostamente bem-comportados como argumento.
Vinicius não aceita mais apanhar em campo, muito menos deixa as ofensas vindas da arquibancada saírem de graça. Responde, provoca, reclama. Vendo de fora, fica fácil dizer que seria melhor ficar quieto. E é bem verdade que em muitas situações realmente seria a melhor escolha. Quase foi expulso no confronto contra o Leipzig por um empurrão no zagueiro Orban, por exemplo. Mas repito, é muito fácil falar quando não é você quem está sofrendo na pele.
Eu sou o pino da granada (Bala)
“Pedro Bala”, Leall
A culpa é minha se ela explodir?
Como se eu escolhesse destruir
Se esqueceram por quem que eu fui feito
Minha função é sempre ser suspeito
Se é que é possível, quero voltar ao futebol. O texto também tem esse propósito. No momento em que escrevo, o Real Madrid ainda não enfentrou o City, mais uma vez, pelas quartas da Champions. Mas passamos da metade da temporada, e o crescimento de Vinicius mais uma vez foi espetacular, técnico e fisicamente. Ainda que tenha sido o período em que mais sofreu por lesões, perdendo quase metade dos jogos até aqui, desenvolveu seu jogo para além da zona de conforto como nunca, além de, é claro, ter se tornado o primeiro brasileiro a marcar um hat-trick pelo Madrid no El Clásico.
Os merengues perderam Karim Benzema para o mundo árabe no verão e não foram atrás de um substituto para a posição de centroavante. Contrataram o destaque do rebaixado Espanyol Joselu como opção, mas jamais como solução. Talvez Ancelotti aguarde Endrick, mas isso é papo pra outra hora. O fato é que as condições demandaram um Vinicius muito mais impactante no campo de ataque como um todo, menos limitado à faixa esquerda do campo, como se acostumou. Carleto firmou a equipe em um 4-4-2, alternando entre o losango e o quadrado ao longo da temporada, mas sempre (ou quase, devido às lesões) com os brasileiros formando a dupla de ataque. Com a aposentadoria de Hazard, o agora camisa 7 vem se formando a cada rodada como um atacante total.
Um ano após o lamentável episódio, Vinicius retornou ao Mestalla comprovando isso. Os dois gols que marcou, buscando o empate para o Real Madrid, demonstraram uma enorme presença de área. E por presença de área, vou além de posicionamento, leitura da jogada ou coisas do tipo. Falo da bola procurar, do enredo conspirar para que ela caia no pé dele, ou na cabeça, como no segundo gol. Essa estrela é um componente fundamental para o grande atacante. Ele precisa ser foda, sempre estar lá. E apesar de tudo o que lhe impede, é na direção disso que Vinicius caminha.
Sou como um peixe na rede
“Julho de 2001”, Leall
Que enfrenta o medo e, tentando fugir, resiste
Apêndice – Seleção Brasileira
Aqui pretendo ser breve, prometo.
Primeiramente, não dá para deixar passar a absurda comercialização do racismo no amistoso contra a Espanha. Luiz Teixeira, do SporTV, foi certeiro em seu depoimento ao vivo. A CBF e a imprensa usaram Vinicius como vidraça naquela coletiva. Exploração midiática e financeira até a última migalha de uma tragédia social, desde a venda de casacos à renda do evento em si. Expuseram o jovem e seu sofrimento como um episódio de série. E, para piorar, o público não só esperava que ele tivesse condições psicológicas para uma grande atuação no Bernabéu, como disparou uma série de cobranças fora de tom. E aqui pego o gancho. Vinicius realmente não joga nada pela seleção?
Vamos com a realidade: Tite esticou a corda até onde podia para não colocá-lo no time. O deixou fora de inúmeras convocações, inclusive na temporada do título da Liga dos Campeões, em outubro de 2021, para chamar Coutinho. Só entrou porque Roberto Firmino se lesionou. E quando Adenor enfim entendeu que era impossível deixá-lo de fora, rendeu aquele episódio do “assistente de lateral” contra o Chile em Santiago, numa das poucas chances de Vini como titular, relembrando momentos com Zidane na temporada 20/21, quando chegou a escalá-lo de ala direita para encaixar Hazard. Sendo assim, não existe avaliar seu desempenho até duas datas fifa antes da Copa do Mundo.
No Qatar, foi o líder em assistências do time mesmo jogando praticamente preso à linha lateral e distante de seus companheiros. Tirando os jogadores de defesa, como Thiago Silva, que foi disparado o melhor do time, provavelmente foi quem mais jogou bola. E não há nem o que dizer sobre a saída aos 60′ contra a Croácia, uma manifestação clara de como Tite entendia o jogador.
Após a Copa, chegam os amistosos sob o comando de Ramon Menezes contra as seleções africanas. Num momento de transição, com vários testes na escalação, chega a marcar gol, assistência e puxar o protagonismo, mas o desempenho da seleção como um todo foi trágico. Confesso que não me recordo especificamente se foi bem ou mal em cada jogo, então nem me estendo.
Mais recentemente, a curta era Fernando Diniz. Coincidente ao seu período de lesão, jogou 2 dos 6 jogos. Nos minutos que teve contra a Colômbia, brilhou como um atacante total, baixando por dentro e conduzindo o time ao ataque. O que dizer? Nem teve a chance de mostrar seu futebol.
Então chegamos ao momento atual. Um grande exagero sobre a partida em Wembley, contra a Inglaterra. Foi determinante para a produção ofensiva do Brasil, puxando os contragolpes, mas ficaram marcados os lances emblemáticos do escorregão e do gol perdido. Sempre foi e sempre será assim. Em Madrid, um dia para esquecer. Realmente errou absolutamente tudo, mas é impossível dissociar do contexto da partida. E ainda assim aproveitaram a brecha para criticá-lo de forma desproporcional, retomando, inclusive, a comparação com seu companheiro de time.
Por fim, pelo craque que é no Real Madrid, é um fato que está devendo. Mas o desempenho passa longe, mas muito longe desse desastre que querem pintar. Há um contexto enorme por trás. O Brasil precisa parar com a pressa em queimar seus jogadores.
Tem os que joga bem ali, se posiciona bem, pá, mas só faz isso, toca a bola ali
Inserção de audio de KL Jay (Racionais MC’s) em “Onde Que Nós Taria?”, Leall
Agora, tem os craque, né, mano?
Os craque arrisca, troca de posição, dá drible, erra gol pra caralho
Mas quando acerta os gol, é só quadro, tá ligado?