Uma breve história da Liga Nacional de Foot-Ball Porto Alegrense, a primeira liga exclusiva para jogadores negros no Brasil
Este é Júlio Ferreira, jogador de futebol gaúcho dos anos 1920. Negro. Num período onde pretos eram excluídos de majoritária porção dos torneios esportivos do país, Júlio orgulhosamente posa uniformizado, da cabeça aos pés.
O futebol, surgindo como uma nova prática de sociabilidade no final do século XIX e tido à época como uma educação do corpo e da alma, visava o desenvolvimento psicofísico de jovens das elites dominantes do país, uma saída ao sedentarismo; “minorias”, portanto, deveriam se contentar com outras práticas esportivas, menos nobres e menos edificantes. Júlio Ferreira, claro, fazia parte do último grupo.
Sendo tudo isso verdade, como seria possível que Júlio, um excluído, não apenas praticasse futebol na década de 1920, mas também fizesse parte de uma liga de football organizada, sedimentada e bem estruturada? A resposta: A Liga Nacional de Foot-Ball Porto Alegrense.
Desde a fundação da Liga de Foot-Ball Porto Alegrense (não confundir com a supracitada), em 1910, o futebol gaúcho organizado era um privilégio para poucos clubes, representando uma grande restrição para outros, mais populares:
“Em 1910 funda-se a Liga de Foot-Ball Porto Alegrense, onde sete clubes, dentro da vastidão de clubes que foram se criando, participaram. O caráter exclusivo e excludente foi a marca da liga. Isso porque haviam mecanismos que impediam a participação dos clubes populares da cidade. A liga foi a primeira associação futebolística organizada da cidade e foi dirigida inicialmente pelo ex-presidente do Grêmio, Oswaldo Siebel, que convidou os sete maiores clubes da cidade [Grêmio Foot Ball Porto Alegrense, Sport Club Internacional, Fussball Club Porto Alegre, Sport Club Nacional, F.M. Frisch Auf, Grêmio Foot Ball 7 de Setembro e Militar Foot-Ball Club].” (RODRIGUES, 2022, p. 36)
As restrições eram várias, mas os pontos focais eram, principalmente, termos financeiros e estruturais, o que barrava clubes menos endinheirados e marginalizava ainda mais os atletas de origem humilde, operária e/ou desfavorecida. A criação de uma liga diz mais sobre suas ausências do que sobre suas presenças – em sua maioria, clubes de elite e de origens germânicas. E os pretos logo seriam também impedidos de entrar: o Sport Club Rio-Grandense, fundado em 1907 e formado por negros, teve sua entrada barrada mesmo cumprindo os extensos requisitos necessários para fazer parte da liga.
Felizmente, porém, referida exclusão teve uma primeira resposta. Em 1914, foi criada a Liga de Foot-Ball Sul-Americana, voltada para equipes excluídas da liga principal. Apesar de não ter sido uma associação exclusiva para negros, teve importante papel na inclusão de clubes rejeitados — em sua maioria, operários —, servindo de inspiração para movimentos posteriores. Entre os participantes do campeonato de 1915 da Liga de Foot-Ball Sul-Americana, estavam: S.C Amanuense, União Foot-Ball Club, F.C. 8 de setembro, Primavera e o Rio-Grandense.
Apesar disso, a Liga Sul-Americana não teve continuidade. É provável que tenha encerrado suas atividades logo em 1915. Com isso, fazia-se necessário que outra a substituísse, a fim de continuar seu essencial legado de representatividade e associativismo.
É, portanto, nesse contexto em que chegamos no objeto desejado: a criação da mais famosa associação esportiva exclusivamente negra do período, a Liga Nacional de Foot-Ball Porto Alegrense. No primeiro dia de Maio de 1921, é descrito pelo jornal O Exemplo — formado por jornalistas negros e então conhecido como o “jornal do povo” — que a comemoração do aniversário de um ano da Liga Nacional teria ocorrido no “domingo último”, o que, acessando o calendário do ano anterior à edição, leva-nos a concluir que a liga provavelmente teve sua fundação em 25 de abril de 1920.
Como já dito, a Liga Nacional teve como ponto focal a presença única e exclusiva de jogadores negros. Seus participantes (na primeira edição: S.C. União, S. C. Rio-Grandense, S. C. Palmeira, S. C. 1º de Novembro, S. C. Bento Gonçalves, S. C. Venezianos, S. C. 8 de Setembro e S. C. Primavera), descritos como “suburbanos”, eram compostos por excluídos de outras ligas e equipes, negados do culto ao corpo comum às elites do país.
Fundamental relatar, porém, que se tratava de uma associação muito bem organizada, ao contrário do que se comumente lê na internet. Possuindo um corpo diretivo bem desenvolvido — incluindo presidência, conselho superior, ‘orador fixo’, comissões representativas de clubes filiados, etc —, a Liga Nacional não era meramente um amontoado de clubes posicionados à margem do futebol gaúcho, mas uma tentativa sistematizada e coordenada do associativismo negro de criar uma sociabilidade esportiva daqueles que, de Cachoeira do Sul à Pelotas, eram impedidos de praticar o desporto bretão por conta da cor da pele.
Outro aspecto crucial da Liga está em seu nome. Mais especificamente, no adjetivo “nacional”. É evidente que há uma sugestão e uma contraposição aqui. Enquanto considerável porção das equipes fundadoras do Campeonato Gaúcho orgulhavam-se de sua origem alemã (e, portanto, de tudo que vinha a partir disso), os criadores da Liga Nacional possivelmente indicavam que se tratava de uma associação de brasileiros e para brasileiros.
Permanecendo na questão designativa, temos também a pejorativa alcunha “Liga das Canelas Pretas” para se referir à Liga Nacional. Perpassando o imaginário do povo, tal nomenclatura relata a tentativa de diminuir a organização esportiva negra, atribuindo a ela o termo “canela”, evocando à canelada, expressão conhecida por designar falta de controle e pouco refino.
Com todas as dificuldades impostas pelo entorno racista do cenário esportivo da cidade, a Liga Nacional, inicialmente, perseverou. No ano de 1920, por exemplo, seu campeonato teve alguns jogos brevemente relatados por alguns jornais gaúchos — principalmente, O Exemplo e A Federação — e obteve algum sucesso de público. O primeiro campeão da Liga Nacional foi o Sport Club União, com Bento Gonçalves e Rio-Grandense obtendo a segunda e terceira posição, respectivamente.
Por alguns anos, o número de participantes da Liga variou, mas o campeonato continuou existindo. Além disso, surgiu outra agregação de caráter semelhante, a Associação Sportiva de Foot-Ball, que passou a ter até mais clubes inscritos do que a Liga Nacional em anos posteriores. Apesar disso, observa-se que, na segunda metade da década, ambas perderam sua força. Mas, por quê?
A dificuldade em manter esses campeonatos por muito tempo não são perfeitamente claras, mas é provável que a exclusão característica por parte de ligas de futebol da elite da cidade, junto às dificuldades de clima (há enorme quantidade de relatos de chuvas e alagamentos no período), tenha tornado dificílima a continuidade da Liga Nacional, da Associação Sportiva ou qualquer outra com escopo semelhante.
Há, porém, uma razão ainda mais óbvia. Com a crescente popularidade dessas ligas na década de 20, a lenta aceitação de atletas negros e o aceno ao profissionalismo com o passar dos anos, os grandes clubes gaúchos não apenas passaram a visar esses jogadores como ferramentas para fortalecimento de seus plantéis, mas também tinham o óbvio desejo de enfraquecer movimentos associativos que pudessem rivalizar com a Liga de Foot-Ball Porto Alegrense.
Com isso, houve um esvaziamento dos torneios da Liga Nacional e de organizações similares pela necessidade de possuir os melhores atletas e de expandir a “marca” de cada clube grande a nível estadual e, posteriormente, nacional. Essa lenta absorção trouxe um silencioso desfecho às ligas associativas negras do período e marcou a irreversível abertura à “inclusão” no futebol gaúcho. O Internacional, por exemplo, teve Dirceu Alves — que atuava na Liga Nacional — como seu primeiro jogador negro em 1928 e, nos anos 40, desfrutou de uma dos grandes esquadrões de sua história através do Rolo Compressor, sob a liderança do craque Tesourinha.
A Liga Nacional de Foot-Ball Porto Alegrense apresenta-se, assim, como reputada expressão contingente de um contexto comum à população negra: a necessidade de uma incansável ocupação dos espaços do social a ela negada. Diminuída, ridicularizada e pejorativamente alcunhada; mas também sistematizada, bem estruturada e organizada, a Liga Nacional nos demonstra o poder de associativismo negro na conjuntura gaúcha no final do século XIX e no início do século XX, perpassando a imprensa, o esporte e a vida social. Não apenas isso, trata-se de um dos mais impressionantes atos de resistência negra da história do futebol brasileiro. Afinal, a convicção de um povo é sempre maior que a sombra de quem o marginaliza.
RODRIGUES, Diego Lemos. Dos campos às páginas: a participação negra na construção do futebol em Porto Alegre no pós-abolição (1907-1921). 2022. Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em História) – Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2022.
MAGRI, D. Liga das Canelas Pretas, o torneio antirracista nos primórdios do futebol gaúcho. Disponível em: <https://brasil.elpais.com/brasil/2019/11/22/deportes/1574455123_874259.html>. Acesso em: 19 jun. 2025.
OBSERVATÓRIO. Porto Alegre, 13 de Maio de 1920 – 100 Anos de “Liga da Canela Preta”. Disponível em: <https://observatorioracialfutebol.com.br/porto-alegre-13-de-maio-de-1920-100-anos-de-liga-da-canela-preta/>. Acesso em: 19 jun. 2025.
RIBEIRO, Fabrício Locatelli; MARTINS, Rodrigo Perla. Liga da Canela Preta: Protagonismo Negro no Futebol Gaúcho. 2019, Natal. XXI CONBRACE & VIII CONICE. Congresso 2019.