As faltas, a NFL e o futebol que queremos


O escarcéu feito por Mauro Cezar, após a anulação do que seria o primeiro gol do Flamengo no último Fla x Flu, refrescou-me a mente sobre algo que há muito quero escrever: como a ideia de deixar o jogo correr e a interpretação dos árbitros de ignorar faltas leves beneficia desproporcionalmente aos times mais físicos – e como as mudanças de regra da NFL nos anos 90 podem nos ajudar a superar este cenário. 

O objetivo aqui, no entanto, não é dar um veredito sobre o que é ou não é falta, e muito menos determinar se o gol de Pedro mereceu ser invalidado. Afinal, o ponto principal a ser entendido é que, a não ser por lances completamente óbvios e antidesportivos, não existe uma regra universal e absoluta para o que de fato deve ser marcado pelo juiz. Tal decisão sempre estará de alguma forma sujeita ao momento em que aconteceu temporalmente, pois o que determina é, no fim, a interpretação do árbitro durante a partida, as regras do período em questão, as orientações institucionais das entidades futebolísticas e até um certo espírito do tempo – que hoje, inegavelmente navega a favor da fisicalidade no futebol.

A REGRA

Está claro, portanto, que a interpretação sobre uma falta é relativa, e sempre resposta a uma série de estímulos dados pelas estruturas formais e informais do futebol. Jamais mudará: nem o ilusório advento do árbitro de vídeo ou as pretensiosas sentenças dadas nas “centrais do apito” tiraram as decisões e as perspectivas das mãos da interpretação humana. 

Com isso em mente, peço que o leitor mais jovem, como eu, que cresceu com a ideia hegemônica que jogo bom é aquele que corre, faça um exercício: assista a um jogo qualquer do futebol brasileiro nos anos 80 e 90. Sem os olhos treinados para o futebol daquela época, é impossível sair sem a impressão que os juízes davam faltas leves que hoje sequer seriam tema de discussão. O craque era protegido. Lances muito mais violentos que os marcados àquela época hoje ou são ignorados em nome de “deixar o jogo seguir” ou são faltas marcadas sem advertência alguma. 

Isso tem um motivo. Com a popularização da Premier League na primeira metade do século XXI, tudo que vinha do absolutamente específico cenário sociocultural inglês passou a ser tratado como regra – Mauro Cezar, por exemplo, que participava das primeiras transmissões da liga, foi um dos grandes difusores disso. O jogo agora precisava ser físico e corrido, como sempre foi na Inglaterra de gramados molhados, clima frio e povo pouco habilidoso para o futebol. Os árbitros precisavam colaborar, assim como as instituições.  Deixar o jogo correr se tornou sinônimo de futebol melhor jogado e de jogo mais divertido.

Foi instaurado o relógio que mede tempo de bola rolando e os juízes passaram a ser orientados a deixar o jogo correr mais. Times visivelmente passaram a utilizar abordagens mais físicas e agressivas, seguros de que os juízes ignorariam infrações leves. Mesmo as faltas marcadas são menos punidas – a falta como recurso de pressão alta passa a ser mais comum. Os times mais físicos, dessa maneira, passam a ser premiados por pressões mais agressivas, físicas e às vezes até violentas – contatos pelas costas que em outro tempo seriam faltas óbvias, por exemplo, não são marcados ou são motivos de chiado. Atenham-se às estatísticas que medem sucesso de pressão alta e agressividade em abordagens defensiva e percebam como os líderes nesses indicadores são, também, os que têm maior sucesso esportivo. É possível mudar?

A NFL E A POSSIBILIDADE DE MUDAR

Entendo, no entanto, o quão difícil pode ser pensar que a regra do jogo, ou pelo menos as orientações gerais das instituições futebolísticas, precisam mudar. Tendo aprendido o futebol dessa forma e vivendo dentro deste contexto, é realmente um exercício pouco confortável ir para além do tempo em que vivemos, e entender que as regras de arbitragem não são absolutas, mas completamente relativas. Cair num certo evolucionismo social e vender que as estruturas do futebol de hoje são as melhores possíveis por simplesmente serem as “mais modernas” é jogar contra a sobrevivência do esporte.

Para ajudar a entender como às vezes o esporte é beneficiado pela mudança/adição de regras, nada melhor do que olhar para as mudanças de regra da NFL nos anos 90, que salvaram o futebol americano da irrelevância.

Nos anos 80 e no início dos anos 90, a NFL vivia um cenário que interpreto como muitíssimo semelhante ao do futebol hoje. Predominavam os times físicos e o jogo defensivo; o jogo de passes, centrado na figura do Quarterback, era cada vez menos utilizado, pois a própria estruturação do jogo premiava times que apostavam no jogo terrestre e nos ‘field-goals’. As pontuações eram baixas, os jogos truncados e não se via um futuro possível distante daquela forma de se jogar o jogo, afinal o esporte havia evoluído para aquilo e o certo era se adequar. O resultado? Declínio completo na audiência nos anos 80-90, muito atrás da audiência do talentosíssimo e divertido basquete de Michael Jordan, Magic Johnson, Larry Bird e Hakeem ‘The Dream’ Olajuwon. O esporte da fisicalidade e da eficiência era preterido ao esporte dos craques e das grandes jogadas.

Por uma questão de sobrevivência, a NFL viu-se obrigada a mudar radicalmente as coisas. A partir da metade da década de 90, com o objetivo principal de proteger o Quarterback – a figura do jogo que mais inspirava amores, que mais criava narrativas e que mais trazia o interesse do público –, uma série de mudanças de regras mudaram a natureza do futebol americano. Com a adição de regras como a roughing the passer, que protege o QB de contatos ilegais após passar, os passadores voltaram ao centro do jogo, e o esporte chegou ao seu auge técnico e de interesse público no início do século XXI. 

O que define mais um esporte que valoriza o talento do que a dominância do “lento” Tom Brady e do fora de forma Patrick Mahomes?

QUAL FUTEBOL QUEREMOS?

O ponto inteiro deste texto é entendermos como as regras de arbitragem são essencialmente relativas. Não prego, portanto, “regra certa” ou “regra errada” quando falo sobre mudança. A questão não é e nunca será sobre certo ou errado. 

A NFL, quando alterou radicalmente suas regras de falta com o intuito de proteger o Quarterback, não só alterou a forma com que os árbitros tomariam suas decisões, mas, acima de tudo, fez um posicionamento sobre qual futebol americano queria: o que valorizasse o talento centrado na figura do passador, e não o jogo físico terrestre. Precisamos, então, como comunidade futebolística nos ater à real questão: qual futebol queremos?

Como muito bem disse Matheus Fiore em seu brilhante texto “A esmagadora indiferença do talento” para o Ponto Futuro, “a história do futebol se conta a partir dos feitos dos talentosos, e não de qualquer outra coisa”. A quem o futebol deve beneficiar e proteger, então? Quem deve ser entendido como a figura principal do futebol? A figura do craque, que cria histórias a serem contadas a partir de seu talento divino, que faz com que as pessoas se inspirem, ou a figura do mero operário, que obviamente tem seu valor narrativo, mas não inspira ninguém?

Não só as regras de arbitragem, mas as estruturas formais e informais do futebol beneficiam e protegem a segunda figura. A percepção de que o futebol de fisicalidade e pressão alta é o mais eficiente e que mais dá vitórias é um fato completamente mutável, e condicionado pelas regras do esporte hoje. Enquanto craques ficam no banco por serem pouco físicos e por pouco colaborarem com pressão alta, o interesse público no futebol continua despencando. E num piscar de olhos, não teremos mais o esporte que tanto amamos.

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