
Munida de reticências e conjunções adversativas, a imprensa esportiva despolitiza e infantiliza o debate sobre o uso de grama sintética nos campos de futebol profissional brasileiros. Dessa vez, todavia, a culpa não é de Tiago Leifert, nem de seus fiéis discípulos: jornalistas sérios têm tratado a questão de maneira inadequada. Seja por clubismo ou por miopia de análise, um sem-número de respeitáveis comentaristas esportivos destilam suas obviedades ululantes a um só coro, todos como se soassem tão geniais quanto uma ginga do Rei Pelé. “Os gramados devem ser naturais, mas só se forem de melhor qualidade do que os sintéticos”, afirmam. Quando não motivada pela defesa apaixonada de determinado clube – como no caso dos repórteres reconhecidamente botafoguenses, atleticanos, athleticanos e, sobretudo, palmeirenses –, tal conclusão denota um rebaixamento de horizontes e tangencia os principais aspectos do celeuma inaugurado pelo protesto dos jogadores na última terça-feira.
Na prática, o posicionamento de grande parte da mídia inadvertidamente tolera a existência de um certo tipo de relva considerado de má qualidade pela imensa maioria dos futebolistas. Segundo essa tese, é aceitável que um campo natural esburacado, péssimo para a prática do desporto, possa ser substituído por uma superfície artificial – menos ruim do que a primeira, porém ainda terrível. Já em seu pressuposto, trata-se de um raciocínio frágil e pouco lógico; afinal, qual o sentido de pleitear que todas as partidas sejam disputadas em bons terrenos, se se permite que algumas possam ocorrer em terrenos maus, ainda que ligeiramente superiores em relação outros? Assim como gramados orgânicos mal cuidados, os gramados inorgânicos, por melhores as tecnologias que empreguem, também alteram as dinâmicas do jogo, geram lesões evitáveis e, consequentemente, obrigam treinadores a poupar seus atletas mais habilidosos e experientes. Ademais, considerando a abrangência da manifestação adstrita a disputantes da Série A do Campeonato Brasileiro, sabe-se que ali não há nenhum pobre coitado: todas as agremiações constantes no certame dispõem de dinheiro e infraestrutura suficientes para manter ótimas superfícies de grama viva em seus estádios. Ora, então por que não o fazem?
Eis aí o cerne da questão, ignorado por imensa parcela da imprensa esportiva. Os gramados artificiais barateiam os custos de manutenção e, logo, aumentam os lucros daqueles que comandam os negócios por trás da bola. Repare que eu não me refiro exclusivamente aos donos de SAFs, sendo eles apenas uma categoria das muitas que se incluem no topo da cadeia econômica do futebol. Isso se clarifica no caso de clubes como Athletico e Palmeiras, associações sem fins lucrativos, cujos proventos adicionais gerados por seus respectivos campos sintéticos alimentam uma ampla miríade de burgueses, tais quais os donos das empresas patrocinadoras, das distribuidoras dos materiais esportivos, das detentoras dos direitos de transmissão das partidas e, especialmente, das empreiteiras e produtoras de shows de grande porte. Em outras palavras, quero dizer que o futebol, majoritária e ironicamente formado por instituições não destinadas a lucrar, estrutura-se no interior de uma complexa rede de fluxo de capitais que, de modo indireto, absorve esse excedente não retido pelos clubes. As SAFs mudam um pouco o cenário, mas apenas no ponto em que incluem mais um destino da expropriação da força de trabalho dos atletas.
Destaco essa característica do futebol – enquanto atividade humana a partir da qual se forma um empreendimento capitalista (e dos grandes) – para chamar a atenção ao seguinte fato: a revolta contra a relva postiça representa, em última instância, a reivindicação de funcionários por melhores condições no ambiente laboral. Parece difícil observar como trabalhadores a ínfima minoria milionária que disputa as divisões de elite e que liderou o protesto em questão, mas não há como negar que mesmo os atletas mais bem pagos produzem mais-valia para seus empregadores. A título de exemplo, o salário de Memphis, que pode variar entre R$ 86 milhões e R$ 116 milhões por duas temporadas, só se viabiliza porque a Rede Globo, a Nike, a NeoQuímica, a Esportes da Sorte e as demais empresas financiadoras do Corinthians obtêm uma receita muito maior com o jogador do que as quantias proporcionais com as quais contribuíram para o pagamento de seus vultosos vencimentos. O mesmo vale para os cerca de R$ 2 milhões de reais mensais que recebe Dudu no Cruzeiro, com a diferença de que o retorno gerado por ele, além dos patrocinadores, é também destinado a Pedro Lourenço, dono do clube.
Trata-se de um emaranhado abstruso, quase invisível a olho nu. Não obstante, se custear as caras operações de um clube de ponta não influenciasse fortemente na escolha do canal que os telespectadores sintonizam, da roupa que os transeuntes vestem, do remédio que os enfermos compram e do site de apostas que os viciados escolhem, o futebol ainda seria um esporte romântico e amador. Ao se metamorfosear em (mais um) meio de valorização do capital, a bola nos pés deixou de ser mero jogo e se tornou em ambiente de luta de classes – por mais endinheirados e desconectados da realidade da maioria do povo brasileiro que os trabalhadores nesse caso possam vir a ser. Que fique claro: os atletas não precisam de ser esquerda, muito menos socialistas ou comunistas, para pelearem por seus interesses de classe. Isso diz respeito meramente ao curso fático normal das coisas – aliás, a como os acontecimentos se sucedem habitualmente na realidade. Todo empregado sente na pele o sofrimento de ser expropriado, ou seja, de produzir muito mais do que aquilo que recebe no fim do mês. Tal sentimento se reverte, de tempos em tempos, em revolta, que pode se manifestar das mais distintas maneiras: organizada ou desorganizada, imbuída de ethos revolucionário ou reacionário etc.
No presente caso, a insurgência ganha materialidade através do pleito por melhores condições de trabalho. Em última instância, é isso que significa o pleito por gramados naturais ao invés de artificiais. Nessa mesma linha, Gerson, enquanto capitão do Flamengo, instou o Sindicato dos Atletas de Futebol do Estado do Rio de Janeiro (SAFERJ) a se manifestar contra a realização de partidas do Campeonato Carioca às 16:30h, diante da onda de calor intenso que assola os fluminenses nesta época do ano. As duas situações igualmente representam movimentos de jogadores para que seus patrões, diretos e indiretos, lucrem um pouco menos em nome do bem-estar dos empregados.
Não sejamos ingênuos: a resistência ao fim da grama sintética se deve ao fato de que tal medida representaria um aumento nos custos de manutenção e uma queda no número de eventos de entretenimento em estádios. De modo curto e grosso, o pleito dos atletas significa queda nas receitas e aumento nas despesas. Empreendimentos como o Allianz Parque, cuja função social de arena desportiva fora totalmente desvirtuada e transmutada em local para shows, não seriam mais viáveis. Bastaria, no entanto, que o Palmeiras investisse uma parte um pouco maior dos R$ 170 milhões anuais pagos pela nova patrocinadora, das outras centenas de milhões recebidas da velha ou dos mais de R$ 1 bilhão de reais obtidos com a venda de relevações da base para mudar esse cenário e manter um gramado natural de boa qualidade, a despeito das dezenas de concertos ali executados ao longo do ano. Bastaria, outrossim, que Athletico e Botafogo seguissem o exemplo, bem como o Atlético-MG, que está prestes a forrar sua novíssima arena com um piso sintético.
De tão indigesta que é, tal solução provoca a imprensa a correr para plantar dúvidas, óbices e exceções à regra que os jogadores corajosamente desejam criar. Por outro lado, olhando para o cerne da questão, torna-se nítido que não há espaço para poréns nessa proposta: no futebol brasileiro, a grama há ser natural e ponto final.
