
Penso que essa é uma pergunta muito complexa, porque o futebol – e a análise – envolvem uma gama ampla de fatores. Voltemos um pouco no tempo, até Charles Reep, contador inglês que ficou conhecido como o pioneiro da coleta de dados quantitativos sobre futebol e o maior entusiasta do estilo de jogo conhecido no Reino Unido como “bola longa”.
Entusiasta do estilo direto de Herbert Chapman, Reep se frustrou ao retornar à Inglaterra na segunda metade dos anos 40, após o fim da Segunda Guerra Mundial, e perceber que muitas equipes praticavam o que ele considerava um futebol “lento”, diferente daquele que viu com o Arsenal de Chapman nos anos 30. Em uma partida do Swindon Town, diante da pouca criatividade e suposta lentidão na circulação da bola, Reep fez anotações estatísticas daquela partida.
A partir dessas anotações, Charles Reep começou a desenvolver um sistema de estatísticas voltado para o futebol, algo inédito até então. Ele registrava passes, finalizações, perdas de posse e outros eventos do jogo, buscando padrões numéricos que pudessem indicar a melhor forma de se jogar. Sua principal conclusão foi a de que a maioria dos gols resultava de jogadas com três passes ou menos. Isso levou Reep a defender um estilo de jogo baseado em transições rápidas e lançamentos longos para o ataque, minimizando a troca de passes no meio de campo. Essa abordagem, que ficou conhecida como “long ball”, ganhou força no futebol britânico. Para Reep, o futebol deveria ser objetivo, e manter a posse de bola sem progressão rápida ao ataque era contraproducente.
Seu trabalho influenciou treinadores como Graham Taylor e Charles Hughes, ajudando a consolidar um modelo de jogo que priorizava bolas longas, cruzamentos e segundas bolas. O problema da abordagem de Reep, e que talvez tenha sido um problema para o futebol inglês durante muito tempo, é que ela simplifica fatores complexos. Reúne dados, mas com poucas nuances e poucos elementos contextuais. É mais sobre o que acontece do que sobre o porquê acontece. Em outras palavras, a interpretação desses números era um tanto simplista e descontextualizada. Quando perdemos o contexto, perdemos a análise. E, então, o que fica? Uma espécie de abstração.
Olhando para a atualidade, por um lado, existe essa tendência de abordar somente o jogo jogado, para então simplificar ou ignorar os momentos onde mesmo o jogo jogado inevitavelmente sofre outros desdobramentos. Existe também uma rejeição à análise técnica de futebol. Seja essa rejeição consciente – e aí falo de parte do público que prega o anti-intelectualismo e inclusive tece ataques a quem analisa o jogo – seja inconsciente, quando pessoas que não são do meio e que também não se propõem a analisar aspectos técnico-táticos, ou o fazem de maneira superficial, acabam contribuindo para esse mesmo anti-intelectualismo. Isso desinforma, propaga senso comum (que vende) e empobrece o debate, que fala cada vez menos do que realmente importa. Aqui, claro, falamos de boa parte do ramo jornalístico do país. Nesse sentido, existe uma dificuldade enorme em conciliar um olhar sensibilizado quanto ao futebol e seus desdobramentos com um rigor analítico.
“Análise de desempenho é o conjunto de ferramentas metodológicas utilizadas para desnasalizar o jogo de futebol nas suas multifaces performáticas, transformando meras informações em produção de conhecimento sobre o jogo.”
– Rafael Teixeira, ex-analista de desempenho do Goiás EC (2015-2019).
Desnasalizar o jogo
Entendo a análise de desempenho exatamente como uma maneira de produção de conhecimento. Um conhecimento que pode ser usado de diferentes formas, mas que, na prática, é utilizado principalmente para fins estratégicos. Penso, porém, que também deve existir um papel crítico do analista se ele atua como disseminador de conhecimento e formador de opinião. Questionar simplificações, a superficialidade, as leituras vulgares e o anti-intelectualismo no futebol de maneira geral. Produzir conhecimento, nesse sentido, também envolve produzir crítica.
E entenda aqui que crítica não significa “falar mal” dos objetos por falar. Envolve analisar em todos os âmbitos. Em outras palavras, ao adquirir conhecimento, temos que disseminá-lo. Mas devemos fazer isso de maneira crítica e sensível. No entanto, essa sensibilidade também não deve ser vulgarizada.
Em que sentido? Acho que uma “sensibilidade vulgar” seria justamente uma negação das articulações formais e das leituras mais intelectualizadas do futebol. Entender o futebol como uma “arte” ou uma “paixão”, mas sem pensar em aprofundá-lo nesses e em outros termos. Seria a exaltação de alguns elementos do futebol sem uma reflexão real, fechando-se a uma análise concreta, seja ela estética, política ou formal.
Nesse aspecto, é importante conseguir encontrar um equilíbrio: enxergar no futebol as nuances e as questões que vão além do jogo jogado, inclusive o entendendo como fenômeno estético e cultural, mas fazendo isso com critério e profundidade. Mas, dito tudo isso, sinto que o futebol é um espaço que lida muito mal com posturas críticas. É um ambiente muito fechado, onde palavras podem custar muito caro.
Para além disso, sinto que existe também uma limitação na maneira como muitos abordam o futebol. Alguns sabem sobre o jogo jogado, mas pouco sobre questões que vão além dele (todas as questões que foram colocadas em pauta neste texto). Essas duas situações acabam criando, na realidade, uma postura acrítica por parte de muitos (analistas, jornalistas, torcedores, profissionais). De certa maneira, até conivente com o status quo.
Nada pode ser criticado, nada pode ser contestado, e o papel de quem não está no processo é apenas o de observar e relatar o que está posto, não de refletir criticamente sobre isso. Mas, mesmo entre os que questionam, existe muito pouca reflexão de fato. É raro assistir a um programa, ler um texto ou até acompanhar uma transmissão que problematize de maneira coerente e concreta.
Ainda é uma crítica baseada em jargões e apontamentos superficiais. No futebol brasileiro, por exemplo, seja nos defensores ou nos detratores, ou é tudo muito bom, tudo histórico, perfeito (sensibilidade vulgar), ou é uma conversa, no mínimo, monótona sobre supostos “atrasos” em relação à “evolução”, entre outras discussões pouco inteligentes (para não ser deselegante).
Ambos os casos partem do princípio de que tudo está apenas no campo. As soluções, os problemas, as dificuldades – está tudo no jogo. O problema é que a noção que se tem do jogo no pensamento dominante difere do que o jogo de fato é. É um futebol imaginário. Dessa forma, na maior parte do tempo, estamos discutindo mais abstrações e noções simbólicas do que de fato situações reais, materialistas, sobre futebol.
Nos longos debates de mesa-redonda e na internet sobre treinadores, a influência deles é muito maior do que de fato é na prática. Os jogadores raramente são lidos pelo que realmente são, mas pelo que mais convém ao nosso viés. As reações são todas imediatas; recebemos as imagens e nem refletimos sobre elas.
A ponto de que, mesmo tantos anos depois, com toda a informação do mundo numa tela e com acesso a quase todos os futebóis que se puder imaginar, parecemos estar presos na mesma limitação analítica das anotações de Charles Reep há mais de 70 anos. Com a diferença de que, agora, se reflete ainda menos.

É importante mencionar que não é que o caráter simbólico e mitológico do futebol seja inexistente ou inútil; muito pelo contrário. São elementos que devem ser conservados. Mas não podemos instrumentalizá-los de forma enviesada a ponto de abandonar a concretude e a materialidade dos fatos e ignorar completamente o jogo. A grande questão é que, em suma, boa parte das discussões sobre futebol não só são de baixo nível, como não fazem o menor sentido na própria concepção.
Mas existe um exemplo a ser usado aqui. um jogador que durante toda a sua carreira, desafia essas noções prévias e os estereótipos. um jogador que, pra ser analisado com seriedade, nos obriga a transformar as informações em conhecimento, um jogador que nos obriga a sair da zona de conforto e pensar o futebol pra muito além das convenções vazias e inúteis de muitas mesas redondas e pseudo-debates virtuais.
7 infinito

Cristiano Ronaldo é tratado como tudo, exceto pelo que realmente é como jogador. Talvez poucos jogadores carreguem em si tantas interpretações diferentes (e imateriais) sobre o seu jogo. Para detratores, um finalizador “sem técnica” (a concepção equivocada que se tem de técnica) que conseguiu performar através do treino; para admiradores excessivamente apegados, uma figura absolutamente inquestionável em todos os aspectos. Para ele mesmo, é o melhor e mais completo jogador que já existiu. No imaginário popular, existem muitos Cristianos diferentes. E, para o autor do texto, a maioria desses Cristianos tem pouco a ver com o Cristiano real. Ele é uma figura carregada de símbolos e noções equivocadas, baseadas em estereótipos. O Cristiano Ronaldo, como jogador, e sua trajetória são fenômenos complexos que, como tudo no futebol, tentamos reduzir e simplificar.
Talvez a grande confusão em torno de sua figura seja em relação a ausência de talento/habilidade “natural” (termos por vezes, confundidos com a execução técnica de fundamentos). A noção de talento inato me soa confusa, pois não é algo genético ou um “presente de Deus”, mas uma capacidade construída pelo contexto e pelos estímulos recebidos ao longo dos anos. Além da repetição, o aprendizado observacional e empírico também são fundamentais. Cristiano é claramente talentoso, mas o treino não o tornou mais talentoso—ele potencializou seu talento ao máximo, com meticulosidade e atenção aos detalhes. Na Inglaterra, ele desenvolveu uma melhor compreensão de si mesmo como jogador, e SAF, que enxergou seu potencial desde o início, foi fundamental nesse processo, tanto individualmente quanto ao oferecer dinâmicas coletivas que potencializavam suas melhores características.
Quando falo dessa meticulosidade técnica, não falo do objetivismo vazio de “jogar sério” (na concepção equivocada de que é “jogar sério” ou algo do tipo), mas sim de um polimento quase impecável de todos os fundamentos do jogo. Não é incomum vermos comentários que acreditam que Cristiano Ronaldo é um jogador carente de técnica, mas, olhando para o jogo dele, onde está essa carência? Ele é um dos jogadores que melhor exemplifica o conceito de dominar os fundamentos. É um jogador com erros técnicos próximos de zero: o primeiro toque, o perfilamento corporal, a capacidade de antecipação, de passar a bola, a finalização – tudo isso dispensa qualquer apresentação. Enquanto driblador, ele era muito capaz na sua juventude (algo que, sim, foi se deteriorando ao longo do tempo, mais por questões físicas do que por qualquer outra coisa).
Ele não é só técnico, como bastante polivalente. Já nos seus três últimos anos em Old Trafford, seu melhor momento lá, o papel de Cristiano já não era (só) o de ser um jogador de beirada que criava chances para os companheiros, ganhando espaço através do drible. Com a saída de Van Nistelrooy para o Real Madrid em 2006, uma lacuna de gols havia sido deixada. A partir disso, coube aos jovens Cristiano, Rooney e, posteriormente, Tevez, gradualmente assumirem a responsabilidade de marcar gols para a equipe. Evidentemente, o goleador mais capacitado da equipe era CR7, o que foi rapidamente percebido por SAF, e então o português passou a ser o principal alvo das jogadas da equipe. Não no aspecto de ser o homem terminal (ao estilo de Van Nistelrooy, por exemplo), mas de ser ele, em si, o plano ofensivo da equipe. Partia da ponta, mas tinha autonomia para adentrar pelo meio, dependendo do momento. Jogava entre a direita, a esquerda e o centro, tendo como principal função guiar o setor ofensivo da equipe, gerando tanto oportunidades de gol para os outros quanto se colocando como finalizador. Se, durante seus primeiros anos, ele tinha um papel defensivo importante, agora era ele quem descansaria no 4-4-2 sem a bola. Mas, mais do que discutir seu posicionamento, é importante estabelecer o perfil de jogador que Cristiano verdadeiramente é. Algo que se esconde meio a tantas narrativas: um jogador que, para além do trabalho técnico, ficará marcado na história pelo jogo coletivo e pela influência.
Não diferente da noção equivocada que permeia o pensamento dominante em relação à técnica, o que muitos entendem como “jogo coletivo” (não confundir com o que é de fato ensinado em treinos e espaços de conhecimento sobre futebol) é uma concepção igualmente reducionista. Normalmente, essa visão é associada à capacidade de passar a bola (não que Cristiano não saiba passar) e de organizar o jogo de maneira mais “tradicional”, ou seja, ser o ‘cérebro’ da equipe. Esse papel é geralmente atribuído ao eterno rival de Cristiano Ronaldo, Messi. No entanto, a movimentação de Cristiano Ronaldo sem a bola, por exemplo, seja para apoiar, tabelar ou abrir espaços para os demais, não é reconhecida como “jogo coletivo”. Sua capacidade de fazer o jogo girar em torno dele — seja pelo medo que os adversários têm de lhe oferecer o mínimo de espaço para finalizar (afinal, ele faz gols de qualquer lugar) ou pela percepção de sua própria equipe de que o jogo precisa acontecer a partir dele — não é vista como influente. Importante ressaltar que isso não significa jogar para ele, mas sim trabalhar o jogo de modo que ele seja a peça central das dinâmicas ofensivas. Se já partimos de uma premissa equivocada e redutiva para analisar o jogo, é evidente que não haverá uma análise real.
Cristiano Ronaldo é também um facilitador de jogo, termo erroneamente associado apenas aos armadores criativos. As vantagens que ele gera para seus companheiros—seja com desmarques, fixação da oposição, dribles, arrancadas ou finalizações em diversas posições angulares e com diferentes níveis de espaço — são frequentemente subestimadas. Além disso, sua capacidade de ser alvo de jogadas é fundamental. Como já disse Özil, é muito fácil para um meio-campista municiá-lo. Seus movimentos de desmarques de ruptura estão entre os melhores da história, com leitura impecável dos espaços e potência para penetrá-los, recebendo a bola no pé ou no espaço.
Quando recebe no pé, um elemento subestimado do seu jogo é o primeiro toque. Ao controlar a bola com qualquer parte do pé, de qualquer local do campo, de frente ou de costas, ele facilita tudo. Dominar bem a bola é essencial no futebol, mas não basta: é preciso fazê-lo em qualquer situação, já sabendo o que fazer. Em espaços curtos, joga a poucos toques, associando-se com companheiros próximos. Em espaços amplos, domina batendo o defensor e ganhando campo para finalizar.
é um jogador associativo, coletivo, criativo nos toques e nos movimentos (o tanto de chaleira, letra, trivela que vimos fazer, é raro) e mais criativo ainda na movimentação. e isso ainda está longe de ser uma leitura completa sobre quem ele é como jogador, mas são pequenos (e óbvios) fragmentos que se perdem meio a tanto distanciamento da realidade na hora de falar sobre o jogador. por exemplo, a noção de que ele mudou radicalmente como atleta na sua transição de jovem pra veterano é errônea. esses princípios fundamentais do seu jogo (a associação, a movimentação, a capacidade de saber quantos toques dar na bola) se mantém como base de tudo que ele faz. o que mudou, na realidade, é o físico. mais lento, menos ágil, e conforme a idade foi avançando, a alteração foi na quantidade de energia que ele é capaz de gastar.
Cristiano Ronaldo se tornou um símbolo de disciplina extrema, eficiência e produção de resultados em massa. No entanto, não foi essa eficiência que inspirou os jovens que assistiam à Premier League nos anos 2000. Não foi o número de gols por si só que serviu de inspiração para diversos jogadores emergentes. Não são os recordes que tornam Cristiano Ronaldo um dos jogadores mais apaixonantes da história. Isso aconteceu pela experiência estética proporcionada por Cristiano. Olhamos aquele número 7, o penteado, as chuteiras, e isso desbloqueia memórias criadas por esse jogador. Essa foi a marca de sua carreira. Existe o Ronaldo produto, o Ronaldo imaginário e o Ronaldo real. E é o Ronaldo real que se eternizou; é ele o jogador histórico. Porém, não existe a possibilidade de compreender isso sem um olhar crítico.
Nesse aspecto, o que ele faz é desafiar através do seu jogo, todos esses pressupostos. o que ele exige é que a visão sobre futebol seja reconfigurada. Mas essa capacidade de discernimento, essa educação do olhar e da sensibilidade, precisa ser estimulada. O futebol das discussões vazias, o futebol imaginado, um jogo onde as opiniões têm caráter efêmero — floreadas sem significado, que são errôneas em relação ao que realmente aconteceu ou acontece. Onde o jogo se transforma, mas as conversas sobre ele permanecem aquém dos acontecimentos, como descreve Detlev Claussen (2006) é de alguma forma, estimulado. por pessoas em posições privilegiadas nesse sentido, sejam jornalistas ou “influencers” que estudaram de menos, que se preocupam de menos, e que estão confortáveis em continuar reproduzindo mediocridade sabendo que isso vende com maior facilidade.
É nesse contexto que retorno à frase de Teixeira e ao momento em que ele menciona ‘transformar meras informações em conhecimento’. Nesse aspecto, o trabalho é também sobre filtragem: o que é ou não sério, quem é ou não sério, o que é ou não baseado na realidade. Mas não se trata apenas de filtrar, mas também de apresentar as novas possibilidades pelas quais o jogo pode ser entendido. Em tempos de culto à mediocridade, a análise e a disseminação de conhecimento, ambas feitas de maneira crítica, são os meios pelos quais teremos êxito enquanto apresentadores dessas novas possibilidades.
